“O amor são duas solidões
protegendo-se uma a outra.”
Rainer Maria Rilke
“Se o outro me ama, decepciona-me
radicalmente por seu próprio amor: eu exigia dele que fundasse meu ser como
objeto privilegiado, mantendo-se como pura subjetividade perante mim; mas,
desde que me ama, ele me sente como sujeito e se afunda na sua objetividade
diante de minha subjetividade. O problema de meu ser-para-outrem fica, pois sem
solução. Os amorosos ficam cada um por si numa subjetividade total.”
O Ser e o Nada. Sartre.
Estou reescrevendo aqui sobre um
comentário e interpretação breve sobre esta passagem de Sartre. Coloco aqui outras pitadas e temperos
que considero importantes na agenda e no cardápio de hoje. Em parte porque
senti, ao reler a passagem, que havia certa duplicidade reflexiva encoberta no
meu primeiro tratamento e que eu gostaria de explicitar isso mais hoje. Isso
vale como um exercício e, quem sabe, como um jogo para além do treino.
Veja-se que o tema do amor se
relaciona ao seu modo a um Eu e um Outro, um duplo, uma pluralidade pareada.
Essa duplicidade, no sentido que dá exatamente Rilke para tal coisa, envolve
dois que acabam, apesar do amor, num cada um por si. Veja, então, que ambos são
solitários e possuem, na expressão de Heidegger, também analisada por Sartre em
O Ser e o Nada, uma “solidão em comum”. Tal solidão compartilhada é uma forma de
amparo, apoio, proteção. Proteção do quê? Talvez da solidão que é o que devemos
ver depois mais de perto também.
Só para lembrar, porque nos será
útil depois também, Nietzsche considerava o amor uma das fraquezas dos homens,
isto é, somente um homem fraco, insuficiente e incompleto precisaria de um
outro ou de um amor pelo outro para ser feliz e andar sobre este mundo.
Já para Hegel, em sua clássica
dialética do senhor e do escravo – também analisada por Sartre em o Ser e o
Nada, há uma necessidade ou dependência entre um Eu e o Outro.
O amor é em Sartre ai uma das
disposições do outro em relação ao nosso Eu. E esta disposição gera na reflexão
dele uma decepção. Talvez tal decepção esteja ligada a fraqueza aludida por
Nietzsche e, de certa forma, a um sinal de que somos incompletos ou de que
nossa solidão não ser resolve e não tem solução, isto é, jamais terá algum
amparo efetivo e suficiente.
Creio ser bem interessante ver o
alcance disto na teoria dele e também na nossa vida. Quando falo em alcance
falo da questão de até onde esta reflexão nos leva ou o que ela nos ensina. Voltei
a trabalhar sobre o que fiz a dois anos atrás a este respeito, porque encontrei
de novo a razão de ser deste tema na experiência e na reflexão da experiência.
Deveria ser o que Sartre diz ai e
o que eu chamava de amar pelo reconhecimento do gênio. Mas pode ser, numa
abordagem agora negativa, algo bem pior que isso se lermos com mais atenção ao
que ele parece querer dizer ai. Algo que me escapou no primeiro comentário e
que nos leva a uma espécie de absurdo odioso para nossa racionalidade ou nossa
confiança na racionalidade. Não se trata tanto do reconhecimento do gênio e nem
de um amor, mas sim de certa impossibilidade de tomar isto como conhecimento,
reconhecimento ou cognição do outro sob qualquer descrição. Vejamos.
Porém, pensando de novo e
retomando veja que isto que chamo de reconhecimento do gênio é no fundo um
reconhecimento de si mesmo, uma clássica projeção, por isso a decepção da qual
ele fala ali nos joga na tal subjetividade total de cada um. Isso seria uma
decepção sobre o quê mesmo? No que eu me decepciono com o outro por sua
admiração? Minha hipótese que a decepção se deve a impossibilidade de tal coisa
se realizar ou ser possível.
Lançar pela admiração o outro em
si mesmo – a vaidade que o carrega – e lançar a si mesmo na contemplação de
algo que só eu compreendo e porque eu compreendo me sinto integrado a ela e sua
qualidade. Esta é atípica projeção. Admiro o outro como admiro a mim mesmo.
O reconhecimento de uma
singularidade ou como ele parece supor ali – esse Sartre me é muito competitivo
amorosamente – o reconhecimento de uma superioridade. Mas uma tal superioridade
que encontro em mim mesmo ao final.
Para mim isso é, na minha
primeira análise sobre o tema que grifo e reedito aqui, mais simples: só quem
possui a beleza e a grandeza reconhece a grandeza e a beleza em outrem.
Mas isso me colocaria no rol dos
presunçosos...despertaria a crítica, a inveja e talvez até mesmo a reprovação
de outros superiores, mas e daí? Que cada um seja por si e pelo outro que
quiser...então fica explicada a inflação do eu que ele chama ai de
subjetividade total.
Quando penso nisto sempre
encontro um delírio, uma forma ou espécie de ir além dos limites de si, mas por
si mesmo. O delírio é assim um excesso de si. O delírio ultrapassa sua
fronteira de conhecimento e te joga como um apostador obsessivo. Aquela aposta
exagerada em seu próprio juízo e que esquece que por maior que seja sua
inteligência ou qualidade, você pode estar errado, sua intuição pode estar errada
e tudo pode apenas ser um engano. Uma grande qualidade não imuniza ao erro, nem
torna o erro um acidente afastado de tua caminhada.
Mais dialética nesta questão
explica a decepção sartreana; como podes me amar assim – ou odiar assim – se
sequer me conheces de fato? A aposta que fizeste sobre mim, o grande juízo que ergues em relação a mim, me exibe que em
você passei de um ser desconhecido para o conhecido e deixo, então, de possuir
qualquer mistério para ti, mas mesmo assim podes estar enganado (a) a meu
respeito, podes apenas estar delirando em teu juízo e errando mais uma vez.
"Pois, no seio mesmo da
paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro".
Lou
Andreas Salomé.
Mas isto é possível?
O problema que ele aponta do ser
para outrem ficaria sem solução justamente porque ou o outro não me conhece
porque não se arrisca sobre mim – sequer tenta ou ousa me julgar e conhecer –
ou, ao contrário disto, faz uma aposta demasiada e delirante sobre mim. Não há
meio termo possível. A impressão que temos é que o conhecimento ai deveria ser infalível
e irretocável. Ambos caminhos levam a nos deixar sem solução, por aqui ou por
ali, num “cada um por si”.
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