É comum que algumas expressões
acabem virando chavões ou ditados comuns ao nosso pensamento e que seu uso gere
controvérsia, surpresas e até mesmo espanto. Com alguns palavrões ocorrem
coisas semelhantes, pois apesar deles conterem o dito baixo calão e serem
depreciados, na prática eles seguem em uso, como moeda corrente. E, mesmo que
você não goste, eles, vez ou outra, simplificam as coisas e reduzem tudo que pensamos
ou que nos desafia ao pensamento em um simples detalhe cujo ponto final, nome
ou palavra, basta e é suficiente ao nosso entendimento. Eles parecem, assim,
trivialidades que resumem coisas não triviais.
Eu me lembrei estes dias desta
expressão que eu ouvi de uma amiga em determinada circunstância da minha vida e
que me impressionou muito quando era jovem. Lembrei disso de uma forma insólita
e pensei em contar quando li depois uma mensagem de alguém sobre seu desespero,
desilusão e tal. Fiquei pensando se uma reinterpretação da expressão ajudaria a
ultrapassar um momento de dificuldade ou algo como um certo temor de
dificuldade maiores pela frente.
Essa grande amiga é hoje uma
professora renomada de música, na época nós prestamos o vestibular juntos. Ela
para música e eu para filosofia. E ambos passamos. Então em parte contar isso
aqui cumpre o papel de certa gratidão e também de narrar uma história e expor
um conceito.
Ela era em principio só uma
conhecida minha, mas com o tempo virou muito amiga e era na nossa amizade meio
que uma espécie de grande apoio meu para certas questões de adolescente e pós-adolescente.
Quem foi meu aluno sabe que considero a adolescência a era das escolhas e das escolhas
decisivas. Ainda que eu diga sempre que dá um bom tempo para mudar estas escolhas
ao longo da vida e refazer certos caminhos e corrigir erros também. Foi assim
que ela foi uma das principais alavancas para eu me mover de certo comodismo
desconfortável e fazer mudanças em minha vida que na época me levaram a mudar
de cidade, fazer uma universidade e
construir parte do que sou hoje sobre os pilares que naquele tempo eram bem mais
modestos que os atuais. Me dava muita força com seus conselhos e com sua experiência
de vida independente e com sua determinação e disciplina para atingir seu
objetivo. E eu era, apesar de audaz e desembaraçado, super inseguro em correr
certos riscos com o futuro e meus sentimentos também.
Ela me ensinou, além disso, algumas
noções elementares de astrologia e a fazer todos os cálculos e tabelas para
construir um mapa astral com precisão na posição dos planetas e fazendo uso de
efemérides. Tinha sido aluna de dona Emmy de Mascheville e me passou acho que
tudo que sabia em um período de meses.
E ela era – olhando à esta distância
de hoje - meio existencialista, muito feminista e aquilo me fascinava. Tinha
naquela postura e atitude dela uma grande determinação e afetuosidade com o
outro. O existencialismo é uma das principais escolas filosóficas do século XX
e, apesar de ter suas origens em diversos filósofos anteriores (de Sócrates a
Nietzsche) ganhou corpo por volta de 1945 com um texto de Jean Paul Sartre “O
existencialismo é um humanismo”
Quando eu perguntei olhando para um
aspecto ou vaticínio o que iria acontecer no futuro.
Ela disse uma coisa que me deixou
intrigado na hora e tempos depois eu fui aos poucos entendendo melhor.
Ela disse: Vai dar merda!
E eu bah, e agora? Como fica?
Todo preocupado e angustiado.
Pensando: Será que eu aguento?
Ai ela me disse assim: Vai dar
merda igual! Não te preocupa, seja livre, viva e faça o que quiser...
Se você amar de verdade, sem medo,
você passa por tudo que vier.
Então se vai dar merda igual,
relaxa e toca em frente. A única garantia que você tem do futuro é que ele vai
acontecer e que um dia sua vida vai acabar, então, segue teu caminho próprio e
faça tuas escolhas.
(Ela não disse, mas poderia ter
dito: Foda-se. Talvez merda seja mais elegante de fato. E registramos outros
usos disso que me parecem correlatos. Quem já subiu ao palco em teatro e em
tablado ou circo conhece outra expressão de camarins bem clássica: merda! Que é
um desejo de sorte ao ator que vai entrar em cena. Me parece que é mais uma espécie
de palavrão para romper a tensão da expectativa. E em francês Merde é uma das
expressões mais comuns em diversas situações.)
Eu pensei então simplesmente, na
época e volto a pensar agora também, me atualizando como ser livre e
existencial, que vou fazer sempre o que estou afim com todas as minhas forças.
Agora, nesta semana, quando após
diversas situações pessoais, políticas, profissionais, estéticas, teóricas e
literárias eu decidi ter 20 anos de novo, bem, pensei muito nisso também. Na
nossa vida e nas nossas escolhas e o quanto nos condicionamos por elas e se podemos
mudá-las e qual é o tempo que temos para tentar mudá-las. A ideia dos 20 anos –
voltar aos 20 anos ou não ter mais 20 anos - coincidiu, aliás, com uma passagem
em que Sartre trata dos seus limites de idade aos 50 anos e depois aos 65 anos,
e sobre os jovens de 20 anos que ele encontra em 1968 e o que o faz se
reposicionar no panorama político francês ainda de forma surpreendente, coisa
que ele faz desde o final da segunda guerra, na guerra de libertação da
Argélia a partir de 1956 até 1962 e então em 1968 e 1969.
Estou lembrando, então, ultimamente,
muitas coisas da minha juventude desde um tempo para cá. Isso é algo da meia
idade, envolve tanto um saudosismo quanto uma apreciação e perspectiva de
futuro
E quero colocar em prática
principalmente as boas. Aquelas pistas que eu deixei para mim mesmo em meu
coração e sonhos. Parte das coisas que ainda são importantes para mim os planos
que eram inviáveis então e os que são viáveis hoje. Coisas que eram inviáveis
lá naquela época. E assim, estou remontando meu trem. Isso inclui ler certos livros
que não podia comprar ou ler então e também ver e rever certos valores e
prioridades.
Por esse passo de experiência na
vida
E de acreditar mais nela. Sabe? Vai
dar merda e isso nem me preocupa mais...
Então, estou justamente lendo um
livro sobre a vida do Jean Paul Sartre – aquela biografia da Annie Cohen-Solal
super bem feita. Adquiri ela com prazer depois de 30 anos de namoro e
tentativas de conquista e busca dela. Pois, estes dias consegui acabar de vez
com a distância dela. Ela foi escrita entre 1980 e 1984 e publicada no Brasil
em 1985 pela L&PM e desde seu lançamento eu a queria entre minhas mãos.
Sartre é um ícone de filósofo para mim, pois combinava engajamento e disputa
política com reflexão. Era de certa forma meu herói mais próximo do Sócrates na
relação com o estado. E, ao ler esta biografia se confirma muitas coisas que eu
intuía dele a partir de leituras de outros textos e também das notícia que me
chegaram dele. Sartre é um cara que era um símbolo para mim naquela época hoje
me fica mais nítido e mais importante ainda. Símbolo de liberdade, de
engajamento, de postura e atitude e ao ler este livro me afino mais ainda com
ele. Ultrapasso a camada do mito e vejo mais claras nossas afinidades. Neste
livro, que parece mesmo uma panorâmica muito bem feita deste pai do
Existencialismo do século XX e que tem esta mesma questão o tempo todo: como é
que se lida com o que acontece de errado no mundo e que tipo de conduta devemos
ter? E isso me parecia importante, na minha adolescência e no meu pós-adolescência.
Porque agora talvez seja mais verdadeiro ainda o sentido e a força da minha
resposta a isso, de que não importa o que vai dar, mas que temos que fazer
nossas escolhas e que nem a minha pergunta e o sentido da resposta para mim da
época tenha atingido isso.
Assim, se um dia vai dar merda e
pode dar, não importa mesmo.
Terá isso, então, hoje para mim um
significado diferente e mais libertador do que parece?
Um significado superior e de mais
liberdade também apesar de estar atingindo já aquele limiar da vida e chegando
perto do portão de saída desta vida.
Muita liberdade me parece se
encontrar nesta expressão em relação ao destino, a falta, ao sofrimento e a
qualquer tipo de problemas.
Lembro sempre e aqui repito que o
desespero e o medo são os piores conselheiros e que a falta de esperança é que
nem o medo uma impedimento ao nosso movimento. E vou terminar dizendo aqui que
a questão existencial realmente mais importante envolve se lançar na vida sem
medo de ser derrotado, de não conseguir ou de quebrar a cara e com toda a esperança
possível, e apesar das tragédias, fazer uso máximo de uma postura mais
dialética que encara o limite como desafio, o problema como algo a ser
ultrapassado e a existência como o nosso terreno para a vida real e não imaginária
ou fantasiosa.
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