ULISSES VOLTA PARA TRÓIA
Após três mil anos Zeus chama ao
Olimpo diversos Heróis e Heroínas gregas, com alguns etruscos, romanos e também
persas que não ficaram para a história narrada em prosa e poesia, mas que estão
lá numa espécie de grande palácio de festas, banquetes e recepções de novos
heróis. Zeus com sua cabeça inquieta e sábia resolve que já era hora de se
retomar algumas questões transcendentais e arcanas sobre o que é ser herói.
Está pensando que passados tantos anos de certo paradigma é preciso reavaliar e
reorientar certos conceitos, valores e ações de modo a conferir às novas
gerações de heróis e aos novos pretendentes um conjunto de dilemas, problemas e
trilemas que façam das novas façanhas, proezas e êxitos algo que resulte num
novo impulso para que as novas gerações façam a humanidade viver mais com mais
sabedoria e que se imponham desafios à altura dos novos tempos.
Entediado com seus passatempos e
de certa forma por demais sabedor das clássicas narrativas, Zeus resolve que é
hora já, que é o tempo de fazer o homem e a mulher terem novos desafios para
chegar à imortalidade, à glória e à sabedoria. Andava considerando, em virtude
dá chegada de certas personagens à vida eterna nos últimos dois séculos e após
meditar muito sobre o sentido mais pleno de uma vida, na complexidade de uma
vida que precisa enfrentar o destino, de uma vida que precisa deixar lições e
também gerar prazer, amor e franca descendência, que é o tempo chegado. Após
longa assembleia, árduos debates para escolher a quem caberia o papel e de que
forma isto seria feito, sopezando e excluindo propostas pelo absurdo e o
irrazoável, foi vencedora a ideia de Ulisses de que ele poderia voltar à Tróia
no século vinte e um a partir disto reconstruir uma nova narrativa crítica e
profunda dos cantos de Homero em seu conjunto. Para fazer isto Ulisses pediu à
Zeus que lhe desse apenas dois ajudantes para esta viagem.
Dentre todos os presentes ele
indicou como seus associados na empreitada Virgínia Wolf como secretária chefe
do empreendimento e William Shakespeare como conselheiro especial. Tinha
convicção e talvez após tudo continuaria tendo que com ambos seria capaz de
colocar em novos termos as virtudes e a inteligência necessária para forjar o
paradigma dos novos heróis e confrontar os modelos do passado e do futuro da
vida dos homens e mulheres que quiseram alcançar a imortalidade e que de fato -
para a surpresa de seus contemporâneos que pouco caso faziam disto -
conseguiram. A história que contarei a seguir contará parte disto, porque a mim
coube ser o miserável mortal que para sobreviver neste mundo deveria cumprir
está tarefa. Frente a uma situação destas em que pegar ou largar me confronta
com a vida, não tive outra opção à não ser assentir com indisfarçável júbilo e
escondida lamentação a este desafio que me foi imposto, por azar para alguns e
sorte para outros. Eis o que disto posso dizer nas próximas longas e mal
escritas páginas e linhas....
Goethe ficou indisponível após
uma longa e intestinal disputa com Joyce e Shelley, enquanto VW se manteve em
silêncio por todo o debate de tal como que quando Nietzsche que estava na
comissão de seleção e que havia sido voto vencido em relação a Shakespeare no
confronto direto com o renitente e encazinado Pound e o eloquente Wolfe, entrou
em um daqueles colapsos mentais que duram 100 anos, quando Platão narrou, só
então, a Odisséia de cor e salteado colocando o desafio entre a coragem e à
sabedoria em termos mais acabados que qualquer outro dos pretendentes apontando
ao final com o indicador para Shakespeare e, dando de ombros, encerrou o
discurso com um silêncio só rompido pela tagarelice inesgotável de Wolfe que recorria alegando que Perkins havia
suprimido justamente o argumento principal de seu esboço de dez mil páginas
antes dele iniciar a leitura.
Após dolorosa aclamação para os
adversários, Shakespeare tomou a palavra é com dois sonetos improvisados em voz
média e soluçando indicou VW que recusou com um seco não, mas que ao abrir seu
caderninho de notas viu por seus próprios olhos a seguinte nota: somente os heróis
são imortais, diz o convicto, mas o sábio entende que quem narra com máxima
perfeição a vida de um herói ganha também a imortalidade....
Porque Ulisses?
Nietzsche já havia chamado
atenção para o caráter ambivalente, contraditório e trágico dos heróis que
podiam sempre ter uma excelência, uma virtude, mas jamais a virtude completa ou
à máxima grandeza em virtudes de tal modo que desbancariam um Deus ou Deuses
com seus sucessos. A leitura da odisseia e da Ilíada sempre nos leva a pensar
no tênue equilíbrio entre a coragem de Aquiles, baseada em sua extrema maestria
e num senso de medida e sua absurda e desonrosa covardia para com o cadáver
insepulto de Heitor e com o fato de que ele topa ir à campanha por glória
pessoal e imortalidade dando pouca ou quase nenhuma atenção ao fato de que
serve ao fim e ao cabo ao rei mais injusto, perverso e ganancioso que o mundo
grego conheceu.
Olhar para Ulisses o super
experto e super hábil com as palavras, a lança, a espada e também com o escudo,
e que sempre consegue de alguma forma ludibriar seus adversários, manter ou
mudar as crenças dos que estão à sua volta e também inventar soluções para
problemas que poucos conseguem divisar. Ambos são heróis reconhecidos.
Conquistaram a maior imortalidade possível, pois foram suas histórias lendárias
foram contadas por rapsódia por muitos anos até que alguém as colocou em
livros, outro as fez migrar de poema para prosa e muitos passaram a usar seus
modelos e narrativas como moldes ou tropos heróicos. Eles, e devemos convir,
todos os outros parecem possuir está dura contradição entre a virtude e o
vício, entre o caráter e a perversão, entre a medida certa e o excesso ou
desmedida que causa em alguns de nós o horror, a sutil impressão de que não se
precisava tudo isto.
Nietzsche pensava que esta
aversão estaria fundada num caráter excessivamente piedoso e comedido herdado
de um cristianismo frágil e débil. De que não é a hubris, a desmedida arrogante
e impositiva, mas sim a nossa afecção interna e moral que não se coaduna com a
grandeza destes gestos. Não cabe em nós tal gesto como virtuoso. Prefeririamos
um milagre ou mesmo a redenção de um pecado a cometer tal excesso. E há uma
outra curiosidade aí.
O excesso ficou durante um bom
tempo reservado somente aos nobres, pois os pobres mortais e a ralé não caberia
jamais um excesso ou desmedida pois isso só seria possível como virtude, como
consagração heróica ou histórica aqueles que possuem alguma descendência
assinalada ou apontada em alguma escritura sagrada, profecia ou que eram patrícios
da gente ou de fundação da cidade ou polis. Observe aqui que os semi-deuses são
por si só uma justificativa ulterior que coloca explicação no fato daquele
relés e miserável mortal conseguir praticar algum ato assaz grandioso ou mesmo
inscrever uma façanha qualquer nos livros e histórias dos homens. E esta
prática de justificação do herói pela linguagem de uma linhagem privilegiada,
azul ou nobre prossegue até hoje. Erguem assim mitologias para os heróis ou
semi deuses, que fazem o soterramento de qualquer possibilidade de crítica ou
objeção a sua virtude por incompletude ou imperfeição. E o contrário disto
também ocorre. Não sendo nobre qualquer imperfeição serve para colocar a
personagem no latão de lixo dá história. Um êxito miserável é, assim, irreconhecível.
Zeus se comoveu com o que vislumbrou ao fazer a panorâmica crítica e ao
constituir uma certa arquitetônica das virtudes e fazendo a árvore genealógica
dos heróis, das Heroínas, dos semi deuses, viu que sua conta de
responsabilidade sobre eles, e a conta de outros deuses também, era muito maior do que lhe parecia justo e que está
desmedida lhe trazia sérias dificuldades para compreender hoje como homens cuja
descendência mais humilde são tão importantes e decisivos para a vida é a
sobrevivência dá humanidade.
Zeus estava já pelas tabelas com
mitologias, pois percebia que hoje existem tantas vozes e tantos feitos a serem
narrados que não cabia mais mesmo atar cada façanha a uma divindade ou
linhagem, pois que os homens e as mulheres haviam aprendido por exemplos
incompletos, algumas linhas tortas e outras retas, como agir virtuosamente ou
de forma que seu gesto lhe daria a imortalidade. Devo, porém, dizer em defesa
dos que estão a disputar seus méritos hoje que não haveria como revogar títulos
de heróis e que não é o caso também de que o palácio e o reino de festas dos
heróis estava superlotado não, o que ocorria de fato é que alguns que antes
ingressaram com altivez e supremacia ao salão de festas, hoje andavam
acabrunhados e tinham com o tempo adquirido maior reflexão sobre seus atos e
concluído em seus íntimos que não era bem assim ou que não era tudo isto não.
Ulisses era o único que muito rapidamente admitiu isto nos debates, e mesmo que
tivesse um interesse ou motivo inconfessável para tal, havia narrado
virtuosamente e com muita calma o seu próprio problema em relação à questão
geral.
Por bem, Zeus julgou com
assentimento e concordância expressa e silenciosa de menear de cabeças de
outros deuses e heróis, que era ele o homem talhado para tal grandiosa, muito
importante e arriscada tarefa. Muitos heróis ficaram refletindo também na
capacidade de Ulisses de se desembaraçar das armadilhas do destino e o próprio
Hércules assentiu que só mesmo Ulisses conseguiria vencer tantos e tão
trabalhosos desafios e voltar ao salão com sua imortalidade preservada e com
algum ganho de sabedoria para todos. Não serão citados os invejosos que
repugnaram a indicação do Olimpo, mas não faz diferença porque qualquer um de
nós mortais é capaz de ver entre os heróis os mais invejosos e os menos
interessados em caprichos e sutilezas.
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