HANNAH ARENDT E
MARTIN HEIDEGGER:
PEQUENO ENSAIO SOBRE
A
FILOSOFIA, O AMOR E AS IMPOSSIBILIDADES -
“Há
uns que nos falam e não ouvimos;
há
uns que nos tocam e não sentimos;
há
aqueles que nos ferem
e
nem cicatrizes deixam,
mas...
há aqueles
que
simplesmente vivem
e
nos marcam por toda vida"
Hannah
Arendt
“Todas
as mágoas são suportáveis,
quando
fazemos delas uma história
ou
contamos uma história a seu respeito.”
Karen
Blixen (ou Isak Dinesen):
Quando
leio Hannah Arendt (1906-1975), não vejo nela uma filósofa menor que Martin
Heidegger (1889-1976). E não se trata de afirmar ou repetir retoricamente o
gigantismo de ambos, o que não cabe aqui, mas simplesmente de reconhecer a
forte e marcante impressão de ambos. Para qualquer leitor deles medianamente
informado e criticamente posicionado a leitura de suas obras traz grandes
surpresas, muitas descobertas e coloca o nosso pensamento em uma dimensão que
certamente é da boa filosofia. Nenhum dos dois é um repetidor, um reprodutor ou
um mero exegeta ou intérprete das filosofias anteriores ou que lhes são contemporâneas.
Em ambos, percebo claramente um pensamento novo, um pensamento diferente e que
acrescenta algo na compreensão do fazer filosófico, do pensamento humano e
deste mundo.
Em relação ao panorama filosófico no qual os dois se inserem seja no século XX, seja na história da filosofia, vista de um muito largo e longo plano histórico de observação e estudo, é indubitável que ambos figuram com grandeza em suas áreas de investigação, atuação e reflexão. E podem com certeza pertencer com suas obras e ideias, problemas e investigações àquilo que meu estimado professor Ernildo Stein chama de um Cânone da filosofia.
Reconheço
a grandeza e o gigantismo de Heidegger, que se projeta para toda a história da filosofia
– com todos os riscos que toda forma de grandeza acarreta - e estou muito
distante de algum dia mudar de opinião sobre isto e a cada leitura, à cada
releitura, tendo a ficar mais convicto de sua importância filosófica. Ao mesmo tempo, à medida que o tempo passa, à medida que minha formação se dilata pelo conhecimento de outros autores vão se confirmando as fortes impressões de que suas teses principais de Ser e Tempo, aquela do esquecimento da questão do ser e aquela da necessidade de se retomar certa compreensão da finitude, se tornam mais e mais fundamentais na leitura da história da metafísica e da filosofia.
Apesar do
oceano de incompreensão e de dificuldades para compreendê-lo, a partir de um
olhar mais influenciado seja pela escola analítica, seja pela filosofia da
lógica e da filosofia da linguagem, seja mesmo pela hermenêutica e pelos
esforços contínuos que são produzidos contra ele em função do seu período de
reitor do nazismo – seu pecado ou erro político de ser o reitor por dez meses
de uma universidade, não reconheço como razoável o julgamento da grandeza da
obra Ser e Tempo (1927) ou da preleção O que é Metafísica? (1929), entre
outras, como dependendo do valor ou do baixo valor da sua escolha ou de seu
gesto de 1933.
Aliás, tem
ocorrido com freqüência na história da filosofia que a infelicidade política
deste ou daquele filósofo tenha lhe impingido a incompreensão ou mesmo uma espécie
de esquecimento forçado, um exílio forçado, no mais das vezes por uma
leviandade e, também, esta sina que parece envolver todo o pensamento do
diverso neste mundo. Desde antes de Sócrates mesmo, após ele e com muitos
outros filósofos isto tem ocorrido. De tal modo que pareceria razoável em
primeiro lugar aos próprios estudantes de filosofia, aos professores de
filosofia e aos autodidatas na matéria – e mesmo aqueles que são tratados como
filósofos ou que se auto denominam em tais ocupações e com tais atributos –
mais cuidado nestes juízos condenatórios ou avaliativos. E ainda que alguns
tenham obra tão notável, fundada simplesmente na crítica à obra de outros, nem
mesmo estes obtém qualquer triunfo ou glória objetiva ao fazerem o que é feito
com Heidegger ou Hannah Arendt.
O
fato ocorrido em 1924 de que Heidegger, um professor de filosofia, casado, pai
de dois filhos, com 35 anos, se envolve amorosamente com uma aluna, de 18 anos
apenas, e que com esta assimetria de idades e de posições em relação também à
filosofia, esta relação persiste, não pode ser, por outro lado, somente um
enredo de curiosidades e de detalhes de um relacionamento peculiar ou picante,
como tem sido tratado também por ai. Ambos, independente disso, contraíram
muitos inimigos. Ele por conta de sua simpatia, aproximação, adesão ou flerte
com o nazismo, que passa pela Reitoria da Universidade de Freiburg, e ela
também por conta de suas críticas a uma certa forma de semitismo em seu
Eichmann em Jerusalém. Ou seja, ambos com suas liberdades de escolha e com seus
próprios juízos conseguiram a façanha de atrair a atenção negativa e os juízos
condenatórios por conta da questão judaica e da questão nazista.
Também
reconheço a grandeza do pensamento filosófico e político de Hannah Arendt que
se projeto sobre toda a filosofia política e com certeza suponho que suas obras
merecem nossa vista quando quisermos compreender, explicar ou fazer uma revisão
crítica das mazelas da política e do pensamento político no século XX.
A
verdade é que mesmo que os dois não tivessem uma relação, receberiam ambos
diversos ataques por suas posições e condutas. Mas não ficou só nisso, ocorreu
também que a “aluna judia” e o “professor nazista” tiveram um caso
amoroso. Disto passar-se para a polêmica
não é um passo, é num piscar de olhos.
Ao
pesquisar um pouco este tema me dei conta de um pequeno detalhe: seria injusto dizer
aqui que a nenhum dos seus grandes críticos, pela questão nazista ou judaica
conhecidos, foi dada a honra ou constituído o mérito de produzir uma obra
fundamental seja em metafísica e filosofia, seja em política ou em história,
mas também é injusto medir a qualidade da obra de ambos pelas mesmas questões.
O caso é que ambos, apesar de seus inimigos, críticos, detratores, se tornaram
fundamentais para o pensamento do século XX, ainda que de formas diferentes e a
partir de pontos de vista diferentes. Assim, apesar deles acabarem tendo que
tomar caminhos diferentes, em parte por opção dele e de outra parte pelo rumo
dos acontecimentos, os quais como forças do destino guiaram os dois
existencialistas para direções opostas, um para o exílio nos EUA e o outro para
Reitoria e a adesão ao Nazismo, isso não reduz a importância do seu encontro.
E mesmo assim
este envolvimento se perpetuou por 50 anos, o que deve dizer algo também sobre
os dois e sobre a filosofia dos dois, apesar das impossibilidades que se
concretizaram e das virtualidades que se consagraram ao longo destes anos
todos.
Vou fazer um pequeno desvio inicial e intencional aqui. A palavra filosofia é
sempre e geralmente cunhada e analisada etimologicamente pelas expressões amor
(em grego filia) e sabedoria (em grego sofia), o filósofo seria um amigo ou
amante da sabedoria. Sempre preferi dizer que o filósofo é o amante da
sabedoria ou aquele que tem amor pela sabedoria e sei já que para alguns isso
tem um significado ultrapassado ou não corresponde às suas preferências ou
predileções conceituais e lógicas. Pois eu continuo neste caminho de procurar
dar sentido afetivo a esta atividade e não tenho me afastado de um encontro com
ela em que além do estranhamento e admiração, o espanto – me foi dado gosto
pela atividade, o qual a medida que fui desenvolvendo e praticando, se pode
chamar também de um certo amor.
Aristóteles
abre curiosamente uma de suas diversas lições sobre o conhecimento afirmando
que “todos os homens tem desejo de conhecimento” e que “uma prova disto é o
prazer das sensações”. Já gastei e vou ocupar ainda algumas aulas abordando
esta pequena passagem e procurando mostrar o quanto é preciso que esta
expressão de Aristóteles seja entendida não como uma esperteza de professor que
procura cativar ou capturar a curiosidade de seus alunos e a atenção deles. Mas
sim porque devemos atentar como uma gigantesca e muito severa solução para o
problema de demonstrar como nossa alma intelectiva se ocupa com os objetos dos
sentidos, com as coisas, e tem algum prazer ao conhecê-las. E como, em uma pequena
anotação agora, de uma pequena curiosidade ou admiração nós ascendemos ao
conhecimento das causas últimas e primeiras e contemplamos a verdade
conquistando a sabedoria. No caso aqui conquistar sabedoria só é possível com
gosto, com atenção, com perseverança e se realiza sim como uma forma de amor.
Com um único senão de que precisamos diferenciar o gosto pelo conhecimento do
amor à sabedoria no sentido de que este último é um fim em si mesmo e que o
primeiro se realiza também tendo em vista outras coisas, ainda que para aqueles
que o produzem seja também um fim em si mesmo. É assim que posso diferenciar o
desejo de conhecimento tendo em vista sua aplicação do desejo de conhecimento
que se realiza em si mesmo, per si.
Assim,
digo a filosofia, não é somente um processo de obtenção de conhecimento per si,
mas que é um processo recíproco de conquista da sabedoria em que ocorre uma
certa sedução mútua entre o sujeito e seu próprio objeto de conhecimento, ainda
que este objeto não tenha vontade própria, ressalvadas as hipóteses de um outro
sujeito ou de que o pensamento possa ser um grande coletivo de ideias que ao
longo da história se materializam ou se instanciam neste mundo e que uso aqui
como adágio de abertura deste texto, porque ali adiante isso talvez ajude a nos
colocar de outra forma esta relação de Heidegger com Hannah Arendt e de ambos
com a filosofia. Valendo aqui a clássica situação do amor Platônico em que
ambos se amam tendo em vista um terceiro elemento que é a filosofia e que é
mais amado por eles. Quem sabe, assim, se possa mostrar também que esta relação
dos dois é como que mais uma narrativa também deste amor pela sabedoria em que
o gosto, a paixão e o enigma e o mistério também estão presentes. O enigma de
saber-se quem tomou a iniciativa e como o enredo se construiu entre o professor
e a aluna e o mistério de saber o que torna tão firme o laço amoroso entre
ambos, apesar de tudo.
Jamais
poderemos saber, além disso, mesmo que publiquem todos os textos, anotações,
cartas, bilhetes e documentos inéditos de ambos, o que em Hannah e o que em
Heidegger os aproximaram tanto em pensamento e em desejo. Assim só nos resta
pegar vestígios disto que se passou e tentar narrar com cuidado e zelo o que
pode ter acontecido com eles, mesclando com aquilo que foi o caso efetivamente.
Quer dizer só é possível construir uma narrativa hipotética sobre fatos
estabelecidos e fazendo ligações com cuidado.
Um exemplo
disto é o filme recente de Margarethe von Trotta, Hannah Arendt (2012), em que
ela dá atenção especial ao tema de Eichmann em Jerusalem e do escândalo crítico
e leviano que se seguiu a interpretação dela da “banalidade do mal”. A direção
e o roteiro tem uma elegância e uma qualidade muito boa ao enfatizar inclusive
com um sinal de uma espécie de relação muito especial entre os dois, que passa para além da malícia da pergunta da grande amiga americana de Hannah, Mary Macarthy sobre o amor de Hannah por Heidegger e que no texto do filme sobre se a
relação é a mais importante ou “é a melhor ( )” dela. Margarethe faz de certa
forma justiça, citando Santo Agostinho pela boca de um Heidegger claramente
apaixonado citando que “Não há maior convite ao amor do que precedê-lo amando.”
A versão latina
de Santo Agostinho que é citada: “Nulla est enim maior ad amorem invitatio, quam
praedenire amando.” Nos traz muitas evocações interessantes. Em primeiro lugar, porque esta passagem clássica, recebeu um comentário notável de nosso padre Antônio
Vieira, no Sermão da Primeira sexta-feira da quaresma de 1644. Vou citá-lo aqui não por mera erudição, mas porque o seu comentário põe luz em uma dificuldade na interpretação da relação de Hannah e Martin, a qual é tocada pela doutrina agostiniana do amor. Vejamos o texto
brilhante sobre a força do amor:
“Santo Agostinho,
em menos palavras não disse menos. Nulla major est ad amorem invitatio, quam amantem
amore praevenire. Et nimis durus est animus, qui si dilectionem nolebat
impendere, nolit rependere: O maior e mais certo motivo de ser amado, é
antecipar o seu amor quem quer alcançar o alheio. Todos os outros motivos, por
mais fortes que pareçam, e por mais usados que sejam, conquistam vaidade e
engano, mas não verdadeiro amor. A formosura entretém os olhos, as dádivas enchem
as mãos, a discrição lisonjeia os ouvidos, os regalos saboreiam o gosto, o
poder e a majestade faz dobrar os joelhos; mas sujeitar e render o coração, só
o amor. E o coração humano tão generoso, que não se rende senão a seu igual,
nem há outro interesse, força ou arte com que se possa conquistar, senão
amando: Nulla major ad amorem invitatio, quam amore praevenire. A palavra
invitatio soa a invite, e o praevenire é ganhar por mão. Quem tomou a mão em
amar primeiro, esse levou o resto ao amor. A razão é — diz Agostinho — porque
se no mundo houver algum coração tão duro e duríssimo, que nem ame nem queira
amar, nenhum haverá tão alheio de toda a humanidade — ainda que seja esse mesmo
— o qual, depois de amado, não queira responder com amor: Et nimis durus est animus,
qui si dilectionem nolebat impendere, nolit rependere. Notai muito aquele
nolebat e este nolit. Antes de o amarem, poderá haver coração tão duro que não
ame nem queira amar; mas, depois de se ver amado, há de amar e querer amar,
ainda que não quisesse.”
Com esta citação
cuidadosa de Santo Agostinho sobre o amor e o convite ao amor e o esperar
amando, julgo que ela foi muito bem escolhida, pela autora do filme, a qual nos
apresenta a força do amor entre ambos, mesmo na ausência, mesmo na espera, mesmo
na distância, mesmo na diferença, o que se deu por força de muito querer de um
ou de outro, não interessando, nem no filme, nem na vida real, quem, afinal? Deste
modo vemos um enredo elegante e cuidadoso em que este amor é encenado e fica muito
bem feito, calando as levianas leituras e superficiais interpretações deste tema,
em todas as suas cinco passagens sobre o tema do affair.
A prova de interpretação
deste affair é um bom desafio também para vermos quanta filosofia há na análise
desta ligação entre ambos e que sentido eles construíram a partir dela. Vejo
nesta análise um grande desafio também para uma tarefa de compreensão do papel
inaugurado pelas mulheres na filosofia do século XX, através destas grandes
personagens. Papel este que, ao meu ver, tem sido ainda negligenciado e
diminuído por conta de uma forma ainda machista de ler a filosofia e, também,
assim me parece por uma espécie de secundarização ou desvalorização de toda e
qualquer filosofia aplicada, ou seja, uma espécie de predomínio ainda dos temas
clássicos da filosofia das três grandes áreas como a Metafísica (ontologia), a
Lógica (ou filosofia da lógica) e a Ética (ou Moral), em relação a uma – por
assim dizer – filosofia pura. É uma característica própria destas mulheres que
fizeram filosofia no século XX que elas tenham se dedicado mais a uma filosofia
aplicada ao real.
Quando me
coloquei, lá no início do ano este desafio, a partir de certas leituras de
Simone de Beauvoir, Simone Weil, me dei conta de que parecia haver um certo
esforço historiográfico para colocar Hannah Arendt à sombra de Martin Heidegger
e Simone de Beauvoir à sombra de Jean Paul Sartre. É talvez apenas uma
curiosidade que estes dois “casais” ou “pares” nada convencionais, sejam ambos
orientados por uma filosofia cujo nome tem sido o Existencialismo e que
irrompeu como um grande passo na metafísica e que politicamente se bifurcou em
um Sartre Marxista ou Neo-Marxista, um Heidegger engajado no Nazismo – pelo
menos por algum tempo, e tanto Hannah Arendt quanto Simone de Beuavoir
promovendo – ao meu ver ainda – ambas uma revolução na política e também na
temática de gênero e direitos humanos.
É
preciso também refletir um pouco sobre o quadro geral em que se insere esta
relação entre Hannah Arendt e Martin Heidegger nos idos de 1924. Além de
representar um relacionamento entre-guerras, ocorre que talvez um dos temas
mais presentes e debatidos no meio intelectual europeu – e em especial no meio
dos alemães dos anos 20 é de uma crise na civilização, crise nas ciências, os
anos 20 representam um tempo em crise para boa parte de seus pensadores. E é
possível até mesmo encontrar uma espécie de mal estar civilizatório e sombrio
como que marcado pelo morticínio da primeira guerra e que antevê o que ocorrerá
na segunda guerra mundial. E este mal estar gera críticas contra a sociedade, contra
o tempo, contra o clima espiritual e muitos
Penso
também nesta condição feminina na filosofia. Algo que tem ocorrido e que parece
colocar sempre a mulher ou o feminino na lateral dos combates da história do
pensamento humano e que parece ter mudado no século XX, mas que, mesmo assim,
mantém esta imagem estranha. De que há um lugar na lateral da história
reservado para elas, um lugar delimitado e preservado, e que elas assim parecem ser lidas por nós ainda hoje. Não sei se uma figura ou metáfora cai bem aqui.
Penso
que não é correto ler a questão da mulher na filosofia assim, mas me vem à calhar que a guerra, a meia
guerra só é vivida nas laterais da história. E não me parece que Simone de
Beauvoir – para mencionar outra filósofa que merece mais atenção, tanto em
relação ao seu par próprio, ou Hannah Arendt tenham, no século XX, nos debates
que protagonizaram e travaram, que elas tenham vivido meias guerras. A verdadeira guerra, por outro
lado, também ocorre dentro de nós mesmos. E a consciência disso às vezes nos
suaviza, nos amacia e às vezes nos endurece ou nos enfurece e nos lança sobre
grandes desafios. Este é o modo como vejo a grande empreitada de Hannah
Arendt, desde a sua formação e tese sobre o amor em Santo Agostinho, passando pelos tratamentos do Totalitarismo, da Violência, da Revolução e, por fim, da banalidade do mal que depois
em especial após as questões do anti-semitismo e da segunda guerra mundial lhe tocam até o final da vida, até meados dos
anos 70.
Nenhuma
filosofia que presta, podemos anotar, sobrevive ao engano, ao engodo. Mas isso não torna de
modo algum filosofias que tiveram ampla circulação ou que possuem ampla
acolhida, enganos. Com a filosofia existencial, a fenomenologia e outras que
saíram de cena nos últimos anos alguns julgam haver um engodo, mas isso me
parece somente um exagero nas novas pretensões oficiais e acadêmicas de
determinarem os paradigmas dominantes e certas linhas de pensamento
privilegiadas. De tal modo que ao
flagrar um jovem refletindo de que deveria ir com calma para escolher seu
objeto de investigação e seu método de predileção eu lhe disse afetuosamente
que talvez ele devesse ir com calma mesmo porque poderia ser seduzido por algum
método ou objeto de reflexão. No entanto, ainda que alguns vejam nela uma moda
ou grandes coisa, portanto, é a mesma coisa que dizer que é um engano
passageiro, ou um gosto ocasional para mim o pensamento de Hannah Arendt que me
parece vivo, presente, ativo e colocado ainda no horizonte da reflexão atual.
Posso
estar enganado, sim, sempre posso estar enganado, mas creio que deveríamos
olhar com mais atenção para estes fenômenos das mulheres na filosofia do século
XX. Na maior latitude possível e com um ímpeto e impulso mais compreensivo do
que tenho notado, observado e registrado neste pequeno empreendimento aqui.
Hannah
não é somente diferente, mas também tem sua expressão e força de pensamento que
vinga e estabelece um marco no pensamento filosófico do Século XX. E o pensamento
filosófico dela, ao meu ver, que fica mais apresentado não nos seus objetos de
análise, sobre os quais aplica seu próprio pensamento conceitual e que são, em
geral, fenômenos fatuais e históricos, políticos e sociais do século XX, mas
sim onde ela apresenta o seu método e nos seus conceitos que ela desenvolveu ao
longo de toda a sua trajetória intelectual que segue de 1926 a 1975.
Assim,
para mim Hannah Arendt era uma filósofa, mesmo que ela recusasse esta
designação em entrevistas e em algumas passagens de suas obras. Isto não tira
nenhum mérito das outras designações que ela recebe de cientista política – que
é aquela que ela mesmo preferia receber - ou filósofa política, pois suas obras
concorrem em muitos sentidos para a formação e consolidação de um novo
pensamento político contemporâneo do século XX cuja principal característica é
explicar e compreender os fenômenos violentos e totalitários e ao mesmo tempo
construir uma teoria democrática para a ciência política. E esta nova teoria
democrática não pode ser simplesmente afiliada ou encarrilhada nos vagões de um
grande trem que seria o pensamento liberal americano ou moderno. Mesmo que se
estude mais a fundo a démarche de Hannah Arendt em relação à Marx e ao
pensamento marxista do século XX e suas retomadas de Kant na teoria política
seria muito superficial alegar, por conta disto, que ela se resume a uma nova
liberal. Eu diria inclusive que há mais filosofia no pensamento político de
Hannah Arendt do que propriamente política e isto ao meu ver provém da forte
influência de Heidegger e da marca desta relação dele com a filosofia.
“Ninguém
sabe dar uma aula como você dá, e ninguém deu uma aula igual antes de você,
sendo um excelente professor que dominava a filosofia como se tivesse doado
totalmente a ela e como se ela fizesse parte do seu eu”. Hannah Arendt sobre o
professor Heidegger.
Mais
tarde ela mesma confessa sua forte afiliação e influência filosófica na
tradição alemã, não tanto na política na história ou no marxismo. Mas, a
relação de Hannah Arendt com a filosofia e Martin Heidegger ultrapassa a
relação de contemporaneidade ou de formação filosófica aproximada na Alemanha
dos anos 20. Ele como professor e ela como aluna de filosofia e logo em seguida
doutoranda em filosofia. Há um outro motivo para vermos os dois juntos e
eventualmente compará-los ou traçar linhas sobre suas relações.
Nos
chama muita atenção a relação afetiva e controversa entre Hannah Arendt e
Martin Heidegger. Alguns consideram esta relação com origem em um interesse e
motivação intelectual que ela veio a tornar-se passional ao longo dos primeiros
meses o que levou a uma espécie de afastamento de Hannah de Marburg. O
interesse nisso coincide com o fato de que para ambos este período biográfico é
chave. Para Heidegger é aquele de seus grande impulso para a publicação de Ser
e Tempo e para ela alavanca a sua relação com a filosofia existencial que havia
se iniciado com leituras e estudos de Soren Kierkegaard e Teologia Cristã em
Berlin em 1924, nas lições de Heidegger de 1924-1925 em Marburg, Edmund Husserl
em Freiburg 1926 e passam para Karl Jaspers em 1927-1928 em Heidelberg.
Como
se constata Hannah Arendt, a partir de sua educação básica em Konigsberg, na
qual teve contato precoce coma obra de Kant, onde descobriu aos 14 anos que
seria filósofa, passou a freqüentar boa
parte das mais importantes instituições universitárias alemãs em plenos anos 20
e teve como mestres e professores os mais importantes intelectuais e filósofos
alemães daquela década. Assim, o interesse por esta relação pessoal com
Heidegger que permanece até o ano de
1933 com a adesão de Heidegger ao Nazismo ao assumir a reitoria, com suas idas e vindas, não é
tanto por uma curiosidade ou necessidade de invadir ou desvendar uma intimidade
de uma relação pessoal entre ambos.
O
fato de Heidegger, que era casado, não aceitar pensar na ideia de se separar e
a relação se manter entre ambos nos provoca uma interrogação com duas
alternativas de resposta. Havia, é razoável supor, uma grande dependência de
Hannah em relação à Martin ou, então, havia de fato uma dependência de ambos e
a indissolubilidade do casamento para Heidegger bloqueava um vínculo efetivo,
formal e público, em virtude também de suas mudanças de religião que passaram
por conversão ao catolicismo e o bloqueavam a fazer mais este “giro” em sua
existência. Estou adotando aqui
deliberadamente uma visão mais compreensiva, mas isto não quer dizer que não se
possa pensar em que o preço pessoal tanto para Heidegger quanto para Arendt.
Creio, que no fundo eles pagaram alto preço pessoal e afetivo com esta
circunstância.
Além
disso, serve para pensar o fato que foi uma relação sempre secreta, da mesma
forma que foi com uma segunda aluna de Heidegger antes, haja visto que o mesmo
já havia se casado dez anos antes em 1915 com Elfriede Petri, que já havia sido
sua aluna também. Esta relação com Hannah que foi durante muito tempo
completamente encoberta tanto por segredo, dissimulação e muito sigilo “por
causa das aparências”, mas também porque eles levaram esta relação, por assim
dizer em uma evolução, partindo de um primeiro envolvimento afetivo e amoroso
de uns dez anos, segundo a maior parte dos biógrafos, até chegar na maturidade
em uma amizade compartilhada e assentida inclusive pela esposa de Heidegger,
mas que envolveu, em minha opinião e juízo, uma dependência portanto afetiva
que é bem recíproca com uma natureza bem real e objetiva de ambos apesar de
suas relações com os outros cônjuges próprios. Ou seja, pode se dizer sim que
estes dois grandes pensadores do século XX, tanto para a filosofia quanto para
a política, preservaram um relacionamento, apesar das circunstancias, tão
indissolúvel quanto indissociável ali naquela esfera que interessa realmente,
na esfera da intimidade.
O
outro ponto de curiosidade ultrapassa a vida íntima dos dois e passa para o
tema da relação entre as ideias de ambos, sobre uma possível influência ou
provocação recíproca e também – talvez aqui esteja o principal ponto de atração
para o nosso interesse – desvendar a natureza dos diálogos entre ambos ao longo
destes praticamente 52 anos de vida dos dois – cujo único hiato se deu com a
ruptura de relações entre os dois a partir de 1933 – a posse de Heidegger com
reitor - e a amizade retomada em 1949, após a desnazificação, por assim dizer.
São 16 anos que o silêncio das cartas e palavras ao nosso ver não significou o
silêncio do pensamento, das lembranças e quem sabe do afeto muito íntimo e pessoal
entre ambos.
Os
dois – e esta parte da história é bem conhecida e já foi muito detalhada e
documentada - se conheceram na Universidade de Marburg, em 1924. Isso ocorre
quando ela era uma jovem estudante de 17 anos, e ele, um professor de 35 anos
que já possuía destaque e uma platéia concorrida de muitos alunos em suas
aulas. Ele, que ainda não tinha publicada sua principal obra Ser e Tempo
(1927), mas que já tinha ampla audiência, preferência e muita atenção dos
demais professores de filosofia de sua época, incluso ai o mestre Edmund
Husserl.
Ela,
segundo consta, freqüentou as aulas de Heidegger por um ano e um pouco depois
disto iniciou-se um tórrido romance entre os dois.
Mais
tarde ela resolve se afastar de Heidegger e Marburg e segue para Freiburg e,
então, sem seguida é recebida por Karl
Jaspers em Heidelberg (cidade que fica a Xkm de Marburg). A tese de
doutoramento de Hannah, defendida em 1929 sob orientação de Jaspers, foi
fortemente marcada por categorias heideggerianas segundo André Duarte e versava
sobre o “conceito de amor em Santo Agostinho”. E não é possível se imaginar tal
objeto de pesquisa e tal influência heideggeriana, sem imaginar a relação
amorosa entre ambos e, no mínimo, uma conexão entre a temática e a sua própria
vivência ou realidade.
No começo de
1926, ela não suportava mais a situação embaraçosa e decidiu trocar de
universidade, indo para a universidade Albert Ludwig de Freiburg, para ter mais
lições de filosofia com Edmund Husserl. Ela também estudou filosofia na universidade
de Heidelberg e se formou em 1928 sob a tutoria de Karl Jaspers, com a sua tese
O conceito de amor em Santo Agostinho ela marcou um tento interessante sobre
este tema e sua efetividade existencial.
A amizade com
Jaspers duraria até a morte do filósofo. Hannah Arendt não nasceu em
Konigsberg – mas foi educada em seus primeiros anos na cidade natal e o único lugar em que o grande Kant viveu sua vida
inteira – mas também estudou Kant e recebia uma educação, apesar disto, bem
liberal de sua mãe que era uma viúva cujo marido havia falecido, quando a
menina Hannah possuía apenas sete anos.
Heidegger disse
certa vez que “a origem não está atrás de nós ela está à nossa frente”
Mas, enfim, Arendt
“se as coisas tivessem seguido algum dia os trilhos corretos entre nós” ela
dedicaria o livro A Condição Humana à Heidegger...
Maravilhoso!
ResponderExcluirNão por acaso, numa busca encontrei a informação que procurava sobre Hannah Arendt e o seu Blog, parabéns por ele.
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