SOBRE PORQUE ESCREVER, SEUS
ELEMENTOS, COMPOSIÇÃO E UMA ANALOGIA SIMPLÓRIA COM A PINTURA E A MÚSICA (1)
Este texto é dedicado a todos que
amam, aos que escrevem, aos que fazem artes, aos que educam e aqueles que ainda
tem em si preservados os seus meninos e meninas, desejando que aqueles que se
perderam, se reencontrem para poderem viver e deixar viver, cuidar e proteger o
que mais importa que é a vida.
Vamos começar com algo que nos
traz o desafio da linguagem, do amor e da vida combinadas, com essa pichação de
mais de dois mil anos inscrita em uma parede de Pompéia:
"Viva quem ama,
morra quem não sabe amar.
Morra duas vezes mais quem proíbe
o amor."(2)
Enquanto falava de um assunto
delicado das nossas vidas, que temos momentos bons e ruins e que infelizmente,
após momentos muito bons e animadores podemos viver também momentos muito ruins
e trágicos, eu pensava também em paralelo em mais duas coisas ou questões (3).
E pensava isso, dessa forma aparentemente confusa, porque talvez os escritores
e escritoras sejam aqueles que percebem e expressam justamente isso (4). Acho
que esse pichador de Pompéia pensou nisso também (5).
Ou pelo menos, desde Homero temos
sob nossos olhos e podemos ouvir essa descrição de uma sucessão de momentos
bons e ruins se intercalando na vida das pessoas, dos personagens e mesmo dos
deuses gregos de um modo aparentemente irregular, mas que é sucessivo e
repetido (6). Depois da tempestade vem a bonança, mas também após a bonança
pode advir a tempestade (7). A ordem aqui expressa a escolha de uma perspectiva
e objetivo consolador. Como uma regra da vida aqui se revelando.
Se estais feliz, aproveite muito,
porque poderás ter um outro momento logo depois ou mais cedo ou mais tarde de
infelicidade também. Viver é suportar isso. E talvez os escritores escrevam e
deem testemunhos ou criem ficções com elementos da realidade também para
suportar isso ou por algum encanto com isso em suas existências (8). É um
pathos existencial (9).
Mas a questão chave aqui é também
outra. De um lado, porque escrevemos e que tipo de paixão é essa? De outro
lado, me veio a associação livre entre escrever, pintar e fazer música (10).
Portanto, podemos refletir sobre como fazemos isso e tentar encontrar algumas
respostas ou candidatas a respostas ou somente algumas pistas.
Em todos esses casos - compor um
texto, uma música ou uma pintura, temos uma atividade que consiste em compor
algo a partir de um conjunto de elementos simples, complexos e variados. Essa
composição envolve uma escolha do material disponível e mesmo uma procura de
novos materiais. Na escrita, em primeiro lugar, as letras, vogais e consoantes,
mas também os sinais de pontuação e acentuação, além de todos os outros sinais
e agora também escrevemos com emoticons.
Ou seja, na própria linguagem
atual desse mundo virtual fazemos a composição também com imagens em meio ao
texto ou acompanhando o texto. Os textos passam a ser ou podem ser ilustrados
por signos, símbolos e ícones simples. E ainda temos os memes ou as imagens e
textos de citações que servem como uma pedra de toque ou ponto de partida para
compor. A arte então está na escolha, na busca, na seleção dos materiais e na
disponibilidade de um acervo que envolve desde textos lidos até outras
associações. O artista compõe tanto na forma quanto no conteúdo, mas também a
partir de influências e remissões ou ligações a outras fontes.
Mas também lidamos com outros
materiais como as palavras que desempenham funções de ligação, marcação e
também ênfases nas narrativas ou frases. E mesmo na linguagem escrita fazemos
usos de certas expressões que são quase stardards ou padrões e chaves de
analogias, metáforas ou figuras de linguagem de uso muito comum. Aqui temos uma
demonstração interessante da malha que a linguagem ergue com múltiplas ligações
entre milhares de textos dentro de uma cultura e assim tanto o autor quanto a
obra podem ser vistos como pontos de ligações entre diversos outros numa trama
ou rede temporal, espacial e cultural sobre o mundo.
Dispomos ainda de apelidos,
gírias e expressões populares em cada cultura, assim como podemos usar também
expressões latinas, gregas ou estrangeiras em meio ao texto. E nem sempre isso
é feito por exibicionismo banal. Muitas vezes serve para ilustrar ou marcar no
texto o que chamamos de ênfases, assim como também podem marcar relações ou
conexões desse texto com outros textos.
As diversas formas de expressão possíveis
também tem características que escolhidas dão efeitos à uma narrativa. Por
exemplo, o mesmo enunciado descritivo pode ser transformado a um modo poético e
ser acrescentado a ele palavras com mais ênfases simbólicas ou metafóricas.
Também a retórica pode entrar aqui através de diversos artifícios como a
reiteração, a inclusão de interrogação ou exclamação, a mera colocação ou
adição de reticências ao final de uma estrofe ou expressão e etc.
Analogamente podemos fazer quase
as mesmas coisas com a pintura e a música. Com mudanças nos traços e nos
componentes e também com a inclusão de cores, misturas ou ruídos e sons,
tonalidades e diversos timbres de instrumentos de tal modo que uma frase ou
quadro ou retrato simples ganha uma outra característica ou estilo pelo leque
de variações possível.
Minha mãe dizia que a língua
portuguesa era maravilhosa porque justamente tinha uma riqueza vocabular que
permitia na analogia dela tocar um piano cheio de notas ao falar ou escrever ao
contrário no exemplo dela de outras línguas mais concisas e cujo vocabulário
parecia ser mais estreito.
Bem, nem preciso exemplificar a
partir dessa trama de textos acima indicada, a imensidão do universo de
possibilidades já realizado na pintura e na música. Basta se imaginar numa
série infinita todas as composições da pintura e da música para se ter uma
ideia dessa variabilidade e margem de criação, muito ampla e ainda inesgotada.
Nesse ano, por certa fixação
temática e obsessão com a relação entre Miles Davis e John Coltrane, andei
estudando jazz, por exemplo, e cheguei na teoria do jazz modal que marcou
talvez a maior contribuição de ambos em meados dos anos 50. A teoria cromática
ou a exploração do modo lídio de George Russell chama atenção por ser talvez a
última grande teoria inovadora da música ocidental. Você descobre que ela foi
inspirada numa expressão do jovem Miles Davis que ao ser perguntado o que ele
queria estudar e fazer em música simplesmente e laconicamente respondeu: todas
as possibilidades. A partir disso George Russel desenvolveu sua base conceitual
que está contida no livro Lydian Chromatic Concept of Tonal Organization - The
art and science of tonal gravity (1953).
Então, um escritor, um pintor e
um músico, e em especial um escritor compulsivo e imaginativo nem sempre está
preso as formas comuns de expressão e justamente tenta sempre avançar para
outras possibilidades de expressão. Ele tenta buscar o além das possibilidades
já apresentadas. Aqui, a expressão de Miles Davis de tentar conquistar
"todas as possibilidades" tem analogia com um impulso característico
da filosofia grega e que vai marcar a filosofia até os dias de hoje: a busca da
totalidade(M).
Mas algo me levou a pensar assim.
No momento em que estava escrevendo essa resposta sobre porque escrevemos e se
havia alguns possibilidade de que fossemos possuídos por algum espírito que nos
faz dizer ou registrar certas mensagens, me dei conta deste aspecto lembrando
também de Arthur Rimbaud e seu poema das Cores das Vogais. O insight é simples
e límpido aqui. Cada vogal é associada a uma cor. Podemos discutir a escolha de
Rimbaud e inclusive pensar tanto nos nomes das vogais como nos nomes das cores
em todas as línguas possíveis e em suas múltiplas variações.
Em princípio, são cinco vogais,
mas há o Y que, por exemplo, pode corresponder a uma cor também, mas que não é
contemplado. E, além disso, estamos muito presos aqui a dois elementos tradicionais
e eurocêntricos. De um lado, as cores básicas e de outro lado não contemplamos,
para contribuir no nosso alargamento aqui, as outras línguas além das gregas,
latinas ou românicas. O árabe, o chinês e outras línguas tem também seus signos
e mesmo símbolos próprios que são extremamente expressivos também.
O que se conclui disso, é que
muito rapidamente acabamos sempre pulando de um elemento simples ou componente
básico para algo mais composto e complexo. O impulso para uma totalidade ou
essa busca de uma totalidade se traduz tanto na abertura para um tema, quanto
na evolução de uma frase ou expressão, de um desenho ou esboço, de duas ou
cinco notas musicais em um determinado ritmo, para uma crônica, um romance, um
poema ou uma ópera, uma tela, um triptico, ou uma canção, um lied, uma modinha,
um concerto e uma sinfonia..Do menor para o maior, do mais simples para o mais
complexo, da frase para a narrativa extensa, de Ulisses foi para a Guerra de
Tróia até a Odisséia e a Ilíada.
Pois bem, eu creio que é
justamente aqui que nós encontramos a sentença que talvez explique esse negócio
de escrever. Numa bela metáfora já conhecida, nós temos todo o universo em uma
casca de noz, assim como muitas vezes temos toda uma História numa pequena
estrofe que lhe serve de base, em um trecho de um poema, em um fragmento
filosófico e mesmo com algum esforço de imaginação, para pegar um modo
narrativo muito peculiar e extremamente elaborado, podemos construir um romance
a partir de uma crônica bem feita, bastando muitas vezes abrir o que nela está
subentendido ou em plena gestação, omisso ou subliminar e expor à luz de um
texto.
Então, o que eu quero dizer é que
os escritores e escritoras, em especial os compulsivos que escrevem sempre mais
do que publicam e que abrem sendas inteiras em textos, ensaios, crônicas e
poemas, sempre começam com uma ideia aparentemente simples e acabam expressando
isso de forma mais extensa.
Porém, há também aqueles que vão
ruminando em suas cacholas por meses e até anos até começarem a por em palavras
aquilo que era apenas uma ocupação mental quase silenciosa. Então, esse começam
em algum ponto e vão evoluindo de tal modo que aquilo se apresenta em um texto,
em uma composição e etc. E alguns até pensam muito na forma de fazer isso.
Pensam no modo como vão construir e também selecionam modelos e esquemas
alternativos até darem fim a essa composição. Eu creio que o mesmo acontece
também com músicos e pintores e que, mudando o que precisa mudar ou usar para
isso, eles vivem algo semelhante.
Tem um argumento que pode ser
aposto aqui contra essa abordagem, aliás bem mais de um argumento, porém eu
acredito também que isso tudo possa ser uma experiência mais consciente e menos
consciente e que na qualidade não faz diferença alguma. Porque tanto os racionalizadores
desse processo quanto os mais intuitivos e aparentemente inspirados acabam
escrevendo, pintando ou compondo algo que nos fascina igual e na recepção das
suas obras as considerações sobre se o processo e consciente ou não, são
simplesmente desprezadas, porque o que nos encanta é a obra e aquelas emoções,
pensamentos ou percepções que ela nos suscita.
É claro, porém, que isso não
torna irrelevante a consideração de um crítico sobre esse processo todo ou
mesmo o juízo de um mestre qualquer nessa arte sobre a qualidade da obra do
aluno ou aluna e mesmo sobre o virtuosismo ou genialidade da sua execução,
performance ou interpretação. Aqui vem a baila outros artistas que também
vivenciam nos seus ofícios esses processos.
O ator ou atriz, o orador ou
oradora, o Professor ou Professora que dá ou faz a mesma peça, discurso ou
lição a cada vez com uma interpretação possível. E que reflete depois consigo
mesmo, com seus pares de palco, com seus amigos, com a audiência ou com os
alunos e alunas em uma interação muito especial para ir moldando aquilo até a
sua perfeição ou maestria excepcional. Alguns atores e oradores, professores e
senhores fazem isso de modo tão perfeito e excepcional que mesmo que repitam a
mesma interpretação, por força de circunstâncias particulares e incontroláveis,
cada apresentação é uma só.
Essa é também uma demonstração de
que mesmo a cópia perfeita ou a reprodução marcadamente similar há de ser
diferente, posto que os elementos de sua composição apesar de serem exercitados
e selecionados, ensaiados ou escolhidos de um modo metódico, ficam expostos ao
improviso, a interação com a plateia e também escapam de forma maravilhosa ao
domínio do seu autor, ator ou também receptor.
Então, há algo de mágico nesse
processo que torna essa experiência muito mais valiosa do que aparece aqueles
que não percebem a sua riqueza ou que não tem sensibilidade para apreender ou
imaginação para delirar com prazer nessa exposição de elementos em uma
composição apresentada assim.
Fim
P.S.: Fiquei pensando em Walter
Benjamim enquanto escrevia os últimos parágrafos. Mas não fiz nenhuma questão
de pegar o livro na prateleira para ajustar ou trazer alguma questão do seu
clássico e extraordinário A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade
Técnica.
Isso não significa que não deva
ser lido ou que seja descartado por mim. Muito antes pelo contrário. A única
ideia dele que me cabe aqui e que é sagrada para mim é a da existência de uma
"aura" na obra de arte. Na tese dele a aura pode ser perdida com a
reprodução. Perder a aura é quase o mesmo que perder o significado. Ou seja,
quase ocorre aqui o que ocorre se repetirmos uma palavra mil vezes. Restará só
o seu som - o seu corpo físico, mas o seu sentido ou corpo espiritual
desaparecerá.
Eu desconfio sim que ela, a aura,
pode ser perdida, mas também desconfio que muitas vezes ela sequer pode ser
apreendida. Porque aqueles que poderiam lhe apreender o sentido perderam seu
corpo espiritual - que talvez seja a imaginação livre e sem censura - ou na
expressão do pichador de Pompéia não sabem amar. E isso, essa constatação, é de
uma tristeza imensa para mim.
Porque ela não será aprendida
quando a técnica e a reprodução mecânica e automática da vida for tão violenta
de tal modo que a sensibilidade humana tenha sido completamente vampirizada
pelo sistema e tenha tornado cada um de nós apenas um consumidor grosseiro de
coisas, com suas manias próprias, suas drogas próprias e completamente incapaz
de perceber a aura no próximo, em suas obras e em suas vidas.
Essa neutralização ou supressão
do espírito pela mecânica social se apresenta de forma brutal no holocausto e
em outras experiências terríveis da humanidade, mas também no uso instrumental
do outro e na alienação de si mesmo. E até mesmo um vampirismo amoroso se
apresenta em meio a isso, de tal modo que aquele ou aquela que não sabe amar e
que também não possui mais aura, mas apenas um simulacro, rouba ou desapropria
e expolia de ti os afetos passados, os afetos presentes e os afetos futuros e
joga tudo isso na lata do lixo. E é assim que toda a tua amorosidade e
capacidade de amar é descartada e desprezada por quem não sabe amar.
Que cada um tenha em si o melhor
dos seus meninos e meninas que foram um dia, porque isso também é uma arte e
isso é da ordem da nossa vida.
NOTAS:
(M) Depoimento de George Russel
sobre essa expressão que traduzi como “todas as possibilidades” que no texto é
changes e significa todas as progressões e mudanças possíveis. Leia: Miles sort
of took a liking to me, when he was playing with Bird1 [in clubs] along the
Street [52nd Street]. And he used to invite me up to his house. We’d sit down
and play chords. He liked my sense of harmony. And I loved his sense so we’d
try to kill each other with chords. He’d say check this out. And I’d say wow.
And I’d say listen to this…. I asked him one day on one of these sessions,
what’s your highest aim? – musical aim – and he said, to learn all the changes2
. That’s all he said [laughs]. At the time I thought he was playing the
changes, you know. That he was relating to each chord and arpeggiating, or
using certain notes and extending the chord and all that. The more I thought
about that, the more I felt there was a system begging to be brought into the
world. And that system was based on chordscale unity which traditional music
had absolutely ignored. The whole aspect of a chord having a scale – that was
really its birthplace. (p. 151)
Nenhum comentário:
Postar um comentário