Após ler muitas
traduções da famosa e muito importante passagem de República de Platão, Livro
VII, sou obrigado a concluir que preciso adaptar a tradução do texto para fazer
aquilo ser legível e compreensível aos ouvidos editores e ligeiros destes
alunos atuais. Vou adotar três medidas básicas nesta tarefa: 1. alteração e
adequação do vocabulário, sem perda conceitual; 2. tentar promover uma redução
dos períodos das frases com a pontuação; e, 3 fazer uma marcação posterior a
partir das aulas com este texto de índice dos níveis e fases da argumentação. O texto que apresentamos aqui é baseado na comparação livre entre a última tradução da República organizada por Jacó Guinzburg lançada pela Editora Perspectiva em 2006, com a reimpressão em 2012, nas páginas 263-267., e a tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 225s.
PLATÃO – REPÚBLICA
LIVRO VII – 514a - 517c
A Alegoria da Caverna
Sócrates — Agora imagine
da maneira como se segue o estado da nossa natureza relativa à nossa educação e
à nossa ignorância. Imagine homens que vivem a vida toda numa moradia
subterrânea, em forma de caverna. Esta caverna possuía uma entrada aberta à
luz; esses homens estão aí desde sua infância; eles estão com suas pernas e
pescoços acorrentadas; isso é feito de tal modo que eles não podem mexer-se nem
ver senão o que está diante dos seus olhos; ou seja, só avistam estas coisas porque
as suas correntes os impedem de voltar à cabeça para os lados ou para trás; a
luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa superfície mais elevada que se ergue atrás
deles; entre este fogo e estes prisioneiros passa uma estrada ascendente.
Imagina agora que ao longo dessa estrada está construída uma pequena mureta,
semelhante às divisórias que os apresentadores fantoches - de bonecos em cordéis, armam
diante de si e por cima do pequeno palco nos quais exibem as suas maravilhosas
histórias.
Glauco — Estou vendo.
Sócrates — Imagine
agora, ao longo dessa pequena mureta, que alguns homens transportam objetos de
toda espécie e que eles trazem para cá e para lá: estas estatuetas de homens e
animais, de pedras, madeiras e de todas as espécies de materiais; naturalmente,
entre esses transportadores, alguns falam e outros continuam em silêncio.
Glauco — Que quadro
estranho este e que estranhos prisioneiros.
Sócrates — Eles se assemelham
à nós. E, para começar, você julga que, em tal condição, eles tenham alguma vez
visto, por si mesmos e por seus companheiros, mais que aquelas sombras
projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica frente os olhos?
Glauco — Como seria
possível se são obrigados a ficar com a cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates — E também com
as coisas que desfilam atrás? Não se passaria o mesmo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Portanto, se
pudessem se comunicar uns com as outros, não julgas que tomariam por objetos
reais as sombras que estão vendo diante dos olhos?
Glauco — É bem possível.
Sócrates — E se a parede
do fundo da prisão provocasse um eco, sempre que algum dos transportadores
falasse, não julgariam eles estarem a ouvir o som de uma sombra que passa
diante deles?
Glauco — Sim, por Zeus!
Sócrates — Dessa forma,
tais homens não atribuirão realidade, senão às sombras dos objetos fabricados e
exibidos nas sombras.
Glauco — Assim terá de
ser.
Sócrates — Considere
agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se eles forem libertos das suas correntes
e, então, curados da sua ignorância. Caso se liberte um desses prisioneiros,
que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar seu pescoço, a
caminhar direito, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentas
ele sofrerá, e o deslumbramento acabará por impedi-lo de distinguir os abjetos
de que antes via as sombras. Que julgas tu que ele responderia se alguém lhe
viesse dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, desta vez,
ele está mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais? Vês isto
agora com mais justeza? Se, enfim, mostrando para ele cada uma das coisas que
passam, o obrigarmos, forçando com perguntas, a dizer o que é cada coisa? Não julgas
que, assim, ele ficará embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe
parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostramos agora?
Glauco — Muito mais
verdadeiras.
Sócrates — E se o
forçarmos a fixar na luz, os seus olhos não ficarão ofuscados? Não desviaria
ele a vista para voltar às coisas que pode olhar sem desconforto e não
acreditaria ele que estas é que são realmente mais distintas e verdadeiras do que
as que lhe mostramos?
Glauco — Com toda a
certeza.
Sócrates — E se o
arrancarmos à força da sua caverna, e o obrigarmos a subir a encosta íngreme e
escarpada e não o largarmos antes de termos arrastado ele até a luz máxima do
Sol, não sofreria ele vivamente e não se queixaria ele disso como uma
violência? E, quando tiver ele atingido à luz, poderá, com os olhos ofuscados
pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco — Não o
conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates — Terá, creio
eu, necessidade ele de se habituar a ver os demais objetos da região superior.
Começará ele distinguindo com mais facilidade as sombras; em seguida, distinguirá
as imagens dos homens e dos outros objetos que são refletidas nas águas e na
parede; por último, verá bem os próprios objetos. Depois disso, poderá,
enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente ainda,
durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, ao
Sol e a sua intensa luz.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Por fim,
suponho eu também, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em
qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ele
ver e contemplar tal como é em sua máxima luz e intensidade.
Glauco —
Necessariamente.
Sócrates — Depois disso,
poderá concluir, à respeito do Sol, que é causa das estações e dos anos, que ele
governa tudo no mundo visível e que, de certa forma, é também a causa de tudo o
que ele avistava com os seus companheiros naquela caverna.
Glauco — É evidente que ele
chegará a essa conclusão.
Sócrates — Ora,
lembrando-se da sua primeira moradia, da sabedoria que ele julgava possuir lá e
daqueles que lá foram seus companheiros cativos, não julga que ele se alegrará muito
com esta mudança e lamentará, por outro lado, pelos que lá ficaram prisioneiros?
Glauco — Sim, com
certeza, Sócrates.
Sócrates — E se, então, entre eles distribuíssem honras e louvores, se eles tivessem à disposição recompensas para
aquele que percebesse, com um olhar mais vivo e apurado, esta passagem das
sombras, àquele que melhor se recordasse das sombras que costumavam chegar em primeiro
ou em último lugar, ou percebesse elas vindo juntas, e que por isso era o mais capaz
e hábil em adivinhar e prever a sua aparição, e que isso, assim, provocasse a
inveja e o ciúme daqueles que, entre os prisioneiros, são os mais venerados e poderosos
por suas posições anteriores conquistadas e suas expressões? Ou então, como o nosso grande herói de Homero (é Aquíles na Odisséía, 489-490),
não preferirá mil vezes ser um simples criado de uma charrua, a serviço de um
pobre lavrador qualquer, e sofrer tudo que é possível neste nosso mundo, do que
ter que voltar àquelas antigas ilusões e ter que viver como vivia antes?
Glauco — Sou da tua mesma
opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.
Sócrates — Imagine ainda
que aquele homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará ele com os olhos cegos pelas trevas dela ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco — Por certo que
sim.
Sócrates — E se tiver de
entrar em uma competição com os prisioneiros que não se libertaram de
suas correntes, para julgar essas sombras, o que ocorrerá? Ele, assim, estando
ainda com a vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois
habituar-se de novo à escuridão exigirá, ainda, algum tempo bastante longo; não
fará ele, então, com que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido
lá acima – ou lá fora, ele voltou, com a vista cansada e estragada, pelo que
não vale à pena mesmo tentar subir até lá? E se ousar tentar libertar alguém
e tentar conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco — Sem nenhuma
dúvida.
Sócrates — Agora, meu
caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, em cada detalhe esta imagem ao
que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na
caverna, e a luz do fogo que a ilumina, com a força do Sol. Quanto à subida à
região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a
ascensão da alma para uma mansão em que tudo é inteligível, não te enganarás
quanto à minha ideia, visto que também tu desejas
conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto à mim, à minha opinião é
esta: no mundo inteligível, a ideia do bem é a última a ser apreendida, e com
dificuldade, mas não se pode apreendê-la, sem concluir que ela é a causa de
tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela
engendrou a luz e é soberana da luz; no mundo inteligível, é ela que é a grande
soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se
comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco — Concordo com a
tua opinião, até onde posso compreendê-la.
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