Estou olhando um soco. Parece que nuca acaba, que a tragédia nunca termina. Veja Pastoral
Americana na Netflix.
Agora consigo falar. Fiquei muito
impactado pelo filme Pastoral Americana baseado na obra homônima de Phillip
Roth.
Até a metade da trama tudo corria bem, mas tive o tempo todo uma sensação
massacrante de que se reservava um desfecho terrível e, então, passei o tempo
todo com aquela sensação torturadora que aguardava o pior. Haviam diversas sensações
da impotência do personagem perante o seu destino. Me lembrou Stoner – Livro fantástico
de John Williams em que um homem faz um esforço tremendo para ter uma vida
digna e passa a vida navegando e desviando de certas armadilhas, maldades,
azares e ardis do destino ou de outros homens e mesmo de sua esposa. São homens
de dignidade extrema que fazem diversas escolhas de compromisso ao longo da
vida, não de preferência. Ocorre com eles uma espécie de resistência do caráter
que apesar de tudo que ocorre a sua volta, não dobram a espinha ou não se
curvam às fatalidades, e que apesar de sofrerem e serem infelizes com tudo isso,
preservam uma espécie de felicidade subjetiva.
O Sueco, personagem resistente e
principal da trama, tem um caráter que percorre toda a trama sem dobrar-se.
Então, chega um certo ponto em que o problema não é mais a fatalidade que lhe
ocorre, mas sim a atitude correta que ele julga ser a melhor para enfrentar
essa fatalidade.
Vi o filme até o fim em sofrimento
e reflexão. As vezes parece que as principais lições da vida vêm desse jeito mesmo.
Somos curtidos e desafiados pelos problemas, conflitos e pelas horas, dias,
meses e anos duros.
As impressões mais didáticas, por
assim dizer, são dadas pelo contexto da trama. Ocorre nela o famoso e já
tipificado choque de gerações dos anos sessenta, que já foi reencenado antes,
mas que continua sendo reencenado por conta do que passam as famílias em meio a
um mundo em ebulição e que historicamente parece ser mais desafiador a partir do
século XX.
A culpa do pai pela gagueira da
filha e a sua punição parecem indicar o efeito principal. E a punição do pai
por conta de não ter dado o beijo na boca da filha que em seu momento edípico
lhe pede suplicante. Parece que ela acreditava que esse beijo sagrado a
transformaria na mãe linda e maravilhosa de concurso e que suprimisse a sua
gagueira.
O Nathan Zuckerman – personagem guia
e alter ego de Phillip Roth, o Fantasma onipresente que teceu a trama trágica -
no começo e no fim do filme coloca o autor como uma testemunha da história trágica
e apresenta a sua voz como a de um narrador, um corifeu.
Ao final, a mãe não interpela a
filha que chega ao caixão do pai, porque ela sabe que também tem sua parcela de
culpa na infelicidade daquele homem. E assim fecha-se a trama com a impotência e
a consagração da culpa e a punição final.
O sueco era um homem íntegro e
isso se mostra em vários momentos. Aliás, eu gostei muito da firmeza dele e da sua
força verbal de reação ao que lhe diziam.
Por fim, isso só mostra mais uma
vez que por melhor que você seja, ninguém vai te poupar ou te dar moleza. Nem
mesmo aqueles que você ama tanto.
É um grande foda-se para todos os
fodidos. Típico do Roth.
Post Scriptum:
O filme tem um delay, um timing
torturador. É um filme em que você se sente uma cobaia, porque é arrastado e
torturador. Como é uma história trágica. Se arrasta e vai aprofundar o
sofrimento, vai nos mergulhar numa purgação ou catarse. Então, é por isso que é
tão sofrido ver, mas é também por isso que você continua vendo. Parece que você
quer se purgar de algo. Creio que todo pai deveria ver esse filme. Há uma expiação
nele. Por isso, os filmes de ação e violência são mais rápidos. Porque colocam
mais imagens e ação para ocupar a percepção e fixar nossa atenção, no depois
imediato. Nesse filme temos a chave inversa. Ele procura fazer você sofrer
junto, pensar junto, sentir junto e sentir a insegurança de um suspense. Você
tem a sensação de que sabe o que vai acontecer, e não suporta esperar, mas não
desiste. É uma encenação da perversão trágica. Exibe a nossa impotência. E ao
exibir ela nos faz sentir empatia pelo personagem. É uma empatia forçada e
indesejável. Você não quer sentir a tortura, mas você suporta estoicamente como
o personagem. É tão real e plausível que não tem graça alguma. Não parece
ficção. Roma, um outro filme com tom trágico, tem um conteúdo que parece ficção
e que é um pouco inverossímil e mágico. Mas, Pastoral não. É muito verossímil. É
um filme Excessivo na verossimilhança, Doloroso na sua possibilidade real. Não
tem nenhum tempero ou requinte. É uma sensibilidade toda mortificada que nos
tortura. O personagem do pai está sendo violentado desde a cena do beijo que a
filha pede "como da mãe". Temos um complexo de Édipo realizado na
negação. A filha mata o pai. Ele é cru e brutal. Temos um cheque mate ao pai.
Que vai se repetindo e se aprofundando. E o pai vai ficando sem saída. A
sensação de que a sorte dele acabou e que agora é só tragédia, nos apavora. Imagina
isso, para o arquétipo masculino é um nocaute. A gagueira da menina projeta a
culpa do pai. E o Nathan Zuckerman? Eu já imagino. Parece desenhado como a
certa altura da vida o destino para desenhado para todos os homens e mulheres.
Para mim, confesso que é algo que me dói. Me lembra meu pai nos seus últimos dias
e as expressões de humildade e modéstia que ouvi dele em diversas circunstâncias
da vida. Lembra muito, decadência necessária e programada da vida. É difícil
não ser pessimista nesse quadro desenhado para nós.
Outra questão é a do feminino
perverso que me lembra muito a Lilith – ou lua negra. A maldade no feminino é
muito inesperada. Porque sempre se imagina o mal a partir do masculino. Não se
acredita e nem se faz estatística desse tipo de fenômeno. O que sei é que no âmbito
da criminalística as serial killers são mais raras. Mas nessa obra esse fenômeno
parece mais intenso e mais trágico, tanto pelo aspecto da vingança quanto pelo
grande ardil. Porque havia beleza ou sua possibilidade de realização de uma
idealização. Os homens morrem mais cedo e se matam muito mais. Porém, a gente
nunca olha para a relação disso com o feminino. Mesmo o maternal fica escondido.
Por isso, é tão surpreendente quando aparece nitidamente esse tipo de
personagem no cinema e na literatura e também na vida real. Tu não acredita no
que está vendo. Estou falando do modo de recepção. Você torce a cabeça como um
cão que avista algo que não compreende e que procura ver de outra forma para conseguir
compreender. Você se pergunta: como assim? Essa sensação de estranhamento
provém também da pouca Representação desse tipo de personagem feminina. Da rara
Representação dessa mulher fatal. Eu reflito aqui um pouco com Cavell. Essa
personagem não é só uma ficção, mas uma representação do real. Quando o mal não
aparece como resultado de uma fraqueza ou acidente, mas como resultado do
exercício consciente de uma força ou intenção. De uma deliberação, você percebe
ele enquanto mal fundamental e radical. Esse mal está baseado em um caráter,
não numa circunstância acidental. De uma
escolha que distribui culpas e punições. Eu sempre fui capaz de perceber o
sadismo feminino por um detalhe estranho na minha vida. É meio que
inacreditável. O mal não vindo da grosseria ou da estupidez. Mas de um
refinamento ou de uma beleza. O mal que é gerado dentro da inocência. Me
defrontei com isso muitas vezes. Creio que a nossa tendência é negar isso
sistematicamente. Pensamos: não pode ser. Isso explica a atitude estoica e
persistente do pai de Pastoral Americana. Ele não desiste da filha. A esposa não quer
saber de mais nada, ela vende as vacas, desiste de ser a esposa do homem
heróico e se transforma ao ponto de ter um amante e fazer uma plástica. Mas o
pai não larga a mão, não engole o destino. Parece um homem contemplando a
existência e renitente com a injustiça que o destino joga sobre a sua cabeça.
Ele não se avista em nenhum momento como culpado, mas sofre profundamente com o
infortúnio. No final, você percebe que não adiantou nada. O desmoronamento
desconcertante do sonho americano na tragédia da vida familiar de um homem faz
jus ao título escolhido. Pastoral Americana é a encenação dramática de uma
tragédia típica na América, de uma tragédia típica também da figura masculina
em que tudo foi feito direitinho, para acabar tudo errado no final.
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