Beauvoir — Ao escrever O Segundo
Sexo tomei consciência, pela primeira vez, de que eu mesma estava levando uma
vida falsa, ou melhor, estava me beneficiando dessa sociedade patriarcal sem ao
menos perceber. Acontece que bem cedo em minha vida aceitei os valores
masculinos e vivia de acordo com eles. É claro, fui muito bem-sucedida e isso
reforçou em mim a crença de que homens e mulheres poderiam ser iguais se as
mulheres quisessem essa igualdade. Em outros termos, eu era uma intelectual.
Tive a sorte de pertencer a uma família burguesa, que, além de financiar meus
estudos nas melhores escolas, também permitiu que eu brincasse com as idéias.
Por causa disso, consegui entrar no mundo dos homens sem
muita dificuldade. Mostrei que poderia discutir filosofia, arte, literatura,
etc., no “nível dos homens”. Eu guardava tudo o que fosse próprio da condição
feminina para mim. Fui, então, motivada por meu sucesso a continuar, e, ao
fazê-lo, vi que poderia me sustentar financeiramente assim como qualquer
intelectual do sexo masculino, e que eu era levada a sério assim como qualquer
um de meus colegas do sexo masculino. Sendo quem eu era, descobri que poderia
viajar sozinha se quisesse, sentar nos cafés e escrever, e ser respeitada como
qualquer escritor do sexo masculino, e assim por diante. Cada etapa fortalecia
meu senso de independência e igualdade. Portanto, tornou-se muito fácil para
mim esquecer que uma secretária nunca poderia gozar destes mesmos privilégios.
Ela não poderia sentar-se num café e ler um livro sem ser molestada. Raramente
ela seria convidada para festas por seus “dotes intelectuais”. Ela não poderia
pegar um empréstimo ou comprar uma propriedade. Eu sim. E pior ainda, eu
costumava desprezar o tipo de mulher que se sentia incapaz, financeiramente ou
espiritualmente, de mostrar sua independência dos homens. De fato, eu pensava,
sem dizê-lo a mim mesma, “se eu posso, elas também podem”. Ao pesquisar e
escrever O Segundo Sexo foi que percebi que meus privilégios resultavam de eu
ter abdicado, em alguns aspectos cruciais pelo menos, à minha condição
feminina. Se colocarmos o que estou dizendo em termos de classe econômica, você
entenderá facilmente. Eu tinha me tornado uma colaboracionista de classe. Bem,
eu era mais ou menos o equivalente em termos da luta de sexos. Através de O
Segundo Sexo tomei consciência da necessidade da luta. Compreendi que a grande
maioria das mulheres simplesmente não tinha as escolhas que eu havia tido; que
as mulheres são, de fato, definidas e tratadas como um segundo sexo por uma
sociedade patriarcal, cuja estrutura entraria em colapso se esses valores
fossem genuinamente destruídos. Mas assim como para os povos dominados
econômica e politicamente, o desenvolvimento da revolução é muito difícil e
muito lento. Primeiro, as mulheres têm que tomar consciência da dominação. Depois,
elas têm de acreditar na própria capacidade de mudar a situação. Aquelas que se
beneficiam de sua “colaboração” têm que compreender a natureza de sua traição.
E, finalmente, aquelas que têm mais a perder por tomar posição, isto é,
mulheres que, como eu, buscaram uma situação confortável ou uma carreira
bem-sucedida, têm que estar dispostas a arriscar sua situação de segurança —
mesmo que seja apenas se expondo ao ridículo — para alcançar respeito próprio.
E elas têm que entender que suas irmãs que são mais exploradas serão as últimas
a se juntarem a elas. Uma esposa de operário, por exemplo, é menos livre para
se juntar ao movimento. Ela sabe que seu marido é mais explorado do que a
maioria das líderes feministas e que ele depende de seu papel de mãe/dona-de-casa
para sobreviver. De qualquer forma, por todas essas razões, as mulheres não se
mobilizaram. Ah sim, houve alguns pequenos movimentos bem interessantes, bem
inteligentes, que lutaram por promoções políticas, pela participação das
mulheres na política, no governo. Eu não me refiro a esses grupos. Então veio
1968 e tudo mudou. Sei que alguns eventos importantes aconteceram antes disso.
O livro de Betty Friedan, por exemplo, foi publicado antes de 1968. Na verdade,
as mulheres norte-americanas já estavam se mobilizando nessa época. Elas, mais
do que ninguém, e por razões óbvias, estavam cientes das contradições entre as
novas tecnologias e o papel conservador de manter as mulheres na cozinha. Com o
desenvolvimento da tecnologia — tecnologia como poder do cérebro e não dos
músculos — a lógica masculina de que as mulheres são o sexo frágil e, por isso,
devem representar um papel secundário não pôde mais ser sustentada. Como as
inovações tecnológicas eram muito difundidas nos Estados Unidos, as mulheres norte-americanas
não escaparam às contradições. Foi, portanto, natural que o movimento feminista
tivesse seu maior ímpeto no coração do capitalismo imperial, ainda que esse
ímpeto tenha sido estritamente econômico, isto é, a reivindicação por salários
iguais, trabalhos iguais. Mas foi dentro do movimento anti-imperialista que a
verdadeira consciência feminista se desenvolveu. Tanto no movimento contra a
Guerra do Vietnã nos EUA quanto logo depois da rebelião de 1968 na França e em
outros países europeus, as mulheres começaram a sentir seu poder. Ao
compreender que o capitalismo leva necessariamente à dominação dos povos pobres
em todo o mundo, milhares de mulheres começaram a aderir à luta de classes —
mesmo quando não aceitavam o termo “luta de classes”. Elas se tornaram
ativistas. Elas aderiram às marchas, às demonstrações, às campanhas, aos grupos
clandestinos, à militância de esquerda. Elas lutavam, tanto quanto qualquer
homem, por um futuro sem explorações, sem alienações. Mas o que aconteceu? Nos
grupos ou organizações a que aderiram, elas descobriram que, assim como na
sociedade que tentavam combater, também eram tratadas como o segundo sexo. Aqui
na França, e eu me arrisco a dizer também nos EUA, elas perceberam que os
líderes eram sempre os homens. As mulheres se tornavam datilógrafas e serviam
café nesses grupos pseudo-revolucionários. Bom, eu não deveria dizer pseudo.
Muitos dos participantes desses movimentos eram revolucionários genuínos. Mas
tendo sido treinados, educados e moldados em uma sociedade patriarcal, estes
revolucionários trouxeram esses valores para o movimento. Compreensivelmente,
estes homens não iriam abrir mão desses valores voluntariamente, assim como a
classe burguesa não abrirá mão de seu poder voluntariamente. Dessa forma, assim
como cabe ao pobre tomar o poder do rico, também cabe às mulheres tirar o poder
dos homens. E isso não quer dizer que, por outro lado, elas devam dominar os
homens. Significa estabelecer igualdade. Assim como o socialismo, o verdadeiro
socialismo, estabelece igualdade econômica entre todos os povos, o movimento
feminista aprendeu que ele teria que estabelecer igualdade entre os sexos
tirando o poder da classe que liderava o movimento, isto é, dos homens.
Colocando em outros termos: uma vez dentro da luta de classes, as mulheres
perceberam que a luta de classes não eliminava a luta de sexos. Foi nesse ponto
que eu mesma tomei consciência do que acabei de dizer. Antes disso, estava
convencida de que a igualdade entre homens e mulheres só era possível com a destruição
do capitalismo e, portanto — e é esse “portanto” que é uma falácia — nós temos
que lutar primeiro a luta de classes. É verdade que a igualdade entre homens e
mulheres é impossível no capitalismo. Se todas as mulheres trabalharem tanto
quanto os homens, o que acontecerá com essas instituições das quais o
capitalismo depende, instituições como igreja, casamento, exército, e os
milhões de fábricas, lojas, etc. que dependem de trabalho de meio-expediente e
mão-de-obra barata? Mas não é verdade que a revolução socialista estabelece
necessariamente a igualdade entre homens e mulheres. Dê uma olhada na União
Soviética ou na Tchecoslováquia, onde (mesmo se nós estivermos dispostos a
chamar esses países de “socialistas”, e eu não estou) há uma confusão profunda
entre emancipação do proletariado e emancipação da mulher. De alguma forma, o
proletariado sempre termina sendo constituído de homens. Os valores patriarcais
permaneceram intactos, tanto lá quando aqui. E isso — essa consciência entre as
mulheres de que a luta de classes não engloba a luta de sexos — é que é novo. A
maioria das mulheres sabe disso agora. Essa é a maior conquista do movimento
feminista. É a que vai alterar a história nos próximos anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário