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domingo, 10 de maio de 2015

SOBRE A EXPRESSÃO “VAI DAR MERDA”: NOTAS EXISTENCIALISTAS

É comum que algumas expressões acabem virando chavões ou ditados comuns ao nosso pensamento e que seu uso gere controvérsia, surpresas e até mesmo espanto. Com alguns palavrões ocorrem coisas semelhantes, pois apesar deles conterem o dito baixo calão e serem depreciados, na prática eles seguem em uso, como moeda corrente. E, mesmo que você não goste, eles, vez ou outra, simplificam as coisas e reduzem tudo que pensamos ou que nos desafia ao pensamento em um simples detalhe cujo ponto final, nome ou palavra, basta e é suficiente ao nosso entendimento. Eles parecem, assim, trivialidades que resumem coisas não triviais.

Eu me lembrei estes dias desta expressão que eu ouvi de uma amiga em determinada circunstância da minha vida e que me impressionou muito quando era jovem. Lembrei disso de uma forma insólita e pensei em contar quando li depois uma mensagem de alguém sobre seu desespero, desilusão e tal. Fiquei pensando se uma reinterpretação da expressão ajudaria a ultrapassar um momento de dificuldade ou algo como um certo temor de dificuldade maiores pela frente.

Essa grande amiga é hoje uma professora renomada de música, na época nós prestamos o vestibular juntos. Ela para música e eu para filosofia. E ambos passamos. Então em parte contar isso aqui cumpre o papel de certa gratidão e também de narrar uma história e expor um conceito.

Ela era em principio só uma conhecida minha, mas com o tempo virou muito amiga e era na nossa amizade meio que uma espécie de grande apoio meu para certas questões de adolescente e pós-adolescente. Quem foi meu aluno sabe que considero a adolescência a era das escolhas e das escolhas decisivas. Ainda que eu diga sempre que dá um bom tempo para mudar estas escolhas ao longo da vida e refazer certos caminhos e corrigir erros também. Foi assim que ela foi uma das principais alavancas para eu me mover de certo comodismo desconfortável e fazer mudanças em minha vida que na época me levaram a mudar de cidade, fazer uma universidade  e construir parte do que sou hoje sobre os pilares que naquele tempo eram bem mais modestos que os atuais. Me dava muita força com seus conselhos e com sua experiência de vida independente e com sua determinação e disciplina para atingir seu objetivo. E eu era, apesar de audaz e desembaraçado, super inseguro em correr certos riscos com o futuro e meus sentimentos também.

Ela me ensinou, além disso, algumas noções elementares de astrologia e a fazer todos os cálculos e tabelas para construir um mapa astral com precisão na posição dos planetas e fazendo uso de efemérides. Tinha sido aluna de dona Emmy de Mascheville e me passou acho que tudo que sabia em um período de meses.

E ela era – olhando à esta distância de hoje - meio existencialista, muito feminista e aquilo me fascinava. Tinha naquela postura e atitude dela uma grande determinação e afetuosidade com o outro. O existencialismo é uma das principais escolas filosóficas do século XX e, apesar de ter suas origens em diversos filósofos anteriores (de Sócrates a Nietzsche) ganhou corpo por volta de 1945 com um texto de Jean Paul Sartre “O existencialismo é um humanismo”

Quando eu perguntei olhando para um aspecto ou vaticínio o que iria acontecer no futuro.

Ela disse uma coisa que me deixou intrigado na hora e tempos depois eu fui aos poucos entendendo melhor.

Ela disse: Vai dar merda!

E eu bah, e agora? Como fica? Todo preocupado e angustiado.

Pensando: Será que eu aguento?

Ai ela me disse assim: Vai dar merda igual! Não te preocupa, seja livre, viva e faça o que quiser...

Se você amar de verdade, sem medo, você passa por tudo que vier.

Então se vai dar merda igual, relaxa e toca em frente. A única garantia que você tem do futuro é que ele vai acontecer e que um dia sua vida vai acabar, então, segue teu caminho próprio e faça tuas escolhas.  

(Ela não disse, mas poderia ter dito: Foda-se. Talvez merda seja mais elegante de fato. E registramos outros usos disso que me parecem correlatos. Quem já subiu ao palco em teatro e em tablado ou circo conhece outra expressão de camarins bem clássica: merda! Que é um desejo de sorte ao ator que vai entrar em cena. Me parece que é mais uma espécie de palavrão para romper a tensão da expectativa. E em francês Merde é uma das expressões mais comuns em diversas situações.)

Eu pensei então simplesmente, na época e volto a pensar agora também, me atualizando como ser livre e existencial, que vou fazer sempre o que estou afim com todas as minhas forças.

Agora, nesta semana, quando após diversas situações pessoais, políticas, profissionais, estéticas, teóricas e literárias eu decidi ter 20 anos de novo, bem, pensei muito nisso também. Na nossa vida e nas nossas escolhas e o quanto nos condicionamos por elas e se podemos mudá-las e qual é o tempo que temos para tentar mudá-las. A ideia dos 20 anos – voltar aos 20 anos ou não ter mais 20 anos - coincidiu, aliás, com uma passagem em que Sartre trata dos seus limites de idade aos 50 anos e depois aos 65 anos, e sobre os jovens de 20 anos que ele encontra em 1968 e o que o faz se reposicionar no panorama político francês ainda de forma surpreendente, coisa que ele faz desde o final da segunda guerra, na guerra de libertação da Argélia a partir de 1956 até 1962 e então em 1968 e 1969.   

Estou lembrando, então, ultimamente, muitas coisas da minha juventude desde um tempo para cá. Isso é algo da meia idade, envolve tanto um saudosismo quanto uma apreciação e perspectiva de futuro

E quero colocar em prática principalmente as boas. Aquelas pistas que eu deixei para mim mesmo em meu coração e sonhos. Parte das coisas que ainda são importantes para mim os planos que eram inviáveis então e os que são viáveis hoje. Coisas que eram inviáveis lá naquela época. E assim, estou remontando meu trem. Isso inclui ler certos livros que não podia comprar ou ler então e também ver e rever certos valores e prioridades.

Por esse passo de experiência na vida

E de acreditar mais nela. Sabe? Vai dar merda e isso nem me preocupa mais...

Então, estou justamente lendo um livro sobre a vida do Jean Paul Sartre – aquela biografia da Annie Cohen-Solal super bem feita. Adquiri ela com prazer depois de 30 anos de namoro e tentativas de conquista e busca dela. Pois, estes dias consegui acabar de vez com a distância dela. Ela foi escrita entre 1980 e 1984 e publicada no Brasil em 1985 pela L&PM e desde seu lançamento eu a queria entre minhas mãos. Sartre é um ícone de filósofo para mim, pois combinava engajamento e disputa política com reflexão. Era de certa forma meu herói mais próximo do Sócrates na relação com o estado. E, ao ler esta biografia se confirma muitas coisas que eu intuía dele a partir de leituras de outros textos e também das notícia que me chegaram dele. Sartre é um cara que era um símbolo para mim naquela época hoje me fica mais nítido e mais importante ainda. Símbolo de liberdade, de engajamento, de postura e atitude e ao ler este livro me afino mais ainda com ele. Ultrapasso a camada do mito e vejo mais claras nossas afinidades. Neste livro, que parece mesmo uma panorâmica muito bem feita deste pai do Existencialismo do século XX e que tem esta mesma questão o tempo todo: como é que se lida com o que acontece de errado no mundo e que tipo de conduta devemos ter? E isso me parecia importante, na minha adolescência e no meu pós-adolescência. Porque agora talvez seja mais verdadeiro ainda o sentido e a força da minha resposta a isso, de que não importa o que vai dar, mas que temos que fazer nossas escolhas e que nem a minha pergunta e o sentido da resposta para mim da época tenha atingido isso.

Assim, se um dia vai dar merda e pode dar, não importa mesmo.

Terá isso, então, hoje para mim um significado diferente e mais libertador do que parece?

Um significado superior e de mais liberdade também apesar de estar atingindo já aquele limiar da vida e chegando perto do portão de saída desta vida.

Muita liberdade me parece se encontrar nesta expressão em relação ao destino, a falta, ao sofrimento e a qualquer tipo de problemas.


Lembro sempre e aqui repito que o desespero e o medo são os piores conselheiros e que a falta de esperança é que nem o medo uma impedimento ao nosso movimento. E vou terminar dizendo aqui que a questão existencial realmente mais importante envolve se lançar na vida sem medo de ser derrotado, de não conseguir ou de quebrar a cara e com toda a esperança possível, e apesar das tragédias, fazer uso máximo de uma postura mais dialética que encara o limite como desafio, o problema como algo a ser ultrapassado e a existência como o nosso terreno para a vida real e não imaginária ou fantasiosa.   

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