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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

ULISSES VOLTA PARA TRÓIA

 

ULISSES VOLTA PARA TRÓIA

 

Após três mil anos Zeus chama ao Olimpo diversos Heróis e Heroínas gregas, com alguns etruscos, romanos e também persas que não ficaram para a história narrada em prosa e poesia, mas que estão lá numa espécie de grande palácio de festas, banquetes e recepções de novos heróis. Zeus com sua cabeça inquieta e sábia resolve que já era hora de se retomar algumas questões transcendentais e arcanas sobre o que é ser herói. Está pensando que passados tantos anos de certo paradigma é preciso reavaliar e reorientar certos conceitos, valores e ações de modo a conferir às novas gerações de heróis e aos novos pretendentes um conjunto de dilemas, problemas e trilemas que façam das novas façanhas, proezas e êxitos algo que resulte num novo impulso para que as novas gerações façam a humanidade viver mais com mais sabedoria e que se imponham desafios à altura dos novos tempos.

Entediado com seus passatempos e de certa forma por demais sabedor das clássicas narrativas, Zeus resolve que é hora já, que é o tempo de fazer o homem e a mulher terem novos desafios para chegar à imortalidade, à glória e à sabedoria. Andava considerando, em virtude dá chegada de certas personagens à vida eterna nos últimos dois séculos e após meditar muito sobre o sentido mais pleno de uma vida, na complexidade de uma vida que precisa enfrentar o destino, de uma vida que precisa deixar lições e também gerar prazer, amor e franca descendência, que é o tempo chegado. Após longa assembleia, árduos debates para escolher a quem caberia o papel e de que forma isto seria feito, sopezando e excluindo propostas pelo absurdo e o irrazoável, foi vencedora a ideia de Ulisses de que ele poderia voltar à Tróia no século vinte e um a partir disto reconstruir uma nova narrativa crítica e profunda dos cantos de Homero em seu conjunto. Para fazer isto Ulisses pediu à Zeus que lhe desse apenas dois ajudantes para esta viagem.

Dentre todos os presentes ele indicou como seus associados na empreitada Virgínia Wolf como secretária chefe do empreendimento e William Shakespeare como conselheiro especial. Tinha convicção e talvez após tudo continuaria tendo que com ambos seria capaz de colocar em novos termos as virtudes e a inteligência necessária para forjar o paradigma dos novos heróis e confrontar os modelos do passado e do futuro da vida dos homens e mulheres que quiseram alcançar a imortalidade e que de fato - para a surpresa de seus contemporâneos que pouco caso faziam disto - conseguiram. A história que contarei a seguir contará parte disto, porque a mim coube ser o miserável mortal que para sobreviver neste mundo deveria cumprir está tarefa. Frente a uma situação destas em que pegar ou largar me confronta com a vida, não tive outra opção à não ser assentir com indisfarçável júbilo e escondida lamentação a este desafio que me foi imposto, por azar para alguns e sorte para outros. Eis o que disto posso dizer nas próximas longas e mal escritas páginas e linhas....

Goethe ficou indisponível após uma longa e intestinal disputa com Joyce e Shelley, enquanto VW se manteve em silêncio por todo o debate de tal como que quando Nietzsche que estava na comissão de seleção e que havia sido voto vencido em relação a Shakespeare no confronto direto com o renitente e encazinado Pound e o eloquente Wolfe, entrou em um daqueles colapsos mentais que duram 100 anos, quando Platão narrou, só então, a Odisséia de cor e salteado colocando o desafio entre a coragem e à sabedoria em termos mais acabados que qualquer outro dos pretendentes apontando ao final com o indicador para Shakespeare e, dando de ombros, encerrou o discurso com um silêncio só rompido pela tagarelice inesgotável de  Wolfe que recorria alegando que Perkins havia suprimido justamente o argumento principal de seu esboço de dez mil páginas antes dele iniciar a leitura.

Após dolorosa aclamação para os adversários, Shakespeare tomou a palavra é com dois sonetos improvisados em voz média e soluçando indicou VW que recusou com um seco não, mas que ao abrir seu caderninho de notas viu por seus próprios olhos a seguinte nota: somente os heróis são imortais, diz o convicto, mas o sábio entende que quem narra com máxima perfeição a vida de um herói ganha também a imortalidade....

Porque Ulisses?

Nietzsche já havia chamado atenção para o caráter ambivalente, contraditório e trágico dos heróis que podiam sempre ter uma excelência, uma virtude, mas jamais a virtude completa ou à máxima grandeza em virtudes de tal modo que desbancariam um Deus ou Deuses com seus sucessos. A leitura da odisseia e da Ilíada sempre nos leva a pensar no tênue equilíbrio entre a coragem de Aquiles, baseada em sua extrema maestria e num senso de medida e sua absurda e desonrosa covardia para com o cadáver insepulto de Heitor e com o fato de que ele topa ir à campanha por glória pessoal e imortalidade dando pouca ou quase nenhuma atenção ao fato de que serve ao fim e ao cabo ao rei mais injusto, perverso e ganancioso que o mundo grego conheceu.

Olhar para Ulisses o super experto e super hábil com as palavras, a lança, a espada e também com o escudo, e que sempre consegue de alguma forma ludibriar seus adversários, manter ou mudar as crenças dos que estão à sua volta e também inventar soluções para problemas que poucos conseguem divisar. Ambos são heróis reconhecidos. Conquistaram a maior imortalidade possível, pois foram suas histórias lendárias foram contadas por rapsódia por muitos anos até que alguém as colocou em livros, outro as fez migrar de poema para prosa e muitos passaram a usar seus modelos e narrativas como moldes ou tropos heróicos. Eles, e devemos convir, todos os outros parecem possuir está dura contradição entre a virtude e o vício, entre o caráter e a perversão, entre a medida certa e o excesso ou desmedida que causa em alguns de nós o horror, a sutil impressão de que não se precisava tudo isto.

Nietzsche pensava que esta aversão estaria fundada num caráter excessivamente piedoso e comedido herdado de um cristianismo frágil e débil. De que não é a hubris, a desmedida arrogante e impositiva, mas sim a nossa afecção interna e moral que não se coaduna com a grandeza destes gestos. Não cabe em nós tal gesto como virtuoso. Prefeririamos um milagre ou mesmo a redenção de um pecado a cometer tal excesso. E há uma outra curiosidade aí.

O excesso ficou durante um bom tempo reservado somente aos nobres, pois os pobres mortais e a ralé não caberia jamais um excesso ou desmedida pois isso só seria possível como virtude, como consagração heróica ou histórica aqueles que possuem alguma descendência assinalada ou apontada em alguma escritura sagrada, profecia ou que eram patrícios da gente ou de fundação da cidade ou polis. Observe aqui que os semi-deuses são por si só uma justificativa ulterior que coloca explicação no fato daquele relés e miserável mortal conseguir praticar algum ato assaz grandioso ou mesmo inscrever uma façanha qualquer nos livros e histórias dos homens. E esta prática de justificação do herói pela linguagem de uma linhagem privilegiada, azul ou nobre prossegue até hoje. Erguem assim mitologias para os heróis ou semi deuses, que fazem o soterramento de qualquer possibilidade de crítica ou objeção a sua virtude por incompletude ou imperfeição. E o contrário disto também ocorre. Não sendo nobre qualquer imperfeição serve para colocar a personagem no latão de lixo dá história. Um êxito miserável é, assim, irreconhecível. Zeus se comoveu com o que vislumbrou ao fazer a panorâmica crítica e ao constituir uma certa arquitetônica das virtudes e fazendo a árvore genealógica dos heróis, das Heroínas, dos semi deuses, viu que sua conta de responsabilidade sobre eles, e a conta de outros deuses também, era muito  maior do que lhe parecia justo e que está desmedida lhe trazia sérias dificuldades para compreender hoje como homens cuja descendência mais humilde são tão importantes e decisivos para a vida é a sobrevivência dá humanidade.

Zeus estava já pelas tabelas com mitologias, pois percebia que hoje existem tantas vozes e tantos feitos a serem narrados que não cabia mais mesmo atar cada façanha a uma divindade ou linhagem, pois que os homens e as mulheres haviam aprendido por exemplos incompletos, algumas linhas tortas e outras retas, como agir virtuosamente ou de forma que seu gesto lhe daria a imortalidade. Devo, porém, dizer em defesa dos que estão a disputar seus méritos hoje que não haveria como revogar títulos de heróis e que não é o caso também de que o palácio e o reino de festas dos heróis estava superlotado não, o que ocorria de fato é que alguns que antes ingressaram com altivez e supremacia ao salão de festas, hoje andavam acabrunhados e tinham com o tempo adquirido maior reflexão sobre seus atos e concluído em seus íntimos que não era bem assim ou que não era tudo isto não. Ulisses era o único que muito rapidamente admitiu isto nos debates, e mesmo que tivesse um interesse ou motivo inconfessável para tal, havia narrado virtuosamente e com muita calma o seu próprio problema em relação à questão geral.

Por bem, Zeus julgou com assentimento e concordância expressa e silenciosa de menear de cabeças de outros deuses e heróis, que era ele o homem talhado para tal grandiosa, muito importante e arriscada tarefa. Muitos heróis ficaram refletindo também na capacidade de Ulisses de se desembaraçar das armadilhas do destino e o próprio Hércules assentiu que só mesmo Ulisses conseguiria vencer tantos e tão trabalhosos desafios e voltar ao salão com sua imortalidade preservada e com algum ganho de sabedoria para todos. Não serão citados os invejosos que repugnaram a indicação do Olimpo, mas não faz diferença porque qualquer um de nós mortais é capaz de ver entre os heróis os mais invejosos e os menos interessados em caprichos e sutilezas.

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