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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Provérbios do Inferno – William Blake

 

Provérbios do Inferno – William Blake

Tradução de Paulo Vizioli.

 

No tempo da semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta.

Conduz teu carro e teu arado por sobre os ossos dos mortos.

A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria.

A Prudência é uma solteirona rica e feia, cortejada pela Impotência.

Quem deseja, mas não age, gera a pestilência.

O verme partido perdoa ao arado.

Mergulha no rio quem gosta de água.

O tolo não vê a mesma árvore que o sábio.

Aquele, cujo rosto não se ilumina, jamais há de ser uma estrela.

A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo.

A abelha atarefada não tem tempo para tristezas.

As horas de loucura são medidas pelo relógio; mas nenhum relógio mede as de sabedoria.

Os alimentos sadios não são apanhados com armadilhas ou redes.

Torna do número, do peso e da medida em ano de escassez.

Nenhum pássaro se eleva muito, se eleva com as próprias asas.

Um cadáver não vinga as injúrias.

O ato mais sublime é colocar outro diante de ti.

Se o louco persistisse em sua loucura, acabaria se tornando Sábio.

A loucura é o manto da velhacaria.

O manto do orgulho é a vergonha.

As Prisões se constroem com as pedras da Lei, os Bordéis, com os tijolos da Religião.

O orgulho do pavão é a glória de Deus.

A luxúria do bode é a glória de Deus. A fúria do leão é a sabedoria de Deus. A nudez da mulher é a obra de Deus.

O excesso de tristeza ri; o excesso de alegria chora.

A raposa condena a armadilha, não a si própria.

Os júbilos fecundam. As tristezas geram.

Que o homem use a pele do leão; a mulher a lã da ovelha.

O pássaro, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade.

O sorridente tolo egoísta e melancólico tolo carrancudo serão ambos julgados sábios para que ejam flagelos.

O que hoje se prova, outrora era apenas imaginado.

A ratazana, o camundongo, a raposa, o coelho olham as raízes; o leão, o tigre, o cavalo, o elefante olham os frutos.

A cisterna contém; a fonte derrama.

Um só pensamento preenche a imensidão.

Dizei sempre o que pensa, e o homem torpe te evitará.

Tudo o que se pode acreditar já é uma imagem da verdade. A águia nunca perdeu tanto o seu tempo como quando resolveu aprender com a gralha.

A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão.

De manhã, pensa; ao meio-dia, age; no entardecer, come; de noite, dorme.

Quem permitiu que dele te aproveitasses, esse te conhece.

Assim como o arado vai atrás de palavras, assim Deus recompensa orações.

Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.

Da água estagnada espera veneno.

Nunca se sabe o que é suficiente até que se saiba o que é mais que suficiente.

Ouve a reprovação do tolo! É um elogio soberano!

Os olhos, de fogo; as narinas, de ar; a boca, de água; a barba, de terra.

O fraco na coragem é forte na esperteza.

A macieira jamais pergunta à faia como crescer; nem o leão, ao cavalo, como apanhar sua presa. Ao receber, o solo grato produz abundante colheita.

Se os outros não fossem tolos, nós teríamos que ser.

A essência do doce prazer jamais pode ser maculada.

Ao veres uma Águia, vês uma parcela da Genialidade. Levanta a cabeça!

Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para deitar seus ovos, assim o sacerdote lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.

Criar uma florzinha é o labor de séculos.

A maldição aperta. A benção afrouxa.

O melhor vinho é o mais velho; a melhor água, a mais nova.

Orações não aram! Louvores não colhem! Júbilos não riem! Tristezas não choram!

A cabeça, o Sublime; o coração, o Sentimento; os genitais, a Beleza; as mãos e os pés, a Proporção.

Como o ar para o pássaro ou o mar para o peixe, assim é o desprezo para o desprezível.

A gralha gostaria que tudo fosse preto; a coruja, que tudo fosse branco.

A Exuberância é a Beleza.

Se o leão fosse aconselhado pela raposa, seria ardiloso.

O Progresso constrói estradas retas; mas as estradas tortuosas, sem o Progresso, são estradas da Genialidade.

Melhor matar uma criança no berço do que acalentar desejos insatisfeitos.

Onde o homem não está a natureza é estéril.

A verdade nunca pode ser dita de modo a ser compreendida sem ser acreditada.

É suficiente! Ou Basta.

 

William Blake

E AQUELES QUE NÃO ESCUTAM?

E AQUELES QUE NÃO ESCUTAM?

 

Os sinais e avisos são dados. 

Sons e imagens 

por diversos canais 

exibem claramente 

o que está ocorrendo, 

mas eles não observam 

e não escutam. 


É correto chamar isso de 

Negacionismo. 

A realidade está aí 

perante teus olhos, 

ela grita e você recebe 

as informações todas. 


O mundo real está acessível. 

Mas você nega 

o que a realidade te apresenta 

e constrói um sistema 

de crenças para sustentar isso. 


É um tipo de insulamento dogmático 

que ergue uma barreira 

fortemente reforçada 

pela recusa à interpretação, 

pelo excesso de fé no altíssimo 

ou em outra criatura  

e a ausência completa de amor 

e confiança no próximo. 


Há aí uma ética da suspeita. 

Essa ética da suspeita 

que constrói essa barreira 

que impede a assimilação 

de qualquer ideia do outro. 


Você nega deliberadamente 

toda e qualquer informação 

que te é oferecida, 

mesmo por aqueles que te amam 

e gostariam de te proteger. 


Eles tornam impossível 

a tarefa de salvação 

pelo amor mais genuíno ao próximo.


Nem Jesus aguenta eles, 

como muito bem 

citou no ano passado, 

o filósofo Renato Janine Ribeiro. 


No exemplo, 

Jesus deve esperar eles em algum lugar 

e perguntar porque 

você não aceitou a ajuda que te enviei? 


Porque não ouviu meu aviso 

através daquele homem 

ou daquela mulher 

de bom coração 

que queriam te salvar? 

Esperava o quê? 

Um milagre?


Saiba, que o maior milagre na humanidade 

será produto do amor ao próximo! 

Essa é a minha mensagem.

 

Capice?


FINITUDE E VERDADE

 

FINITUDE E VERDADE

 

A verdade mais radical e incontestável da nossa carne e da nossa alma é a finitude. Nós vivenciamos uma experiência maravilhosa que ocorre com o desenvolvimento da nossa vida da infância até a meia idade. Mas chega um momento em que nossa carne e nossos ossos - nosso corpo, nosso veículo -  vai perecendo com nosso testemunho direto desse processo e vamos nos dando conta por nossa alma ou em nossa sede reflexiva que o fim dá seus sinais. Não se consegue mais fazer certas coisas, resolver certos problemas, não se consegue mais fazer grandes escolhas e vamos ficando limitados e resumidos.

 

A liberdade que elogiamos e da qual nos vangloriamos por haver um dia conquistado ou tido a impressão de possuir, nos contempla e ri de nossas vãs ilusões. Quando entendemos isso passamos a compreender e ter piedade do próximo porque vemos nele nosso futuro ou nele o seu passado que já foi nosso presente. Vem vindo a morte - o assador e suas facas afiadas - e o infinito começa a nos assombrar não porque é escuro, porque é um pesadelo, porque é o inferno ou promete mais dor, mas porque sentimos que deve haver um paralelo entre o corpo e a alma.

 

Que se o corpo vai desaparecendo e perdendo funções e habilidades, vai sendo limitado e de certa forma extinto, também nossa alma pode ir perdendo aspectos que só à nos pertencem. A extinção da memória ou a extinção da mobilidade que aparecem nestes dois males da velhice e que, em alguns casos, aparecem precocemente parecem anunciar isto.

 

Assim, quase nada de cada um de nós vai restar no tempo e no espaço e isso é algo impressionante em sua realidade, autenticidade e, ao mesmo tempo, em sua ausência de sentido ou na presença de um sentido mínimo. Quando se começa efetivamente a pensar nisto, entendemos o significado do essencial da vida que talvez seja como você está se sentindo agora. E lembramos do que realmente importa em nossas vidas.

 

A trajetória da existência vai nos resumindo, mas só mesmo no tempo a presença temo tão forte significado, justamente pelo desaparecimento de nossos poderes, pelas nossas limitações, estar aí ainda no mundo é um grandioso trunfo e um sinal de que devemos aproveitar para viver e usufruir disto com mais prazer ou com o maior prazer possível. E a alma olha para o corpo e vê que ele está assim e pode, enfim, pensar em si mesma como estando melhor ou ficando para o último capítulo de tudo isso.

 

Sim, ver isso, visualizar isso de si mesmo é muito impressionante. E é um exercício que devemos provocar em nós mesmos, pois pode ser bem educativo para nós saber que precisamos decidir e ser principalmente e quase indelegavelmente responsáveis pelo modo como tratamos esta questão.

 

( Jean Claude Bernardet no filme "Fome", de Cristiano Burlan, do qual é protagonista. interpretou uma personagem que vive isto e esta postagem é uma reedição do meu comentário desta experiência e de sua entrevista do ano passado complementado por algumas ideias que sempre tem me tocado ultimamente e que neste ano ficaram sob a chave geral do que chamei de nossa quilometragem limitada. Precisamos saber que temos uma caminhada e que há de haver um ponto do qual não vamos passar. Queremos avançar sobre os limites e este é nosso impulso mais juvenil e maravilhoso, mas com a maturidade passamos a um processo de aceitação e compreensão maior do qual depende nossa saúde física e mental, nossos cuidados e os cuidados com os demais seres humanos.)

JOHN LOCKE E AS TEMPESTADES DESTE MUNDO

 

JOHN LOCKE E AS TEMPESTADES DESTE MUNDO

 

E eu lendo John Locke um dia destes qualquer, o que após um longo namoro, me vem nos Ensaios Políticos, agora:

"Assim que eu me apercebi no mundo, eu me vi no meio de uma tempestade."

E de fato, Locke vive um dos períodos mais conflituosos de toda a história da Inglaterra. Estes conflitos eram baseados em diferenças religiosas, envolviam o permanente conflito político entre protestantes e católicos e também eram produto de disputas de interesses econômicos concorrentes entre a aristocracia e a burguesia em ascensão isso produz um conjunto de guerras civis e mudanças de regime político que marcaram a ascensão da burguesia na Inglaterra. Locke nasce neste ambiente de efervescência política onde a Inglaterra se debatia nestas lutas sociais, religiosas, políticas, intensas e incessantes. Ele nasceu no ano de 1632, na cidade de Wrington, Somerset, em uma família de comerciantes e artesãos puritanos. Locke perdeu a sua mãe quando ainda era criança. Posteriormente ao manifestar-se sobre a sua infância e muito provavelmente falou em sentir-se no meio de uma tempestade tão logo se percebeu no mundo. A primeira revolução inglesa eclodiu com a disputa entre as forças reais e o exército do Parlamento liderados por Oliver Cromwell. Essa Revolução Puritana foi um conflito ocorrido na Inglaterra na década de 1640 entre a monarquia e o parlamento. Carlos I, rei do país, não aceitava a intervenção política dos parlamentares e, de forma autoritária, governava exclusivamente movido por seus interesses e pelos interesses. O rei foi derrotado nessa disputa e acabou executado em 1649. Locke tinha então 17 anos. Mais tarde ocorre a Revolução Gloriosa é o nome que se dá para os acontecimentos que levaram à deposição de Jaime II, sucessor de Carlos I e à coroação de Guilherme de Orange e Maria Stuart como rei e rainha da Inglaterra. A monarquia absolutista inglesa transformou-se em uma monarquia constitucional, que consolidou o domínio da burguesia na Inglaterra e do que restou o regime vigente na Inglaterra de uma Monarquia Constitucionalista com um Rei e um Parlamento fortalecido.

Uma expressão que ele usou aos 29 anos no seu primeiro retorno saturnal confirma também essa percepção da tempestade em que ele estava envolvido e eu olho para mim mesmo aos 29 anos e penso nisso também. Na minha formatura, no meu anno mirabilis de 1994. E me dou por conta das tempestades que vi em minha vida também.

 

Quantas curvas a história vai dar à minha volta até eu conseguir fixar uma imagem clara do que anda sempre mudando tudo em meu mundo? Vejo que desde que tenho me entendido por gente e pensado que sou capaz de tentar explicar ou compreender alguma coisa de forma mais profunda, essa sensação de estar às voltas em uma tempestade.

 

Uma aluna me perguntou uma vez se eu não me confundia ao ler tantas coisas?

 

E eu não respondi essa pergunta dela, simplesmente porque eu não sei, jamais tive este tipo de sentimento, sempre penso que não estou entendendo ou que não está claro o suficiente para mim isso ou aquilo. Mas eu continuei lendo e me aventurando nos livros com todo meu ecletismo e também de uma forma sempre muito mais ampla para aumentar a possibilidade de estar perdido ou mais perdido.

 

E, com o tempo, nos últimos 21 anos agora já, desde a primeira vez que tratei dessa sensação, em especial, algumas vezes nesse tempo todo quando sinto alguma confusão tendo a adotar a cautela e não falar sobre algo que não me é claro ou cujas opções não são claras para mim e fico pensando, meio silencioso meio ruminante sobre isso ou sobre alguma confusão em meu pensamento ou raciocínio.

 

Houve uma época em que eu resmungava, mas não há nada que me deixa mais feliz do que ter uma sensação determinada de que os problemas se dissolvem ou que me adveio uma ideia melhor sobre algo.  E isso acontece no mais das vezes quando se abstrai do labirinto em que estamos metidos e se pensa em outras coisas.

 

Mas gosto muito de descobrir soluções por conexões aleatórias e acidentais, por analogias, metáforas e às vezes faço troça de um problema tentando dissolvê-lo com humor e ironia.

 

Mas alguns problemas resistem e eu também resisto a resolver eles com soluções simples. Porém, é ótimo ler alguém que tem o mesmo sentimento de dúvida e da mudança e que não faz de conta que está tudo organizado à sua volta. É ótimo ler alguém que confessa estar perante um problema ou questão que o desafia e que lhe impõe lidar com contradições ou dificuldades que não tem superação garantida.

ULISSES VOLTA PARA TRÓIA

 

ULISSES VOLTA PARA TRÓIA

 

Após três mil anos Zeus chama ao Olimpo diversos Heróis e Heroínas gregas, com alguns etruscos, romanos e também persas que não ficaram para a história narrada em prosa e poesia, mas que estão lá numa espécie de grande palácio de festas, banquetes e recepções de novos heróis. Zeus com sua cabeça inquieta e sábia resolve que já era hora de se retomar algumas questões transcendentais e arcanas sobre o que é ser herói. Está pensando que passados tantos anos de certo paradigma é preciso reavaliar e reorientar certos conceitos, valores e ações de modo a conferir às novas gerações de heróis e aos novos pretendentes um conjunto de dilemas, problemas e trilemas que façam das novas façanhas, proezas e êxitos algo que resulte num novo impulso para que as novas gerações façam a humanidade viver mais com mais sabedoria e que se imponham desafios à altura dos novos tempos.

Entediado com seus passatempos e de certa forma por demais sabedor das clássicas narrativas, Zeus resolve que é hora já, que é o tempo de fazer o homem e a mulher terem novos desafios para chegar à imortalidade, à glória e à sabedoria. Andava considerando, em virtude dá chegada de certas personagens à vida eterna nos últimos dois séculos e após meditar muito sobre o sentido mais pleno de uma vida, na complexidade de uma vida que precisa enfrentar o destino, de uma vida que precisa deixar lições e também gerar prazer, amor e franca descendência, que é o tempo chegado. Após longa assembleia, árduos debates para escolher a quem caberia o papel e de que forma isto seria feito, sopezando e excluindo propostas pelo absurdo e o irrazoável, foi vencedora a ideia de Ulisses de que ele poderia voltar à Tróia no século vinte e um a partir disto reconstruir uma nova narrativa crítica e profunda dos cantos de Homero em seu conjunto. Para fazer isto Ulisses pediu à Zeus que lhe desse apenas dois ajudantes para esta viagem.

Dentre todos os presentes ele indicou como seus associados na empreitada Virgínia Wolf como secretária chefe do empreendimento e William Shakespeare como conselheiro especial. Tinha convicção e talvez após tudo continuaria tendo que com ambos seria capaz de colocar em novos termos as virtudes e a inteligência necessária para forjar o paradigma dos novos heróis e confrontar os modelos do passado e do futuro da vida dos homens e mulheres que quiseram alcançar a imortalidade e que de fato - para a surpresa de seus contemporâneos que pouco caso faziam disto - conseguiram. A história que contarei a seguir contará parte disto, porque a mim coube ser o miserável mortal que para sobreviver neste mundo deveria cumprir está tarefa. Frente a uma situação destas em que pegar ou largar me confronta com a vida, não tive outra opção à não ser assentir com indisfarçável júbilo e escondida lamentação a este desafio que me foi imposto, por azar para alguns e sorte para outros. Eis o que disto posso dizer nas próximas longas e mal escritas páginas e linhas....

Goethe ficou indisponível após uma longa e intestinal disputa com Joyce e Shelley, enquanto VW se manteve em silêncio por todo o debate de tal como que quando Nietzsche que estava na comissão de seleção e que havia sido voto vencido em relação a Shakespeare no confronto direto com o renitente e encazinado Pound e o eloquente Wolfe, entrou em um daqueles colapsos mentais que duram 100 anos, quando Platão narrou, só então, a Odisséia de cor e salteado colocando o desafio entre a coragem e à sabedoria em termos mais acabados que qualquer outro dos pretendentes apontando ao final com o indicador para Shakespeare e, dando de ombros, encerrou o discurso com um silêncio só rompido pela tagarelice inesgotável de  Wolfe que recorria alegando que Perkins havia suprimido justamente o argumento principal de seu esboço de dez mil páginas antes dele iniciar a leitura.

Após dolorosa aclamação para os adversários, Shakespeare tomou a palavra é com dois sonetos improvisados em voz média e soluçando indicou VW que recusou com um seco não, mas que ao abrir seu caderninho de notas viu por seus próprios olhos a seguinte nota: somente os heróis são imortais, diz o convicto, mas o sábio entende que quem narra com máxima perfeição a vida de um herói ganha também a imortalidade....

Porque Ulisses?

Nietzsche já havia chamado atenção para o caráter ambivalente, contraditório e trágico dos heróis que podiam sempre ter uma excelência, uma virtude, mas jamais a virtude completa ou à máxima grandeza em virtudes de tal modo que desbancariam um Deus ou Deuses com seus sucessos. A leitura da odisseia e da Ilíada sempre nos leva a pensar no tênue equilíbrio entre a coragem de Aquiles, baseada em sua extrema maestria e num senso de medida e sua absurda e desonrosa covardia para com o cadáver insepulto de Heitor e com o fato de que ele topa ir à campanha por glória pessoal e imortalidade dando pouca ou quase nenhuma atenção ao fato de que serve ao fim e ao cabo ao rei mais injusto, perverso e ganancioso que o mundo grego conheceu.

Olhar para Ulisses o super experto e super hábil com as palavras, a lança, a espada e também com o escudo, e que sempre consegue de alguma forma ludibriar seus adversários, manter ou mudar as crenças dos que estão à sua volta e também inventar soluções para problemas que poucos conseguem divisar. Ambos são heróis reconhecidos. Conquistaram a maior imortalidade possível, pois foram suas histórias lendárias foram contadas por rapsódia por muitos anos até que alguém as colocou em livros, outro as fez migrar de poema para prosa e muitos passaram a usar seus modelos e narrativas como moldes ou tropos heróicos. Eles, e devemos convir, todos os outros parecem possuir está dura contradição entre a virtude e o vício, entre o caráter e a perversão, entre a medida certa e o excesso ou desmedida que causa em alguns de nós o horror, a sutil impressão de que não se precisava tudo isto.

Nietzsche pensava que esta aversão estaria fundada num caráter excessivamente piedoso e comedido herdado de um cristianismo frágil e débil. De que não é a hubris, a desmedida arrogante e impositiva, mas sim a nossa afecção interna e moral que não se coaduna com a grandeza destes gestos. Não cabe em nós tal gesto como virtuoso. Prefeririamos um milagre ou mesmo a redenção de um pecado a cometer tal excesso. E há uma outra curiosidade aí.

O excesso ficou durante um bom tempo reservado somente aos nobres, pois os pobres mortais e a ralé não caberia jamais um excesso ou desmedida pois isso só seria possível como virtude, como consagração heróica ou histórica aqueles que possuem alguma descendência assinalada ou apontada em alguma escritura sagrada, profecia ou que eram patrícios da gente ou de fundação da cidade ou polis. Observe aqui que os semi-deuses são por si só uma justificativa ulterior que coloca explicação no fato daquele relés e miserável mortal conseguir praticar algum ato assaz grandioso ou mesmo inscrever uma façanha qualquer nos livros e histórias dos homens. E esta prática de justificação do herói pela linguagem de uma linhagem privilegiada, azul ou nobre prossegue até hoje. Erguem assim mitologias para os heróis ou semi deuses, que fazem o soterramento de qualquer possibilidade de crítica ou objeção a sua virtude por incompletude ou imperfeição. E o contrário disto também ocorre. Não sendo nobre qualquer imperfeição serve para colocar a personagem no latão de lixo dá história. Um êxito miserável é, assim, irreconhecível. Zeus se comoveu com o que vislumbrou ao fazer a panorâmica crítica e ao constituir uma certa arquitetônica das virtudes e fazendo a árvore genealógica dos heróis, das Heroínas, dos semi deuses, viu que sua conta de responsabilidade sobre eles, e a conta de outros deuses também, era muito  maior do que lhe parecia justo e que está desmedida lhe trazia sérias dificuldades para compreender hoje como homens cuja descendência mais humilde são tão importantes e decisivos para a vida é a sobrevivência dá humanidade.

Zeus estava já pelas tabelas com mitologias, pois percebia que hoje existem tantas vozes e tantos feitos a serem narrados que não cabia mais mesmo atar cada façanha a uma divindade ou linhagem, pois que os homens e as mulheres haviam aprendido por exemplos incompletos, algumas linhas tortas e outras retas, como agir virtuosamente ou de forma que seu gesto lhe daria a imortalidade. Devo, porém, dizer em defesa dos que estão a disputar seus méritos hoje que não haveria como revogar títulos de heróis e que não é o caso também de que o palácio e o reino de festas dos heróis estava superlotado não, o que ocorria de fato é que alguns que antes ingressaram com altivez e supremacia ao salão de festas, hoje andavam acabrunhados e tinham com o tempo adquirido maior reflexão sobre seus atos e concluído em seus íntimos que não era bem assim ou que não era tudo isto não. Ulisses era o único que muito rapidamente admitiu isto nos debates, e mesmo que tivesse um interesse ou motivo inconfessável para tal, havia narrado virtuosamente e com muita calma o seu próprio problema em relação à questão geral.

Por bem, Zeus julgou com assentimento e concordância expressa e silenciosa de menear de cabeças de outros deuses e heróis, que era ele o homem talhado para tal grandiosa, muito importante e arriscada tarefa. Muitos heróis ficaram refletindo também na capacidade de Ulisses de se desembaraçar das armadilhas do destino e o próprio Hércules assentiu que só mesmo Ulisses conseguiria vencer tantos e tão trabalhosos desafios e voltar ao salão com sua imortalidade preservada e com algum ganho de sabedoria para todos. Não serão citados os invejosos que repugnaram a indicação do Olimpo, mas não faz diferença porque qualquer um de nós mortais é capaz de ver entre os heróis os mais invejosos e os menos interessados em caprichos e sutilezas.

UM SONHO COM MEU PAI - ROTEIRO

 

UM SONHO COM MEU PAI - ROTEIRO

PREÂMBULO

Acho que ele tentou me dizer algo mais do que isso que disse quando me deixou ali naquele lugar e foi embora. Mas enfim disse:

Chegamos aqui, muito bem fique aí a vontade e espere.

Quando era menino ele me levava junto para lugares muito pitorescos.

Onde haviam pessoas pitorescos e muito singulares.

E eu gostava muito desses passeios porque sempre aprendia, descobria ou encontrava algo ou alguma coisa que era aparentemente desimportante, mas cujo valor eu descobria com minha atenção, imaginação e lembrança.

Sim, porque muitas vezes a descoberta me vinha através de um estalo, em que uma lembrança se misturava ao presente e vinha a descoberta.

1.       O CENÁRIO

Deve haver algo como uma espécie de legenda ou portal em todas as cidades do mundo e era esse lugar para mim no sonho.

E dessa vez meu pai me levou para esse lugar 

Locais onde homens estranhos se agrupam, conversam, bebem o que podem pagar ou o que lhes dão

Estacionam carros, carroças ou bicicletas, caminhões e se você procurar bem vai achar até outros tipos de naves, barcos e outros não assemelhados

Não importam marcas, nem anos e nem o estado aparente desses veículos, não importa se se são próprios ou prestados

Não importa também as chaves desses veículos

Qualquer um pode entrar e ligar e sair e voltar a hora que quiser

2.       OS HOMENS

Os homens que vivem meses lugares não tem coisa alguma

Isso não quer dizer que são pobres e nem se distingue isso entre eles mais

Só possuem o que carregam nos bolsos, tem em suas mãos, em suas mentes e memórias e em seus corações inescrutáveis

Eles não brigam e não falam alto e vão chegando e ficando

São mansos ali, não jogam coisa alguma ali

Não tem baralhos e nem mesas de sinuca

Eles não possuem nada

 

Alguns fumam e outros mascam um capim

Não tiram nada de ninguém

E também não roubam ou negociam

O dinheiro quando entra nesses lugares é tratado como coisa e é só isso

Ninguém sabe de onde eles vem e nem para onde eles vão

Em momentos especiais eles aparecem e se encontram e ali ficam para não fazer nada até fazer o que importa

Ninguém fala de família, religião e política e ninguém tem contas a pagar ou a cobrar

O passado é o presente e o futuro é imediato

3.       A PAISAGEM

Nesse lugar a paisagem é um conjunto pitoresco de casebres em três esquinas

Numa esquina eles ficam sentados ou em pé a se olharem e a dizerem coisas laconicamente

O maior Discurso nesse lugar e ouvido em silêncio

E as interrupções são apenas

Rápidas interjeições ou

Sim ou não ou talvez

Mas eles falam

E falam muito

4.       A MINHA PERCEPÇÃO

Você escuta e fica prestando atenção

Quem chega ali pela primeira vez como eu

Sente algo inexplicável

Parece que os olhos vão se abrindo pela primeira vez na vida

E enquanto isso a paisagem e seus elementos vão aparecendo e compondo um cenário

Trazido pelo pai, pelo avó, pelo Padrinho ou pelo irmão tem que apreender e se situar com atenção

5.       AS CASAS

No casebre de ficar temos um chão batido, uma casa sem portas com três aberturas para o leste, o sul e o oeste e um corredor entre elas com alguns cantos onde existem sofás e mesas e algumas tralhas

Parece um ferro velho ou uma borracharia

 

Fica em uma esquina que é rebaixada em relação a rua

Com um pátio grande com uma árvore muito frondosa cujos troncos se espalham em todas as direções sombreando o terreno inteiro e sobre o casebre até a rua

6.       OS ANIMAIS

Na árvore vemos lagartos, cobras e gatos

Eventualmente você vê uma cobra se atracar com um gato ou gata grande colorida

Todos os animais tem nomes e são tratados como gente

E andam para lá e para cá tão a vontade quanto os homens e as mulheres que chegam ao anoitecer

Parece mortal essa briga da gata com a cobra, mas quando você olha melhor descobre que elas estão brincando naquele galho

Se engalfinhando e fugindo uma da outra

Mas você não consegue se fixar muito a isso

Logo passa a observar o comportamento de outros animais e também da diversidade da flora nesse local

Tem ervas e chás em tudo que é lugar

Algumas verduras num campo largo descendo a colina

Mais ao leste um pomar com várias espécies

Espadas de São Jorge muito vividas ao lado do portão principal sem cerca e sem poeira alguma sobre elas

Voltamos a sombra da árvore abrindo nossa visão do lugar

Sob ela ficam os carros estacionados sem ordem e aleatoriamente

Na varanda a leste desse casebre temos dois pilares sobre os quais estão a cobertura que faz sombra ao sol e telhado para a chuva

7.       HOMENS CENTENÁRIOS

E ali ficam esses homens, alguns mais jovens e outros adultos e nenhum deles parece velho

Mas quando você os olha nos olhos parecem ter um brilho centenário nas suas almas

Eles ficam ali conversando dessa forma meio desordenada

Se entra e se sai a hora que quer e não é preciso dizer adeus ou olá

Você vai ficando e quando vê passou uma semana

Comeu diversas refeições

Dividiu o pão e a bebida se souber dar e pegar

8.       O BAR

No outro casebre fica o bar

Na esquina oposta

O que o bar oferece é o que ele tem

E só o dono aceita coisas para te servir

Ninguém mexe na bebida e ninguém grita por atenção

Você só é servido se chegar na hora certa ou,melhor, no minuto certo em que ele ali estiver

Ele sai do bar e vai fazer qualquer coisa em qualquer lugar

Abandona o posto, mas ninguém mexe em nada

Quando volta te atende

9.       VOU BEBER

Você pede cerveja ou qualquer coisa e ele vai te olhar nos olhos para te dizer o que deve beber

Nesse atendimento especial ele pode te dar água na refrigerante, cachaça, licor, vodka ou qualquer noutra bebida e você não pode recusar

No meu caso pedi cerveja e ele já pegou dois limões em um cesto de vime e foi fazer uma caipira

Parecia surdo e mudo e de repente se virou para mim com um copo de caipira muito lindo e disse

Toma, isso é para você

É o que você precisa

Um outra rapaz que estava ali sob aquela choupana ao pé do monte me olhou e assentiu: aceita e bebe

Vai te fazer bem

Ficamos ali e foi bom mesmo

O Barman saiu e foi fazer uma coisa

10.   OS DRAGÕES CHEGAM

Enquanto estávamos ali bebendo chegar dos dragões

Na verdade eram dois lagartos gigantes que primeiro rondaram a entrada e nos olharam balançando duas caudas verdes e abrindo suas bocas grandes e botando as línguas para fora

Para mim, que cheguei ali pela primeira vez me deu acesoevi de ligeiro temor

O rapaz do lado disse bebe tua caipira e relaxa

E assim eu fiquei

 

Os dragões entraram - primeiro no maior e foi cumprimentar ele brincando e esfregando a cabeça no seu corpo como um gato

Eu notei que era um tratamento amistoso e tive então a paciência

Fiquei ali e ele veio a mim

Primeiro chegou ligeiro para me assustar e eu fiquei impassível e não me movi

Então ele pediu carinho e acariciei a sua cabeça

O nome dele era Jack e parecia falar comigo

Depois disso entrou o dragão maior e veio diretamente a mim

O nome dele era Lucius

Já não m assustei mais e em pouco tempo estávamos nós três nos pressionando como amigos em um jogo

Depois disso eles sentaram um de cada lado a mim e eu sentei em um mocho e quando dei por mim já estava recebendo um cerveja gelada para beber e ali fiquei por um bom tempo sem falar nada

11.   A CHEGADA DAS MULHERES E A FESTA

Até que vieram todos os outros homens e jovens e também algumas mulheres começaram a chegar e fizeram uma roda e começaram a bater suavemente nos seus mochos, em metais e vidros, talheres garrafas e copos, com um sono suave

Em seguida chegaram alguns violões de tamanhos diferentes e começaram a tocar uma série De canções que nunca tinha ouvido

12.   O CÉU ESTRELADO SOBRE NÓS

Fiquei ali e antes do anoitecer ligaram uma fogueira baixa enquanto as luzes do crepúsculo deixavam o céu primeiro alaranjado, depois vermelho e por fim arroxeado

Dali onde eu estava dava para ver em oposição ao sol a vc primeira estrela a despontar

E no horizonte que o sol descia duas estrelas a lhe acompanhar

Quando o sol desapareceu completamente atrás da colina vinha despontando uma lua cheia Gigantesca

E a música continuou

13.   A CHEGADA DELA

De repente você veio a mim e me beijou as faces e me abraçou na cintura e ali ficou comigo

Senti antes de você chegar teu cheiro

E quando chegou veio acompanhada de cães e gatos

Que ali ficaram sem cerimônia no espaço que havia para ficar

 

Você olhou nos meus olhos e me disse que era amor

Mas que amor não é energia

Amor não é força ou fraqueza

Amor não é presença ou distância

Amor não é perder ou ganhar

Amor é sempre mágica

 

Agora fica comigo

Nós nos beijamos na boca e o sonho acabou

Fim

SOBRE PORQUE ESCREVER, SEUS ELEMENTOS, COMPOSIÇÃO E UMA ANALOGIA SIMPLÓRIA COM A PINTURA E A MÚSICA (1)

 

SOBRE PORQUE ESCREVER, SEUS ELEMENTOS, COMPOSIÇÃO E UMA ANALOGIA SIMPLÓRIA COM A PINTURA E A MÚSICA (1)

 

Este texto é dedicado a todos que amam, aos que escrevem, aos que fazem artes, aos que educam e aqueles que ainda tem em si preservados os seus meninos e meninas, desejando que aqueles que se perderam, se reencontrem para poderem viver e deixar viver, cuidar e proteger o que mais importa que é a vida.

 

Vamos começar com algo que nos traz o desafio da linguagem, do amor e da vida combinadas, com essa pichação de mais de dois mil anos inscrita em uma parede de Pompéia:

 

"Viva quem ama,

morra quem não sabe amar.

Morra duas vezes mais quem proíbe o amor."(2)

 

Enquanto falava de um assunto delicado das nossas vidas, que temos momentos bons e ruins e que infelizmente, após momentos muito bons e animadores podemos viver também momentos muito ruins e trágicos, eu pensava também em paralelo em mais duas coisas ou questões (3). E pensava isso, dessa forma aparentemente confusa, porque talvez os escritores e escritoras sejam aqueles que percebem e expressam justamente isso (4). Acho que esse pichador de Pompéia pensou nisso também (5).

 

Ou pelo menos, desde Homero temos sob nossos olhos e podemos ouvir essa descrição de uma sucessão de momentos bons e ruins se intercalando na vida das pessoas, dos personagens e mesmo dos deuses gregos de um modo aparentemente irregular, mas que é sucessivo e repetido (6). Depois da tempestade vem a bonança, mas também após a bonança pode advir a tempestade (7). A ordem aqui expressa a escolha de uma perspectiva e objetivo consolador. Como uma regra da vida aqui se revelando.

 

Se estais feliz, aproveite muito, porque poderás ter um outro momento logo depois ou mais cedo ou mais tarde de infelicidade também. Viver é suportar isso. E talvez os escritores escrevam e deem testemunhos ou criem ficções com elementos da realidade também para suportar isso ou por algum encanto com isso em suas existências (8). É um pathos existencial (9).

 

Mas a questão chave aqui é também outra. De um lado, porque escrevemos e que tipo de paixão é essa? De outro lado, me veio a associação livre entre escrever, pintar e fazer música (10). Portanto, podemos refletir sobre como fazemos isso e tentar encontrar algumas respostas ou candidatas a respostas ou somente algumas pistas.

 

Em todos esses casos - compor um texto, uma música ou uma pintura, temos uma atividade que consiste em compor algo a partir de um conjunto de elementos simples, complexos e variados. Essa composição envolve uma escolha do material disponível e mesmo uma procura de novos materiais. Na escrita, em primeiro lugar, as letras, vogais e consoantes, mas também os sinais de pontuação e acentuação, além de todos os outros sinais e agora também escrevemos com emoticons.

 

Ou seja, na própria linguagem atual desse mundo virtual fazemos a composição também com imagens em meio ao texto ou acompanhando o texto. Os textos passam a ser ou podem ser ilustrados por signos, símbolos e ícones simples. E ainda temos os memes ou as imagens e textos de citações que servem como uma pedra de toque ou ponto de partida para compor. A arte então está na escolha, na busca, na seleção dos materiais e na disponibilidade de um acervo que envolve desde textos lidos até outras associações. O artista compõe tanto na forma quanto no conteúdo, mas também a partir de influências e remissões ou ligações a outras fontes.

 

Mas também lidamos com outros materiais como as palavras que desempenham funções de ligação, marcação e também ênfases nas narrativas ou frases. E mesmo na linguagem escrita fazemos usos de certas expressões que são quase stardards ou padrões e chaves de analogias, metáforas ou figuras de linguagem de uso muito comum. Aqui temos uma demonstração interessante da malha que a linguagem ergue com múltiplas ligações entre milhares de textos dentro de uma cultura e assim tanto o autor quanto a obra podem ser vistos como pontos de ligações entre diversos outros numa trama ou rede temporal, espacial e cultural sobre o mundo.

 

Dispomos ainda de apelidos, gírias e expressões populares em cada cultura, assim como podemos usar também expressões latinas, gregas ou estrangeiras em meio ao texto. E nem sempre isso é feito por exibicionismo banal. Muitas vezes serve para ilustrar ou marcar no texto o que chamamos de ênfases, assim como também podem marcar relações ou conexões desse texto com outros textos.

 

As diversas formas de expressão possíveis também tem características que escolhidas dão efeitos à uma narrativa. Por exemplo, o mesmo enunciado descritivo pode ser transformado a um modo poético e ser acrescentado a ele palavras com mais ênfases simbólicas ou metafóricas. Também a retórica pode entrar aqui através de diversos artifícios como a reiteração, a inclusão de interrogação ou exclamação, a mera colocação ou adição de reticências ao final de uma estrofe ou expressão e etc.

 

Analogamente podemos fazer quase as mesmas coisas com a pintura e a música. Com mudanças nos traços e nos componentes e também com a inclusão de cores, misturas ou ruídos e sons, tonalidades e diversos timbres de instrumentos de tal modo que uma frase ou quadro ou retrato simples ganha uma outra característica ou estilo pelo leque de variações possível.

 

Minha mãe dizia que a língua portuguesa era maravilhosa porque justamente tinha uma riqueza vocabular que permitia na analogia dela tocar um piano cheio de notas ao falar ou escrever ao contrário no exemplo dela de outras línguas mais concisas e cujo vocabulário parecia ser mais estreito.

 

Bem, nem preciso exemplificar a partir dessa trama de textos acima indicada, a imensidão do universo de possibilidades já realizado na pintura e na música. Basta se imaginar numa série infinita todas as composições da pintura e da música para se ter uma ideia dessa variabilidade e margem de criação, muito ampla e ainda inesgotada.

 

Nesse ano, por certa fixação temática e obsessão com a relação entre Miles Davis e John Coltrane, andei estudando jazz, por exemplo, e cheguei na teoria do jazz modal que marcou talvez a maior contribuição de ambos em meados dos anos 50. A teoria cromática ou a exploração do modo lídio de George Russell chama atenção por ser talvez a última grande teoria inovadora da música ocidental. Você descobre que ela foi inspirada numa expressão do jovem Miles Davis que ao ser perguntado o que ele queria estudar e fazer em música simplesmente e laconicamente respondeu: todas as possibilidades. A partir disso George Russel desenvolveu sua base conceitual que está contida no livro Lydian Chromatic Concept of Tonal Organization - The art and science of tonal gravity (1953).

 

Então, um escritor, um pintor e um músico, e em especial um escritor compulsivo e imaginativo nem sempre está preso as formas comuns de expressão e justamente tenta sempre avançar para outras possibilidades de expressão. Ele tenta buscar o além das possibilidades já apresentadas. Aqui, a expressão de Miles Davis de tentar conquistar "todas as possibilidades" tem analogia com um impulso característico da filosofia grega e que vai marcar a filosofia até os dias de hoje: a busca da totalidade(M).

 

Mas algo me levou a pensar assim. No momento em que estava escrevendo essa resposta sobre porque escrevemos e se havia alguns possibilidade de que fossemos possuídos por algum espírito que nos faz dizer ou registrar certas mensagens, me dei conta deste aspecto lembrando também de Arthur Rimbaud e seu poema das Cores das Vogais. O insight é simples e límpido aqui. Cada vogal é associada a uma cor. Podemos discutir a escolha de Rimbaud e inclusive pensar tanto nos nomes das vogais como nos nomes das cores em todas as línguas possíveis e em suas múltiplas variações.

 

Em princípio, são cinco vogais, mas há o Y que, por exemplo, pode corresponder a uma cor também, mas que não é contemplado. E, além disso, estamos muito presos aqui a dois elementos tradicionais e eurocêntricos. De um lado, as cores básicas e de outro lado não contemplamos, para contribuir no nosso alargamento aqui, as outras línguas além das gregas, latinas ou românicas. O árabe, o chinês e outras línguas tem também seus signos e mesmo símbolos próprios que são extremamente expressivos também.

 

O que se conclui disso, é que muito rapidamente acabamos sempre pulando de um elemento simples ou componente básico para algo mais composto e complexo. O impulso para uma totalidade ou essa busca de uma totalidade se traduz tanto na abertura para um tema, quanto na evolução de uma frase ou expressão, de um desenho ou esboço, de duas ou cinco notas musicais em um determinado ritmo, para uma crônica, um romance, um poema ou uma ópera, uma tela, um triptico, ou uma canção, um lied, uma modinha, um concerto e uma sinfonia..Do menor para o maior, do mais simples para o mais complexo, da frase para a narrativa extensa, de Ulisses foi para a Guerra de Tróia até a Odisséia e a Ilíada.

 

Pois bem, eu creio que é justamente aqui que nós encontramos a sentença que talvez explique esse negócio de escrever. Numa bela metáfora já conhecida, nós temos todo o universo em uma casca de noz, assim como muitas vezes temos toda uma História numa pequena estrofe que lhe serve de base, em um trecho de um poema, em um fragmento filosófico e mesmo com algum esforço de imaginação, para pegar um modo narrativo muito peculiar e extremamente elaborado, podemos construir um romance a partir de uma crônica bem feita, bastando muitas vezes abrir o que nela está subentendido ou em plena gestação, omisso ou subliminar e expor à luz de um texto.

 

Então, o que eu quero dizer é que os escritores e escritoras, em especial os compulsivos que escrevem sempre mais do que publicam e que abrem sendas inteiras em textos, ensaios, crônicas e poemas, sempre começam com uma ideia aparentemente simples e acabam expressando isso de forma mais extensa.

 

Porém, há também aqueles que vão ruminando em suas cacholas por meses e até anos até começarem a por em palavras aquilo que era apenas uma ocupação mental quase silenciosa. Então, esse começam em algum ponto e vão evoluindo de tal modo que aquilo se apresenta em um texto, em uma composição e etc. E alguns até pensam muito na forma de fazer isso. Pensam no modo como vão construir e também selecionam modelos e esquemas alternativos até darem fim a essa composição. Eu creio que o mesmo acontece também com músicos e pintores e que, mudando o que precisa mudar ou usar para isso, eles vivem algo semelhante.

 

Tem um argumento que pode ser aposto aqui contra essa abordagem, aliás bem mais de um argumento, porém eu acredito também que isso tudo possa ser uma experiência mais consciente e menos consciente e que na qualidade não faz diferença alguma. Porque tanto os racionalizadores desse processo quanto os mais intuitivos e aparentemente inspirados acabam escrevendo, pintando ou compondo algo que nos fascina igual e na recepção das suas obras as considerações sobre se o processo e consciente ou não, são simplesmente desprezadas, porque o que nos encanta é a obra e aquelas emoções, pensamentos ou percepções que ela nos suscita.

 

É claro, porém, que isso não torna irrelevante a consideração de um crítico sobre esse processo todo ou mesmo o juízo de um mestre qualquer nessa arte sobre a qualidade da obra do aluno ou aluna e mesmo sobre o virtuosismo ou genialidade da sua execução, performance ou interpretação. Aqui vem a baila outros artistas que também vivenciam nos seus ofícios esses processos.

 

O ator ou atriz, o orador ou oradora, o Professor ou Professora que dá ou faz a mesma peça, discurso ou lição a cada vez com uma interpretação possível. E que reflete depois consigo mesmo, com seus pares de palco, com seus amigos, com a audiência ou com os alunos e alunas em uma interação muito especial para ir moldando aquilo até a sua perfeição ou maestria excepcional. Alguns atores e oradores, professores e senhores fazem isso de modo tão perfeito e excepcional que mesmo que repitam a mesma interpretação, por força de circunstâncias particulares e incontroláveis, cada apresentação é uma só.

 

Essa é também uma demonstração de que mesmo a cópia perfeita ou a reprodução marcadamente similar há de ser diferente, posto que os elementos de sua composição apesar de serem exercitados e selecionados, ensaiados ou escolhidos de um modo metódico, ficam expostos ao improviso, a interação com a plateia e também escapam de forma maravilhosa ao domínio do seu autor, ator ou também receptor.

 

Então, há algo de mágico nesse processo que torna essa experiência muito mais valiosa do que aparece aqueles que não percebem a sua riqueza ou que não tem sensibilidade para apreender ou imaginação para delirar com prazer nessa exposição de elementos em uma composição apresentada assim.

 

Fim

 

P.S.: Fiquei pensando em Walter Benjamim enquanto escrevia os últimos parágrafos. Mas não fiz nenhuma questão de pegar o livro na prateleira para ajustar ou trazer alguma questão do seu clássico e extraordinário A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica.

 

Isso não significa que não deva ser lido ou que seja descartado por mim. Muito antes pelo contrário. A única ideia dele que me cabe aqui e que é sagrada para mim é a da existência de uma "aura" na obra de arte. Na tese dele a aura pode ser perdida com a reprodução. Perder a aura é quase o mesmo que perder o significado. Ou seja, quase ocorre aqui o que ocorre se repetirmos uma palavra mil vezes. Restará só o seu som - o seu corpo físico, mas o seu sentido ou corpo espiritual desaparecerá.

 

Eu desconfio sim que ela, a aura, pode ser perdida, mas também desconfio que muitas vezes ela sequer pode ser apreendida. Porque aqueles que poderiam lhe apreender o sentido perderam seu corpo espiritual - que talvez seja a imaginação livre e sem censura - ou na expressão do pichador de Pompéia não sabem amar. E isso, essa constatação, é de uma tristeza imensa para mim.

 

Porque ela não será aprendida quando a técnica e a reprodução mecânica e automática da vida for tão violenta de tal modo que a sensibilidade humana tenha sido completamente vampirizada pelo sistema e tenha tornado cada um de nós apenas um consumidor grosseiro de coisas, com suas manias próprias, suas drogas próprias e completamente incapaz de perceber a aura no próximo, em suas obras e em suas vidas.

 

Essa neutralização ou supressão do espírito pela mecânica social se apresenta de forma brutal no holocausto e em outras experiências terríveis da humanidade, mas também no uso instrumental do outro e na alienação de si mesmo. E até mesmo um vampirismo amoroso se apresenta em meio a isso, de tal modo que aquele ou aquela que não sabe amar e que também não possui mais aura, mas apenas um simulacro, rouba ou desapropria e expolia de ti os afetos passados, os afetos presentes e os afetos futuros e joga tudo isso na lata do lixo. E é assim que toda a tua amorosidade e capacidade de amar é descartada e desprezada por quem não sabe amar.

 

Que cada um tenha em si o melhor dos seus meninos e meninas que foram um dia, porque isso também é uma arte e isso é da ordem da nossa vida.

 

NOTAS:

 

(M) Depoimento de George Russel sobre essa expressão que traduzi como “todas as possibilidades” que no texto é changes e significa todas as progressões e mudanças possíveis. Leia: Miles sort of took a liking to me, when he was playing with Bird1 [in clubs] along the Street [52nd Street]. And he used to invite me up to his house. We’d sit down and play chords. He liked my sense of harmony. And I loved his sense so we’d try to kill each other with chords. He’d say check this out. And I’d say wow. And I’d say listen to this…. I asked him one day on one of these sessions, what’s your highest aim? – musical aim – and he said, to learn all the changes2 . That’s all he said [laughs]. At the time I thought he was playing the changes, you know. That he was relating to each chord and arpeggiating, or using certain notes and extending the chord and all that. The more I thought about that, the more I felt there was a system begging to be brought into the world. And that system was based on chordscale unity which traditional music had absolutely ignored. The whole aspect of a chord having a scale – that was really its birthplace. (p. 151)

SOBRE HONRAR A PRÓPRIA ALMA: PLATÃO, AS LEIS, LIVRO V

 

SOBRE HONRAR A PRÓPRIA ALMA: PLATÃO, AS LEIS, LIVRO V

Fui ler As Leis numa noite desse ano, bem provocado por uma postagem do Professor Roberto Romano da Silva, in memoriam, sobre o tema do amor excessivo de si mesmo, e acabei buscando um pouco antes da  citação dele o contexto do Livro V que antecede essa passagem citada por Roberto, para ver como se chega a esse ponto. Eis que encontrei lá uma passagem para mim muito maravilhosa no núcleo da doutrina tardia de Platão sobre a alma e sobre um tema de ética e de psicologia.

Vejamos a passagem citada pelo Professor primeiro com seu comentário balizador. A questão é que o amor excessivo de si mesmo não honra a sua alma, como veremos depois. A passagem serve sim como bem comenta Roberto a afirmação de Platão para todos os homens.  Segundo Roberto e Platão: O amor de si mesmo (filáucia) é o pior malefício. E conclui Roberto, como nós nos amamos!

 “Todo homem  deve ser ao mesmo tempo apaixonado e gentil no mais alto grau. Porque, de um lado, é impossível escapar dos malefícios de outros homens quando tais malefícios são cruéis e difíceis de remediar, ou mesmo irremediáveis, a não ser por uma luta vitoriosa e auto defesa e pela punição mais vigorosa; e tudo isso nenhuma grande alma pode efetivar sem nobre paixão.  Mas, de outro lado, quando homens cometem erros remediáveis, deve-se em primeiro lugar reconhecer que todo malfeitor é um malfeitor involuntário, pois ninguém em nenhum lugar quer voluntariamente adquirir grande males, menos ainda em suas preciosas posses. E o mais precioso verdadeiramente em todo homem (...)  é a alma. Ninguém, pois, admitirá voluntariamente nesta preciosíssima coisa o pior mal vivendo nele durante toda a sua vida. Agora, o malfeitor em geral que comete erros deve ser lamentado pois é permitido mostrar piedade a quem pratica erros remediáveis, descontar sua paixão e tratá-lo gentilmente (....) mas relativamente ao homem totalmente e obstinadamente perverso e ruim pode-se dar curso livre à ira. Mas afirmamos que pertence ao homem bom sempre ser ao mesmo tempo apaixonado e gentil. Há um mal, maior do que todos os outros presente nos homens (πάντων δὲ μέγιστον κακῶν ἀνθρώποις), implantado em suas almas e que cada um deles desculpa em si mesmo e não faz esforço algum para evitar. É o mal que vem todo homem ser por natureza amante de si mesmo e que é certo ser assim. Mas a verdade é que a causa dos piores erros em todo caso está no excessivo amor que a pessoa tem por si mesma. Porque o amante é cego na sua visão do objeto amado. Ele é péssimo juiz das coisas justas ou e boas e nobres e  se convence de que sempre o que é seu merece mais estima do que merece na verdade (...) Todo homem deve fugir de amar a si mesmo veementemente, mas deve estar sempre à procura do que vale mais do que ele, sem buscar se por, em tal situação, atrás de algum sentimento de falsa vergonha”. (Platão, Leis, 731 d- e)

 Esse amor de si deve ser para alguns apenas algo como vaidade, orgulho ou excessiva auto estima e também narcisismo. Fico me perguntando se não é algo como a Hybris que Aristóteles vai apontar depois em suas Éticas, a Nicômaco e a Eudemo. Parece que sim, porém, não no sentido negativo sempre divisado, mas sim como aquela grandeza que só quem tem caráter e dignidade inegociáveis pode ter.

Por outro lado, é impressionante como Platão parece introduzir essa nova modalidade de vocabulário moral nesse texto. Você abre lá As Leis, sua última obra, e se dá conta dessa determinação originária da consciência moral ocidental em Platão. Talvez seja só uma impressão minha, mas a releitura desse Platão tardio pode nos ajudar a retomar um fio da meada perdida na trama da moralidade e da imoralidade contemporânea.  

Na passagem, Platão apresenta uma abordagem do que me parece ser uma questão muito fundamental Sobre Honrar a Própria Alma. Então resolvi fazer esta leitura.

Fiquei, primeiramente muito feliz com essa reflexão e me dei por conta de que o fundo oculto mesmo das questões atuais é de fato o tema das virtudes intelectuais e da nossa consideração adequada de respeito a si mesmo e de respeito ao próximo. Na acepção platônica da Leis trata-se de honrar a própria alma como uma forma de preservar sua dignidade ou mérito próprio e ser capaz de compartilhar ou na expressão da tradução platônica repartir   

“De todos os bens que se possuem depois dos deuses, o mais divino é a alma visto que é o mais pessoal.” "Nada que é maligno confere honra."

PLATÃO, As Leis, Liv. V, 726.

E o núcleo que divide absolutamente o mundo, os homens e todas as almas: "Nada que é maligno confere honra."


IN MEMORIAM ROBERTO ROMANO DA SILVA

 

PLATÃO: VIDA E OBRA - PARA O POLÍGRAFO DA ESCOLA: PRIMEIROS ANOS

 

PLATÃO: VIDA E OBRA - PARA O POLÍGRAFO DA ESCOLA: PRIMEIROS ANOS

Vamos tratar aqui, resumidamente,  vida e obra de Platão.

Esta não é uma teoria de nomes próprios - como a mais clássica teoria de Saul Kripke que trata da relação entre este nome e seu portador, e do valor de verdade de certas proposições em relação a este sujeito em Naming and Necessity - mas sim apresentar as coleções de proposições mais plausíveis sobre este homem que foi chamado de Platão, mas que foi batizado por seus pais com o nome de Aristocles.

Platão - nasceu Em 428 a.C. (427 a.C.), após a morte de Péricles, nasceu em Atenas Aristócles que depois passa a ser chamado de Platão, por conta de seus ombros largos. Era de uma família tradicional e aristocrática e recebeu boa educação. Na juventude, Platão torna-se um discípulo de Sócrates e já interessava-se em política e filosofia. Não teve esposa e nem filhos.

Quando, em 399 a.C., Sócrates é julgado e morto, Platão fica descrente dos rumos da democracia ateniense e se sente inseguro como muitos outros discípulos de Sócrates. Então resolve viajar e sair de Atenas. Vai à Magna Grécia (sul da Itália) onde conhece Arquitas de Tarento, um governante e filósofo que o inspira  a pensar e elaborar sobre a idéia de um rei-filósofo para a solução dos problemas políticos. Passa em 388 em Siracusa, cidade localizada na Sicília, onde conhece e torna-se amigo de Dion, cunhado de Dionísio, tirano da cidade. Será nesta cidade que Platão tenta aplicar suas idéias sobre política. Mas não consegue. Ainda durante essa viagem, Platão vai ao Egito, mas o que aconteceu durante essa jornada é praticamente desconhecido. Nessa época Platão escreve seus primeiros Diálogos e, provavelmente, começa a esboçar a obra República, uma de suas maiores obras. Os Diálogos dessa fase são considerados "socráticos", como a Apologia de Sócrates e Eutífron (além destes O pequeno Hípias, O grande Hípias, Protágoras, Íon, Criton, Alcibíades, Cármides, Laques, Lisis  e Górgias até aprox. 390 a.C. ).

Por volta de 387 a.C., já em Atenas, Platão funda sua Academia. Durante vinte anos,  dedica-se ao ensino e a produção de suas obras. Desse período são os Diálogos considerados de  transição ou maturidade, como Menéxeno, Menon, Eutidemo, Crátilo, Fédon, Banquete, República e, finalmente, Fedro.

Em 367 a.C., Dion convida Platão à Siracusa. Dionísio I seria sucedido por Dionísio II. Platão vê nessa situação a chance de mudar a política da cidade, mas fracassa, pois ele não consegue seu intento junto à Dionísio II.

Retornando à Academia temos a última fase de sua obra que pode ser considerada a fase do amadurecimento de sua filosofia que o afasta de seu mestre Sócrates. É nessa fase que podemos ver sua visão do mundo das idéias em sua plenitude em obras como Teeteto, Parmênides, O Sofista, O Político, Timeu, Crítias, Filebo e As Leis  (que é inacabada e é geralmente considerada a última obra de Platão). Para além destes diálogos, existem ainda uma série de escritos apócrifos e treze cartas cuja autenticidade não é unanimemente reconhecida, salvo a Carta VII.

Platão morre em 348 a.C. (ou 347 a.C.), cerca de dez anos antes de Felipe da Macedônia conquistar a Grécia. Isso mostra que talvez ele estivesse certo em criticar a democracia e a política ateniense de uma maneira geral por temer que ela levasse ao fim do período clássico, como de fato acabou por ocorrer. Advindo logo depois a decadência grega com a abertura do período helenístico após Alexandre o Grande em 323 a.C.

Mas mesmo assim a Grécia acaba triunfando culturalmente sobre todas as civilizações posteriores em influência e se constitui na tradição mais sólida dos últimos 3000 mil anos, só pareada pelo cristianismo. Perderam na política - os estados gregos deixam de existir e até hoje a Grécia segue dependente de outras matrizes econômicas e políticas regionais e européias, mas a sua cultura e a sua herança não sofre um milímetro de sombra de nenhuma outra cultura ocidental ou oriental no mundo moderno.

P.S.: Parte mais relevante do texto foi usada na escola para introduzir Platão aos alunos de ensino médio em setembro de 2013.

A VERTIGEM METAFÍSICA EM HEIDEGGER

 

A VERTIGEM METAFÍSICA EM HEIDEGGER

 

"Para quem fica impressionado/a com alguns poucos intelectuais que defendem, apesar de todas as evidências de autoritarismo e de suspeitas de corrupção,  Bolsonaro basta lembrar que o grande filósofo Heidegger era nazista e fez discursos em defesa do Führer. Não é uma questão intelectual. É uma questão de poder e de sua afirmação."

Érico Andrade

O post do amigo e professor de filosofia, de meses atrás, Érico Andrade sobre os intelectuais que persistem na defesa de Bolsonaro me faz ter a sensação de estar em uma grande bolha progressista.  

Mas também me provoca a curiosidade de saber quem seriam esses intelectuais resistentes ao que já está mais do que insustentável e indefensável. Porém, essa curiosidade se dissolve rapidamente pela insignificância dos mesmos. Me questiono também sobre onde eles encontram razões ou razoabilidade para fazer a defesa de Bolsonaro. Suponho que devam ser razões muito tortuosas e que talvez façam esse tipo de defesa com um excesso de retórica que despreze a verdade escancarada.

Seria uma negação ou uma versão de negação no âmbito moral e filosófico, sociológico e também ideológico?

Mas a comparação com Heidegger deveria ser apenas parcial e, bem analisada, absolutamente inaplicável. Pois nenhum deles possui qualquer virtude intelectual, produção sem igual ou algum traço de uma grande reflexão metafísica que mereça destaque e consideração.

Sobre Heidegger, me parece claro e insofismável que Heidegger foi um zero em política e que tinha uma extrema dificuldade para considerar algo além da sua carreira pessoal e de suas ocupações intensas com a filosofia e a metafísica. Que por mais relevante que seja a sua leitura da Metafísica, a profundidade de suas leituras dos gregos e mesmo a sua concepção filosófica em Ser e Tempo, ele era incapaz também por uma certa negação em reconhecer a monstruosidade de Hitler. E essa negação talvez esteja ligada a uma falta de parâmetro político e campo de interlocução política relevante.

O caso Heidegger que já é um escândalo bem conhecido carrega junto também a compreensão e a tolerância afetiva de Hannah Arendt com ele. Certamente a âncora que Hannah Arendt lançou a ele naufragado, se deve ao notável vínculo pessoal de ambos e a importante consideração dela as contribuições dele a metafísica. É preciso sim reconhecer a importância da reflexão ou verstehen metafísica de Heidegger, mas o fato dele nunca ter dado o braço a torcer ou ter reconhecido a insensatez dessa escolha e decisão, dessa adesão sem reflexão, me leva a crer - como em outros casos, que filósofos correm o risco de se perder em paixões e insensatez.

A traição vergonhosa ao mestre Edmund Husserl e também a conduta de Heidegger na Reitoria é um momento muito triste e trágico para a filosofia e em especial para a filosofia alemã do século XX. A adesão de Heidegger ao nazismo não é apenas um detalhezinho. E a ausência de qualquer autocrítica ou o silencio dele após esse episódio talvez marque justamente a sua permanência não no nazismo, mas naquilo que chamo de vertigem metafísica ou certo isolamento espiritual. Essa é uma sombra do negativo ou do lado escuro da força no mundo intelectual alemão que paira sobre a racionalidade subjetiva e autocentrada.

Estou às voltas, por outro lado, nesse momento com o caso de Rousseau, por exemplo, que em sua concepção de casamento colocava a mulher na condição de satisfazer as necessidades do homem e lhe ser subserviente. E fico pensando também que talvez essa seja uma condição comum ao pensamento de que em todo o pensar poderia haver uma espécie de "lado sombra" não resolvido, em que os filósofos são incapazes de escapar a condição de seu tempo, por mais que tentem ir além de seu tempo, atingir a totalidade do real e serem capazes de interpretar e se posicionar para além do seu tempo, para além do passado na história do pensamento.

Talvez seja também o risco de uma razão instrumental no pensamento. Ou, ainda, as consequências daquilo que tendo a chamar de absolutismo da razão em que se buscam soluções absolutas e somos seduzidos por perspectivas que tentam superar as contradições do real através de uma medida ou solução absoluta e definitiva.  

Essa vertigem Metafísica talvez seja o descaminho ou o risco mesmo de toda aventura na filosofia e no caminho do pensamento.

O que se passa? Que mecanismo é esse? Quanto mais se busca a totalidade, mais se desprezam as singularidades e diferenças.  Quanto mais se busca a razão, mais pessimistas ficamos. E talvez assim, por esse pessimismo mesmo, acabe por ocorrer essa sedução do absoluto.

É nisso que encontro a comparação que merece mais distinções com a Vertigem Metafísica de Heidegger e a miséria moral do Bolsonarismo entre intelectuais que podem ser considerados no mínimo desonestos. No sentido, de se precisar fazer a distinção clara entre as poderosas reflexões Metafísicas dele e a miséria moral e política da conduta dele. Acredito em que ele foi reacionário por estar profundamente desconectado de um círculo mais amplo e consistente de intelectuais alemães.

Tudo se passa como se ele só se dedicasse mesmo aos seus trabalhos numa cabana, ler e escrever sobre os gregos, sobre os pré-socráticos, Platão e Aristóteles e sobre Nietzsche, Hölderlin, Kant e Descartes e que, portanto, não tinha mesmo tempo para acompanhar algo como um pensamento coletivo e refletir profundamente sobre as contradições políticas do seu tempo.

Porém, ninguém poderá negar que sua obra Metafísica e releituras e interpretações da filosofia possuem uma grandeza notável e extremamente singular. Ninguém que se dedique efetivamente aos temas filosóficos que ele estuda poderia diminuir o seu valor. Alguns tentam vincular a Metafísica dele às suas escolhas e descaminhos políticos. Eu creio que isso é enganador e absolutamente injusto com a sua obra.  

Heidegger sucumbiu, então, talvez por mergulhar muito mais profundamente na tradição, a uma certa vertigem da Metafísica ocidental. Sim, vertigem no sentido de tonteira e uma perturbação do equilíbrio, mas também como queda no abismo de uma razão cega e não apropriada dos seus limites. 

Que isso parece ser uma perspectiva profundamente individualista e egocentrada em Heidegger. E uma Vertigem bem mais miserável e improdutiva nesses intelectuais brasileiros adoradores do mito ou do novo anti-logos negacionista.

Eu penso que precisamos fazer uma revisão da Metafísica de tempos em tempos. Ou como já disse Nietzsche, são nos tempos difíceis que a Metafísica dá seus saltos e mergulha muitos no seu abismo. Como se fosse uma esfinge da história a desafiar a racionalidade e a busca da totalidade.

O real tem esse ou parece ter sempre uma espécie de seu avesso que leva aos descaminhos ou labirintos do pensamento e da liberdade. O problema dessa vertigem desafiadora parece ser intrínseco a isso. Cada vez que nos deixamos levar a isso acabamos negligenciando ou descuidando mesmo os assuntos mundanos. Perdemos o chão sobre o qual pisamos. Isso não ocorre por uma transcendência virtuosa, mas sim pelas desventuras viciosas ou ansiosas do pensamento que quer se livrar das contradições do real com um absoluto.



Eu me convenço às vezes que não tem como. Deveríamos pensar todos em sermos solidários aos metafísicos e eles aos mundanos. Tanto para evitar essa vertigem do absoluto, quanto o mergulho na contradição do real.

Bem de boas. Podemos olhar para outra coisa também. Uma certa divisão do trabalho intelectual. Por fim, após toda essa peroração aqui, também penso na provável falta de "qualidade acadêmica aceitável".

Quem são estes que, apesar de todas as advertências e ocorrências negativas, ainda resistem nesses descaminhos e nessa estrada da perdição? Certamente não serão bem lembrados no futuro, tanto porque erram na caminhada, quanto porque são absolutamente inexpressivos em suas áreas de atuação e jamais poderiam ser comparados a um Heidegger e sequer podemos aplicar a eles alguma causa como a grande vertigem metafísica descrita e ao meu ver com justiça aplicável a Heidegger.

P.S.: esse texto foi esboçado no inicio do ano e estava guardado. Resolvi publicar para gerar reflexão. Reconheço que poderia fazer algumas revisões ou melhorias, mas desejo que cada leitor ou leitora reflita por si mesmo.

SONETO 116 - SHAKESPEARE - outra tradução

 

SONETO 116 – Trad. Vasco Graça Moura (2005)

 

Não haja impedimentos à união

de almas fiéis; amor não é amor

se se alterar ao ver alteração

ou curvar a qualquer pôr e dispor.

 

Ah, não, é um padrão sempre constante

que enfrenta as tempestades com bravura;

é estrela a qualquer barco navegante,

de ignoto poder, mas dada altura.

 

Do Tempo o amor não é bufão, na esfera

da foice curva em bocas, róseos rostos;

com breve hora ou semana não se altera

e até ao julgamento fica a postos.

 

E se isto é erro e em mim a prova tem,

nunca escrevi e nunca amou ninguém.