BIRTH’S OF WITTGENSTEIN
No ano passado apresentei para os poucos, mas valiosos leitores deste mural, uma pequena exposição de motivos sobre os meus pontos de interesse no pensamento de René Descartes. Naquela ocasião procurei destacar aquilo que eu julgava serem os pontos de ruptura do pensamento de Descartes em relação às tradições filosóficas que o antecediam e ao seu tempo. Havia dito, também, que essa forma de report pessoal seria capaz de justificar em parte, e somente em parte, o abandono do projeto de dissertar sobre um tema de Descartes no meu mestrado. Tratava-se, afinal, de uma comemoração em forma de ensaio aos 400 de Descartes, desse notável filósofo. Agora, adotando o mesmo ofício, quero aproveitar mais um aniversário para pensar um autor filosófico e a sua posição na tradição.
Nesta ocasião, pretendo apresentar também, em comemoração ao 108.o. aniversário de nascimento de Ludwig Wittgenstein, em 26 de abril de 1889, um bloco de reflexões sobre os pontos de ruptura de Wittgenstein em relação à tradição filosófica anterior e, inclusive, em relação à Descartes. Esses pontos de ruptura são, de uma forma remota e de uma forma próxima, a manifestação do seu confronto com a tradição que o antecede. Mas, apresentam também, esses pontos de ruptura, diferenças relativamente aos dois momentos do itinerário filosófico de Wittgenstein. Pretendo mostrar, entretanto, que naquilo que toca ao meu ponto e a cada um desses dois momentos a relação que se pode estabelecer entre eles não implica em uma contradição interna ao pensamento de Wittgenstein, mas sim no depuramento e na precisão da sua tese. Veremos, então, também que lugar encontramos como conveniente para uma certa figura do pensamento filosófico de Wittgenstein que o aproxima, distinguindo, de outras figuras filosóficas.
Assim, com este panfleto, pretendo dar também publicidade ao pensamento de Wittgenstein através da apresentação de uma certa interpretação dele. Na parte que mais me toca, trata-se de mostrar pelo menos uma boa razão para dissertar sobre um tema dele, o que é o mesmo que fazer somente mais uma consideração, entre tantas, sobre a atualidade do pensamento de Wittgenstein. Que os seletos e poucos leitores deste mural tenham, assim, o contraponto radical ao artigo anterior é, então, o meu único desejo.
Para realizar este empreendimento tomo uma metáfora de Wittgenstein sobre o seu objetivo na filosofia como ponto de partida interpretativo para, então, encontrar nela uma certa figura do prisioneiro. Tal figura, a de um homem aprisionado dentro de certos limites, vai nos permitir comparar as diferentes soluções a um mesmo problema filosófico, distinguindo-se nestas soluções o que vem a tecer de um modo constitutivo cada um dos limites de certos exemplos de análise. Assim, em seguida, escolho alguns exemplos dentro da tradição filosófica e literária antecedente a Wittgenstein em que de um certo modo a figura do homem aprisionado se repete para, então, tentar mostrar a posição respectiva do próprio Wittgenstein sobre isso. Os exemplos são quatro. O primeiro exemplo de apresentação de uma figura do prisioneiro é Hamlet de Shakespeare. Esse exemplo de base é literário e a motivação para apresentá-lo é a esperança de conseguir tornar mais claros e transparentes os diversos tipos de compassos e afazeres envolvidos em cada uma das três figuras e em Wittgenstein. Os três seguintes exemplos, sendo filosóficos, são encontrados em Descartes, Kant e Frege. O trabalho final será então mostrar que estes exemplos são bastante representativos no que diz respeito à interpretação da metáfora de Wittgenstein, à introdução do seu respectivo problema filosófico e à solução que ele acaba por apresentar desse problema. Para adiantar um pouco o meu ponto quero dizer que este trabalho trata, no fundo, de uma certa panorâmica mais alargada daquilo que Foucault, em sua obra História da Loucura, veio a chamar de o confinamento .
1. Wittgenstein: O Prisioneiro da Campânula
A primeira coisa a dizer sobre o aniversariante não deve ser entendida, porém, como uma mensagem meramente autobiográfica. Trata-se de uma expressão daquilo que Wittgenstein julgou um dia ser o seu objetivo com a filosofia. O uso de uma metáfora por Wittgenstein nessa expressão não deveria ser menosprezado, mas vamos mostrar que ele apresenta uma figura através dessa metáfora que nos permitirá figurar numa espécie de retrospecto a sua relação com a tradição. O objetivo de Wittgenstein com a filosofia é na sua metáfora “conseguir tirar a mosca da campânula...”. Mais tarde, Wittgenstein ao considerar brevemente a filosofia de Heidegger afirma o seguinte “entendo o que Heidegger faz em Ser e Tempo como mais um sinal das arremetidas do homem contra os limites da linguagem”. Nesta curta passagem recolhida por Friedrich Waissmann em Wittgenstein e o Círculo de Viena , Wittgenstein expressa nos diálogos com os membros do Círculo de Viena que, apesar de Heidegger fazer metafísica, o que ele faz é típico de uma tendência natural do homem em arremeter-se contra os limites da sua linguagem.
Um adiantamento no alcance desta interpretação indica que essa metáfora abrange também aquilo que ele procurou como objetivo em outras investigações. Ou seja, Wittgenstein procurou em todas as suas investigações filosóficas, lógicas, matemáticas, psicológicas e culturais “tirar a mosca da campânula”, isto é, operar um certo efeito sobre o modo como nós pensamos relativamente aos nossos limites. Esse efeito pode, portanto, ensejar uma mudança no modo como nós filosoficamente compreendemos o pensamento, a linguagem, o mundo e os seus limites comuns segundo o Tractatus.
Assim, apesar do caráter metafórico dessa expressão e do aparente mistério que ela apresenta para ser decifrado, o seu sentido e a sua ambiguidade podem ser, com alguma parcimônia, compreendidos e, assim, serem facilmente analisados através da introdução de alguns elementos de tradução dessa metáfora e com a conexão dos elementos dessa metáfora com a tradição.
Iniciando pelos elementos de tradução podemos compreender como essa metáfora é indicativa de uma certa figura muito próxima de nós. A mosca - ou o moscão se você preferir - que Wittgenstein procura libertar da campânula cerrada é, numa certa acepção, o próprio homem. Porém, ainda que um homem seja um homem ele em uma certa circunstância se faz prisioneiro. É o homem, numa certa tradução dessa metáfora de Wittgenstein, que ao filosofar procura prescrever certos limites para o seu pensamento, entendimento e conhecimento aquele que se encontra em uma campânula. Isso ocorre de um modo tal que o homem acaba por não compreender corretamente esses limites e, por isso mesmo, a partir dessa incompreensão ele acaba por jogar-se contra os limites de algo que ele não compreendeu corretamente. Nesse sentido, a metáfora de Wittgenstein, a respeito do seu objetivo em filosofia, indica em um só gesto o tipo de limitação ou aprisionamento constitutivo do filosofar. Daí a razão de tematizar isso também sob o título de Confinamento. Esse gesto pode ser, então, tomado como uma provocação que poderia ser melhor traduzida.
Uma tradução inglesa para isso pode ser apresentada com o seguinte apelo ou invitação: “Open your mind”, isto é, abra a sua cabeça ou mente, liberte-se do seu velho modo de pensar. É isso que Wittgenstein vai indicar como a saída da campânula. Este não é, entretanto, um gesto que é bem assimilado. E, assim, é preciso complementar a tradução dessa mensagem caracterizando melhor o que vem a ser essa “mente” ou “prisão” da qual deveríamos nos libertar para começar a pensar de um modo livre e diferente. A campânula é mais uma dessas figuras que pode indicar a prisão e a cadeia em que os homens e filosófos encontram-se enredados. Mas esse enredo é, entretanto, todo tecido pelo próprio homem. Esse enredo é todo tramado na história do homem e pelo próprio homem. Tudo se passa, então, como se os limites que o homem compreende são os limites que lhe cabem. O homem, então, se autoconfina voluntariamente ao compreender como limites aqueles espaços para cuja extensão ele toma por base a extensão de certas atividades como o pensar, o entender, o fazer e o conhecer. É uma certa compreensão do alcance dessas atividades que se destaca e que vai delimitar o espaço de atuação e liberdade do homem aos olhos do filósofo. Assim, trata-se de um autoconfinamento determinado por uma certa compreensão de limites segundo uma certa regra de determinação desses limites. Desse modo, a prisão e o curso de aprisionamento da mosca na campânula pode servir de metáfora para a constituição dos limites da prisão e estes limites serão compreendidos como sempre gerados pelo próprio homem, sendo a expressão, portanto, bem acabada da sua própria forma de auto-compreensão.
Entretanto, deverá ficar claro em que medida a compreensão desses limites pelo filósofo e a causa disso não é exatamente proveniente da mesma causa e da mesma forma de compreensão que o homem comum, civil e pedestre tem das coisas e dos seus limites. Trata-se, no que diz respeito aos aniversariantes, Descartes e Wittgenstein, da compreensão que a filosofia e os filósofos, ao longo da sua curta história, tem procurado apresentar dos limites que o entendimento alcança para o seu exercício seguro e racional e, essa, é claro, é a perspectiva da tradição. Essa perspectiva é, de certo modo, razoavelmente descolada da noção de limites do homem comum e por isso mesmo talvez sirva de boa ilustração para essa metáfora uma figura literária que, de certo modo, é mais próxima do homem comum.
A campânula, portanto, não foi constituída por um gesto do homem comum dirigida aos limites da sua compreensão comum, mas sim é a figura dos limites da compreensão filosófica do Homem e da sua possibilidade de atingir os limites e a extensão do conhecimento. A campânula, tal como uma prisão, é construída pelo próprio prisioneiro através de uma atitude insensata na tentativa de compreender a real e efetiva extensão do seu domínio. Assim, é por efeito de uma má compreensão dos seus limites que os filósofos tem se confinado, tal como uma mosca em uma campânula, numa falsa prisão. The False Prison, aliás, é o título que David Pears dá a sua última obra sobre Wittgenstein .
Entretanto, eu gostaria de começar a entender esse fenômeno do confinamento e do aprisionamento do filósofo não a partir da introdução de algum filósofo prisioneiro, como se esse sentimento de confinamento só fosse acessível aos filósofos em suas patologias, mas sim a partir de um sentimento de confinamento bem chão que uma personagem de Shakespeare parece permitir caracterizar. E, assim, mais uma vez, se mostra que entre o homem comum e o filósofo a diferença de sentimentos depende muito mais do modo como nós vemos as coisas do que de uma diferença de ser ou de essência inscrita, sabe-se lá como, no interior de alguns indivíduos que adotam voluntariamente a perspectiva filosófica. Desse modo, o sentimento filosófico do confinamento é aqui encarado como tendo toda a sua possibilidade dada pelo sentimento do homem comum de um confinamento comum, ainda que em larga medida ambos confinamentos vão se mostrar como sintomas de uma certa perturbação da nossa vida cotidiana.
Assim ficaria um Projeto de Trabalho para Responder a este Desafio
1. Cervantes: Dom Quixote e os sonho real.
2. Shakespeare: A Ruptura de Hamlet e o Mundo
3. Descartes: A Ruptura com a Ontologia e o surgimento do Sujeito
A Dúvida e o Cogito
4. Kant: A Ruptura da Subjetividade
O Sujeito Transcendental e os Limites do Conhecimento
5. Frege: A Ruptura com o Mentalismo
A Lógica, o Pensamento e o Anti-Psicologismo
6. Wittgenstein 1: A Primeira Ruptura
O Eu e os Limites da Linguagem no Tractatus
7. Wittgenstein 2: A Segunda Ruptura
O Argumento da Linguagem Privada e os Limites da Linguagem
CONCLUSÃO
PS.: evidentemente este trabalho não foi realizado ainda - e provavelmente nem será - mas valeu a pena fazer este desenho. Escrito entre 26/04/1997 e 01/05/1997. Sobre Foucalt trata-se como alguns podem facilmente verificar do título dado ao famoso capítulo de Histoire de la Folie dedicado ou dirigido, de certo modo, à Descartes e ao papel que ele dá à loucura em sua primeira meditação. O título lá é O Grande Confinamento. Ver tb. PEARS, David. The False Prison. 1987. As idéias aqui apresentadas não seriam nada para mim sem a provocação do Prof. Paulo Faria.
Excelente!!!
ResponderExcluirfluida lucidez....
e parabéns ao seu professor e à voce que ousou ouvir e abrir-se a inspiração...
abraços intelestelares canoa
Benter