“Nossos complexos são a fonte de
nossa fraqueza; mas com frequência são também a fonte de nossa força."
S. FREUD
Estes dias iniciei minha aula me
apresentando aos alunos e alunas e contando um pouco da minha formação. De
repente parei por um instante e inclui na fala uma intuição que me veio à
cabeça como que num instantâneo. Tão importante ou mais importante que a escola
ou universidade que nós freqüentamos, por sua qualidade e estrutura, por seu
espaço e acervo, é a qualidade dos professores e professoras que nós tivemos.
No meu caso tive professores e professoras de filosofia que pertenciam a
geração que viveu o processo de expurgos na UFRGS e outras universidades e que,
antes disto, pertenceram ás primeiras gerações de professores laicos no ensino
de filosofia no RGS.
Eles foram alunos dos primeiros
marxistas, existencialistas, libertários, fenomenólogos e logicistas que
rompiam com a escolástica tomista ou agostiniana. Devo dizer que o termo
rompiam é certamente exagerado. Na verdade eles seguiam e passavam para além da
matriz de influências dos seus mestres. Porém, é bom que se diga que meus
professores pertencem a geração daqueles que foram os primeiros professores
brasileiros a se relacionar com três grandes escolas filosóficas
contemporâneas: a escola francesa, a escola alemã e a escola inglesa. Através
disto eles se relacionam talvez como que entre um professor e outro numa linha
de passe que segue até os maiores filósofos do século XX e antes deles os
maiores ou mais importantes e relevantes filósofos do século XIX.
Uma das formas de adquirirmos
experiências é através dos livros. Destes tomamos emprestadas e de outras
vidas, suas experiências. Um autor disse certa feita que quem lê tem mais tempo
de vida. Pode ser. Ao meu ver ler 100 páginas por dia é uma baita carga de leitura.
Algumas pessoas dizem poder ler 500 páginas. Isso se bem feita ao meu
ver...considero meu limite e bem razoável...e dependendo do tipo de texto
considero uma façanha...
E eu te entendo..não sou um
vivente que pode se considerar um grande leitor...mas o que leio se conecta
muito fortemente à minha existência e forma de pensar...e ocorrem relações
cruzadas ai também...as vezes leio sobre o que estou vivendo e ou sobre o que
quero viver, mas também leio sobre o que outros próximos vivem...ou desejaram
viver..
Às vezes vivo ou vivi coisas que
muito tempo depois encontrei explicadas ou narradas nas minhas leituras...
Tenho até dificuldade para falar
sobre este tema porque envolve coisas que poderiam ser consideradas simplórias
por alguns ou idealistas por outros. Mas também leio temas abstratos e
teóricos. Da metafísica até a ética, passando pela lógica e por teorias
históricas ou sociológicas, mas me habituei a tentar fazer estas coisas
conversarem com minha vida, meu modo de pensar, me relacionar com os outros,
minhas escolhas, preferências, valores...
Esta dificuldade me parece ter
origem na falta de uma certa teoria que dê conta disto. Esta relação entre vida
e obra, teoria e experiência, biografia e obra de ficção.
Comecei a estudar Bernard
Williams, por exemplo, e passei, após poucas páginas, a ficar pensando nas
ideias dele e na relação disto com nossa vida. Por exemplo, aquele negócio de
sorte moral. Imagine você que sorte moral é um conceito que dá conta tanto da
influência da má sorte quanto da boa sorte sobre nossas ações morais.
Alguns autores gostam de usar
aqui a questão do acaso e dos acidentes na determinação do nosso destino ou de
nossos sucessos, pois não há uma cadeia de ações todas deliberadas que nos
conduz ao êxito ou ao sucesso. Nós acabamos, por mais organizados, planejados e
por melhores que sejam nossas deliberações e juízos, dependendo sempre do
imponderável. E é isto que tem causado talvez este profundo mal estar em
algumas pessoas nos tempos modernos. A angustia, a ansiedade e o medo devem sim
se dever a este fato que possui certa regularidade na nossa vida: a surpresa e
o acaso se intrometem por demais em nossos planos.
Por exemplo, eu preciso escrever.
Isso é uma necessidade para mim, mas muitas vezes as idéias e temas, abordagens
e aproximações sobre as quais escrevo me vem não de um estudo detalhado de uma
questão, não de um ataque sistemático e continuo a uma certa fortaleza ou
fronteira bem precisa do conhecimento, mas de forma fortuita e quase gratuita
se apresentam para mim. Mas, veja só, só acabo tratando deles, das pistas pelo
caminho se dou atenção a elas, se tenho certa disposição a perder algum tempo
refletindo sobre os fatos fortuitos, os acasos, as coincidências e os sinais e
pedras no caminho.
Vou usar uma expressão aqui: a
literatura faz uma encenação. Uma encenação é sempre um risco, porque pode não
dar certo. O leitor encena na sua imaginação e o autor também, mas como ocorre
no teatro você pode perceber tudo e perder partes, o ator também e até o
diretor..e tem aquele dia em que dá tudo certo no palco e na platéia...passam
anos e se você trabalha com isso reconstrói em detalhes o que aconteceu, mas
jamais vai conseguir fazer igual...os artistas que criam esta espécie de vida
paralela e lidam com ela ganham uma tal sensibilidade estrutural que faz eles
perceberem o brilho e a graça no detalhe e os bons leitores também...
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