Te confesso que Freud é um
intelectual que eu jamais ousaria subestimar. E ainda me surpreendo muito com
ele.
Creio que deves pensar bem mais
sobre o que ele diz ali relativamente ao rompimento entre passado e futuro com
a morte. Uma sugestão que ele dá sobre isto pode nos embaraçar, mas também pode
nos libertar de certos embaraços.
Ele não é um Deus, nem suas
idéias são sagradas, mas é preciso ler o que ele pensa com excessiva atenção e
prudência.
Sugiro que pense em que
substância ou qual é o lugar depositário da sua memória? Esta me parece ser uma
pergunta guia para a questão posta por ele sobre a relação mente e corpo, ou
corpo e alma ou espírito e matéria, nos termos que você quiser colocar ou preferir
colocar por etimologia e história do conceito, com argumentos e análises
conceituais ou por simples opção semântica.
Parece-me que Freud considerava o
nosso corpo físico como depositário de nossas memórias, mas só me parece. Isso
significaria que haveria alguma forma de registrar em nosso corpo nossas
memórias sentimentais e emocionais e que nem todas elas seriam registrada em
forma de uma linguagem decodificável.
Eu mesmo quero pensar mais sobre
isto.
Considero, pensando melhor agora,
muito mais ousada a perspectiva de Freud que envolve admitir que o corpo e a
carne são depositárias da memória.
É muito fácil, confortável e
consolador seguir a abordagem tradicional que simplesmente desvincula o corpo
da alma.
A ousadia de Jung talvez tenha
sido tentar recolocar a doutrina de Freud de novo submetida ao dualismo
cartesiano com este belo otimismo sobre o destino das nossas almas, memórias e
lembranças de nossa identidade.
Mas veja só então: e quem sofre
de Alzheimer amigo? - perde a alma ou perde a conexão com a sua memória?
A ligação entre o passado e o
futuro, representada pela nossa memória, pelo nosso feixe de experiências
organizadas sob um fio de Ariadne comum, que não sobrevive a morte!
Esta é a questão! é por isto que
andei usando aqui também a expressão desaparecimento para falar da morte física
e espiritual de todos nós. Aos poucos vão se extinguindo nossas conexões, aos
poucos esta grande trama de aço vai se transformando em barbantes esfarrapados.
Se vivermos até aos 100 anos veremos.
Uma entrevista com Niemeyer é
ilustrativa também. E tenho ao meu lado diversos exemplos de pessoas cujas
memórias nítidas sobre o passado mais remoto ou sobre experiências sentimentais
se desvaneceram.
A coisa que eu mais respeito em
Freud é que ele não tenta colocar esperança onde não é necessário.
Muletas que não servem são
jogadas fora. E tem um ponto na vida em que você pode decidir exatamente isto:
se vai continuar esposando doutrinas confortáveis ou aceitar os indícios que a
realidade e a reflexão sobre a vida te apontam.
Nós não precisamos de uma outra
vida para que nela o valor desta vida ou os danos desta vida sejam reafirmados.
A conta acaba já no primeiro
desaparecimento.
E você pagar ela ou não, é
indiferente para a natureza.
Me parece assim que diversas doutrinas
procuram insistentemente impor supremacia cultural e humana sobre a natureza.
Não digo com isto que você é
obrigado a abandonar toda a tua perspectiva respeitável de reencarnação, roda
de sansara, vida após a morte e etc, mas digo simplesmente: isto é uma
doutrina! tens o direito de seguí-la, defendê-la. E é muito respeitável que o
faça!
Mas porque fazes isto?
Freud perguntaria: é por causa da
verdade que você precisa fazer isto?
Ou é porque você prefere e deseja
que assim seja?
Bem amigo, há um abismo aqui
entre o que podemos saber e que preferiríamos que fosse o caso.
Inclusive a possibilidade, muito
interessante, de podermos ter uma outra vida mais feliz que esta que temos
agora.
Parecemos jogadores perdedores
que continuam confinado numa rodada melhor, na possibilidade que na outra mão
venham ao acaso e pela sorte cartas melhores para nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário