A REFUTAÇÃO DE ARISTÓTELES EM GAMMA 4
INTRODUÇÃO
No início do capítulo 4, do livro Gamma da Metafísica , Aristóteles apresenta em três parágrafos (1005 b 35 - 1006 a 29) o que vamos designar aqui como sendo a sua primeira versão de refutação e que é o objeto de interpretação deste trabalho.
Esta refutação, segundo Aristóteles parece permitir interpretar, é e pode ser erguida satisfatoriamente contra um certo opositor do Princípio de Não Contradição , desde que sejam respeitadas certas condições. Algumas das características da refutação tem sido sublinhadas já por outros comentadores.
A nossa interpretação aqui tem por objetivo básico uma certa forma de explicitação da classificação das contribuições dessas condições para a força lógica do argumento e de algumas características que essa refutação deve apresentar necessariamente para ser bem sucedida. O interesse nisto é inspirado numa hipótese já clássica em filosofia que leva em conta o cruzamento em certos argumentos filosóficos de condições lógicas e ontológicas em uma certa relação de reciprocidade.
Vamos procurar, com isso, entender melhor o que deveria ser objeto de interpretação e discussão na refutação de Aristóteles.
DAS CONDIÇÕES PROBLEMÁTICAS
Estas condições, parecendo coincidir neste aspecto às condições classificadas nas diversas versões de PNC que Aristóteles apresenta , podem ser caracterizadas e classificadas como envolvendo respostas para algumas questões e limitações psicológicas, lógicas, dialécticas, ontológicas e também da linguagem. Vamos tomar estas primeiras versões relativas às condições de reconhecimento do argumento como pedra de toque e parâmetro da nossa investigação.
A - ENFRENTANDO OS CÉTICOS
Parece interessante também que, nesse quadro de Gamma 4, o opositor do princípio possa ser caracterizado tanto como um heracliteano quanto como um cético. Talvez esta seja, por isso, uma das passagens aristotélicas mais polêmicas porque muito tem sido muito debatida e examinada a necessidade de argumentar para que um cético reconheça este princípio e que um heracliteano retire de uma tese temporal a possibilidade de redundar numa consequência ontológica, o que pode significar, também, para o nosso caso, que uma tentativa de interpretá-la de novo seja somente o resultado e o signo de uma audácia.
Alguns intérpretes e comentadores de lavra e extração diversa repudiam parcial ou globalmente esta refutação por considerarem as condições que ela apresenta como levando o argumento para o gênero do que é vicioso. Esses intérpretes baseiam-se, de certo modo, numa tentativa de determinar, justamente, com a investigação dos traços dialécticos e psicológicos que o argumento apresenta, o que deve ocorrer para o sucesso do argumento, logo, baseiam a sua atribuição de vício do argumento nas condições dialógicas e psicológicas de reconhecimento, isto é, numa certa interpretação do peso que essas condições acrescentam à refutação. Essas condições são aquelas que julgamos como sendo exageradamente destacadas como marcantes nesta refutação. Para demonstrar isso precisamos mostrar que elas são dispensáveis no curso de reconhecimento do princípio, não contribuindo em nada com o peso lógico ou força lógica de uma certa versão do princípio.
Ela serve, assim, através desses traços dialéticos e/ou psicológicos, de inspiração tanto para uma rejeição da força lógica do argumento, quanto para a afirmação de uma relação de dependência dialéctica entre dois sujeitos, sob a forma de um diálogo na apresentação do argumento. Tudo se passa como se a força lógica do argumento fosse abalada, sob o primeiro enfoque, pelo modo de reconhecimento do argumento estar confinado ao domínio do privado, isto é, do psicológico, e, sob o segundo enfoque, como se a força lógica estivesse abalada pela circunstância dele ser apresentado em um diálogo, isto é, da dialéctica envolvida no processo de persuasão do opositor. Mas, não parece provável, entretanto, que essas condições “psicológicas” e “dialéticas” são as únicas condições de sucesso do argumento. E, desse modo, interessa saber se a força lógica do argumento repousa em uma condição necessária de natureza estritamente lógica ou não. E é isso que vamos procurar determinar aqui.
Porém, essa tentativa de interpretação lógica que aqui será apresentada é bastante colegial e simples ao procurar restringir-se ao limites do texto e à escolha dentre os possíveis sentidos do texto daquele qual que permite o seu reconhecimento. Pois quem limita-se a tentar interpretar restritamente o argumento por refutação sem fazer uso de todos os recursos que o Corpus Aristotelicum apresenta e, também, se nisso for concedida a licença, sem fazer uso de todos os intérpretes de Aristóteles, lança-se ao risco de simplesmente tentar aprender algo com ele através da leitura do seu argumento. Nesse sentido, este trabalho acata a indicação pedagógica do autor, mas se ocupa também com a força lógica envolvida no curso do argumento.
Nisso, as pretensões pedagógicas que este trabalho tem não são muitas e concentram-se somente em mostrar que essa refutação é acompanhada por uma explicação pormenorizada das suas condições essenciais de sucesso, que nos permite partir para o exame dessas condições e sugerir com isso uma certa interpretação - não tão original quanto outras já apresentadas por eminentes filósofos e comentadores - sobre a natureza e o resultado de uma certa compreensão de todas essas condições de sucesso do argumento por refutação de Gamma 4.
O nosso objetivo aqui é, assim, procurar salientar algumas dessas condições essenciais de sucesso da refutação de Gamma 4 e, talvez, mostrar que elas permitem uma certa forma de interpretação não psicológica que permite, também, mostrar que nada do que é nessa refutação eminentemente caracterizado como dialéctico contribui ou altera a força lógica do argumento, isto é, o reconhecimento lógico que Aristóteles busca da utilidade do princípio.
APRESENTAÇÃO DO ARGUMENTO
Para prosseguir a partir desta caracterização preliminar do nosso objetivo interpretativo que é determinar o que ocorre com a dialéctica e a psicologia nesta forma de refutação no livro Gamma, capítulo 4, e avançar sobre esta explicação pormenorizada e, com isso, dar uma caracterização adequada aos outros pontos do argumento de Aristóteles que envolvem as condições essenciais de sucesso da refutação, vejamos agora os seus três parágrafos em seu texto:
“Porém há alguns que, segundo dizemos, pretendem , por uma parte, que uma mesma coisa é e não é, e que, por outra parte, o concebem assim. E usam esta linguagem muitos inclusive dos que tratam acerca da Natureza. Porém nós acabamos de ver que é impossível ser e não ser simultaneamente, e deste modo temos mostrado que este é o mais firme de todos os princípios. Exigem, certamente, alguns, por ignorância, que também isto se demonstre; é ignorância, em efeito, não conhecer de que coisas se deve buscar demonstração e de que coisas não. Pois é impossível que exista demonstração absolutamente de todas as coisas ( já que se procederia ao infinito, de modo que tão pouco assim haveria demonstração); e, se de algumas coisas não se deve buscar demonstração, acaso podem dizer para nós que princípio necessita menos demonstração que este?
Porém se pode demonstrar por refutação também a impossibilidade disso ( da impossibilidade de que o mesmo algo é e não é simultaneamente ), contando somente com que diga algo o adversário; e, se não diz nada, é ridículo tratar de discutir com quem não pode dizer nada, enquanto que não possa dizê-lo; pois esse tal, enquanto tal, é por ele mesmo semelhante a uma planta. Porém digo que demonstrar refutativamente não é o mesmo que demonstrar, pois pareceria reinvindicar, aquele que quer demonstrar, que se aceite o que está contido no princípio em questão; porém sendo outro o causante de tal coisa, haveria refutação e não demonstração.
E o ponto de partida para todos os argumentos dessa classe não é exigir que o adversário reconheça que algo é e não é ( pois isto sem dúvida podería ser considerado como uma petição de princípio), senão que signifique algo para ele mesmo e para outro; isto, com efeito, ele necessariamente tem de reconhecê-lo se realmente quer dizer algo; pois, se não, este tal não poderia raciocinar nem consigo mesmo nem com outro. Porém, se concede isto, será possível uma demonstração, pois já há algo definido. Porém o culpável ( pela petitio principii ), não será o que demonstra, senão aquele que se submete à demonstração; pois, ao destruir o raciocínio, se submete ao raciocínio. Além disso, aquele que concede isso já tem concedido que há algo verdadeiro sem demonstração [ por conseguinte não se pode afirmar que tudo seja assim e não assim ].”
Metafísica, , 4, 1005 b 35 - 1006 a 29.
A - A INTRODUÇÃO DA PRETENSÃO
Aristóteles também permite caracterizar que essa defesa do princípio é causada pela pretensão (dicunt) de um adversário que, por ignorância ou falta de educação ( eupaideis), rejeita a legitimidade do princípio sob um certa descrição. Avançar sobre uma caracterização do papel dessa “pretensão” na caracterização da qualificação que Aristóteles dá do tipo de rejeição que esse princípio obtem do seu rival, parece permitir indicar que se é uma mera “pretensão”, então, o rival somente declara a recusa do princípio sem ser capaz de manifestá-la com sentido, seja através de ações seja através de palavras.
A refutação dessa pretensão, segundo o Filósofo, é uma forma de demonstração muito particular e distinta da demonstração lato sensu, pois exige que o opositor faça algo ou signifique algo pelo menos para si mesmo ou para outro. Logo, o sentido dialético de refutação aí é específico e deve ser melhor compreendido, pois introduz também um sentido não dialético através do aspecto “para si mesmo” que tem a característica de permitir, para fins de interpretação, a sua tradução para um contexto em que o reconhecimento do princípio pode ser feito “sozinho”. Como já dissemos de início, na abertura, essa direção interpretativa abre o flanco para uma ataque do seu rigor por uma acusação de psicologismo.
B - O CARÁTER PEDAGÓGICO DA PASSAGEM
A forma de compreender inicialmente o argumento de Aristóteles no contexto da Metafísica indica também que ele introduz esse argumento na obra para, no curso de uma lição sobre o primeiro princípio - que como ele anota é indemonstrável -, mostrar como ele pode ser defendido contra certos rivais que se apresentam contra ele.
Como Aristóteles parece julgar crucial que esse princípio deva valer para toda aplicação e em qualquer forma de sua apresentação, isto é, sem restrições, e o opositor resiste a aceitar pelo menos uma das suas formas de apresentação, Aristóteles dá início, nesse capítulo, à uma apresentação pedagógica dos diversos modos através dos quais é possível fazer ou sugerir ao opositor a aceitar por si mesmo e aprender a compreender a necessidade do uso deste princípio em seus diferentes contextos e a reconhecer cada uma das formas do princípio.
Isso indica que o curso de defesa do princípio é um curso concebido como um tratamento sistemático e pedagógico, por isso indireto, de um certo opositor que pretende negar o princípio e, de certo modo, parece que o texto permite compreender que Aristóteles não está aí a se dirigir para o seu opositor mas sim para quem já admitiu o princípio ( um ou mais discípulos) e que está ocupado em aprender a sua extensão máxima de aplicação dentro de um curso.
C - A REJEIÇÃO DO OPOSITOR
Trata-se, portanto, de uma resposta que venha a defender o primeiro princípio contra um certo tipo de argumento ou tese geral. Essa resposta tem um caráter especial na obra, pois corresponde à um ponto fundamental da Metafísica de Aristóteles, a saber, a fundamentação e a sustentação do primeiro princípio perante o seu opositor mais forte.
Assim, parece que Aristóteles procura e também permite advertir que no decorrer do seu texto que algumas condições dialéticas e não psicológicas e algumas condições conceituais devem ser cumpridas nessa forma de demonstração para que ela seja bem sucedida. Nestes três primeiros parágrafos do capítulo 4 do livro Gamma da Metafísica, onde Aristóteles nos apresenta a sua primeira refutação temos também uma versão do exame no conceito. Isto é, Aristóteles também permite interpretar nesse texto a noção de exame da consistência no conceito que nós introduziremos nessa interpretação. Importa ver como isso é possível, justamente, num texto que parece depender de um certa forma de argumento até, então, nesta interpretação restrita à uma interpretação dialética.
D - O ABANDONO DA DIALÉCTICA PELO TEXTO
Uma discussão corrente sobre o argumento que está amparada numa interpretação restritamente dialética aponta também para uma petição de princípio ou um círculo vicioso no argumento. Interessa, de imediato, mostrar que isso só pode ser alegado se desconhecemos algumas das condições conceituais de sucesso dessa refutação.
Uma condição conceitual explícita que impede a petição de princípio por parte de quem o defende é de que o personagem opositor ao princípio nesse diálogo é que deve raciocinar por si mesmo contra o princípio. Assim, aquele que rejeita o princípio, isto é, aquele que recusa a validade do princípio é aquele que deveria poder raciocinar sem o princípio para poder rejeitá-lo, do contrário, se ele raciocina com o princípio, então ao tentar rejeitá-lo faz consigo mesmo uma petição de princípio, e nada mais pode sequer pensar. Nesse sentido, tanto defender o princípio no sentido de procurar demonstrar o princípio como, também, rejeitá-lo envolve, com certeza uma petitio principii. O próprio Aristóteles faz questão de salientar esse perigo nesse texto e indica o meio para evitá-lo. É fácil ver que é justamente sobre isso que repousa a condição de que quem deve fazer o raciocínio e com isso aprender é justamente uma vítima de uma auto-refutação, no sentido de que a partir desse exame descobre por si mesmo o seu erro. Pois, tudo de que ele precisava para reconhecer o argumento de defesa do princípio era dizer ou fazer algo, ou conceber algo, para si e (ou) para outro . Esse outro pode ou não ser dispensado no curso do argumento? Em caso negativo, então é essencial à defesa do princípio que ele transcorra dialeticamente, isto é, que mesmo que cabe ao opositor “fazer algo”, cabe ao refutador solicitar-lhe que faça isso. Mas em caso positivo, o princípio é lógico e obtém um certo tipo de reconhecimento na sua aplicação em que simplesmente cabe ao opositor fazer algo para si mesmo, sem solicitação de outrém . E isso será então um traço conceitual do princípio, a saber, que o seu reconhecimento é dado no seu uso ou aplicação do mesmo modo para si como para outrém.
Vamos tentar compreender as passagens e os termos assinalados acima para tentar agora discriminar melhor essa lição. Nisso, podemos dar uma atenção especial para uma certa forma de compreender o argumento de Aristóteles. A partir de um exame de algumas sugestões que Aristóteles oferece em outras obras sobre os termos em que ele apresenta a questão, vamos verificar se isso pode nos ajudar a introduzir um traço essencial à esse tipo de argumento.
II - A NATUREZA DAS PREMISSAS
A - PREMISSAS DIALÉTICAS
Na Analítica Priora Aristóteles nos dá uma caracterização específica e diferenciada das premissas envolvidas numa argumentação dialética e numa argumentação demonstrativa. Segundo Aristóteles:
“A premissa demonstrativa difere da premissa dialética em que, na premissa demonstrativa, se toma uma das duas partes da contradição, porque demonstrar não é perguntar, é propor; na premissa dialética interroga-se o opositor para se escolher entre as duas partes da contradição. Todavia, esta diferença não afeta a produção do silogismo, nem num caso, nem no outro, porque seja para demonstrar, seja a interrogar, o silogismo constrói-se, propondo que um predicado se predica, ou não se predica de um sujeito. Resulta assim, que uma premissa silogística em geral consiste ou na afirmação ou na negação de algum predicado acerca de algum sujeito, tal como acabamos de expor. É demonstrativa, se for verdadeira e obtida através dos axiomas fundamentais, enquanto que, na premissa dialética, o que interroga pede ao opositor para escolher uma das duas partes de uma contradição, mas, desde que silogize, propõe uma asserção acerca do aparente e do verossímil, tal como já indicamos nos Tópicos.” ( i.e. - 1, 1, 100 a 25-30.) Analítica Priora. I, 1, 24 a - 24 b.
Assim, segundo o primeiro ponto de exame do texto, podemos diferenciar as premissas demonstrativas e as premissas dialéticas através de um critério de diferenciação entre o que é “perguntar” e o que é “propor” que de certo modo qualifica diferentes contextos de argumentação, mas isso não é suficiente para distinguir as premissas, o que não é tão simples quanto parece.
Na premissa demonstrativa deve-se “tomar uma das partes da contradição”, já na premissa dialética “interroga-se o opositor para se escolher entre as duas partes da contradição”, mas segundo Aristóteles “isso não afeta a produção do silogismo”, pois que “seja para demonstrar seja para interrogar” o “silogismo”, afinal de contas, “contrói-se, propondo que um predicado se predica, ou não se predica de um sujeito”. E Aristóteles esclarece, então, na passagem em seguida, o que é uma premissa para ambos os casos de premissas, a saber, que “uma premissa silogística em geral consiste ou na afirmação ou na negação de um predicado acerca de um sujeito”. No final da passagem que citamos Aristóteles acrescenta à sua argumentação uma outra distinção que permite compreender definitivamente onde encontra-se a diferença entre as premissas dialéticas e as premissas demonstrativas que ele vem examinando.
Segundo Aristóteles é demonstrativa a premissa que “se for verdadeira” é “obtida através dos axiomas fundamentais” e é dialética a premissa em que “o que interroga pede ao opositor para escolher uma das duas partes de uma contradição” sob a condição de que este opositor “desde que silogize propõe uma asserção acerca do aparente e do verossímil.”
Assim, a distinção entre premissas demonstrativas e premissas dialéticas não repousa fundamentalmente na diferença entre perguntar ou propor algo de alguma coisa, nem na natureza de um silogismo, mas sim repousa sobre a diferença de natureza de objetos entre premissas que são “verdadeiras” ou derivadas de “axiomas fundamentais” e premissas que são relativas ao “aparente” e o “verossímil” e, por isso mesmo, encontram-se adstritas ao domínio da mera opinião (doxa), utilizando nesse contexto uma terminologia consagrada na Filosofia Grega Clássica.
Portanto, temos agora que esclarecer um pouco mais sobre o que versa esse “aparente ou verossímil” e sobre o que versa o “verdadeiro” ou derivado de “axiomas fundamentais”. Para isso vamos seguir a sugestão de Aristóteles de que tal foi tratado em Tópicos para prosseguir a nossa análise inicial.
B - O APARENTE E OS AXIOMAS FUNDAMENTAIS
Passamos a examinar diretamente, agora, a passagem de Tópicos em que Aristóteles nos esclarece o tipo de premissa e argumento envolvido numa demonstração ou num exercício dialético do raciocínio. Interessa neste exame somente erguer e esclarecer a diferença entre as premissas baseadas em axiomas e as premissas baseadas no aparente, pois é só isso que precisamos para determinar a natureza exata das premissas na refutação. Vejamos isso, portanto, nessa passagem dos Tópicos.
“Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, por outro lado, (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões geralmente aceitas.”
São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos bem virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo.
São, por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos - em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais eminentes.”
Tópicos. 1, 1, 100 a25-b20
C -PREMISSAS PLATÔNICAS
Na Metafísica o livro Kapha é, segundo JAEGER. 1995: 240, um texto apócrifo feito pelas mãos inconscientes de um discípulo. Segundo o modo como ROSS sumariza este livro no prefácio à sua edição (p.X) traduzida da Metafísica os livros 4 e 5 de Kapha apresentam em uma Shorter Form of 3 and 4. ROSS confirma a rejeição desse texto em sua obra Aristóteles.
Donde se explica a possibilidade de se erguer uma hipótese pelo que, justamente, Aristóteles apresentaria - seja pelas mãos de um díscipulo seja por si mesmo, então, nesse livro, uma contra-face com alguns traços de orientação Platônica para esse capítulo 4 de .
Poder-se-á verificar se essa contra-face é neo-platônica através do exame de algumas teses subjacentes ou relativas aos tópicos platônicos. Verificar-se-á, então, se um viés eminentemente ontológico de caráter platônico ou aristotélico aí se apresenta nas filigramas desse texto, mas, principalmente, poderemos verificar com isso se a interpretação que sugerimos leva ou não à admissão de teses contrárias às de Aristóteles.
Vale anotar, também, que JAEGER reinvindica o uso de uma passagem do mesmo livro para os seus fins. Do mesmo modo reinvindicamos a mesma passagem para demarcar um limite para a nossa interpretação da passagem de , 4 através dos “avanços” que o discípulo ou Aristóteles apresentou no início de K, 5, vamos tentar limitar a interpretação da versão ontológica em , 4. Vejamos o texto:
“Há entre os seres certo princípio acerca do qual não é possível enganar-se, senão que necessariamente se fará sempre o contrário, é dizer, descobrir a verdade; a saber: que não cabe que a mesma coisa seja e não seja simultaneamente, e as demais informações que encerram em si mesmas uma posição semelhante. E acerca de tais princípios não há demonstração absoluta, porém não há contra este; pois não é possível sacar isto mesmo como conclusão de um princípio mais fidedigno, o qual seria preciso para uma demonstração absoluta. Frente ao que sustenta afirmações, quem trata de mostrar que a sua postura é falsa deve tomar como base alguma afirmação que seja o mesmo que o princípio segundo o qual não é possível que a mesma coisa seja e não seja simultaneamente, porém que não pareça ser o mesmo; pois só assim pode fazer-se a demonstração contra o que afirma que é possível que as afirmações contraditórias sejam verdadeiras a propósito de uma mesma coisa.
Assim, pois, os que vão participar em uma discussão recíproca devem entender-se em certa medida; pois, se não se dá esta condição, como vai haver entre eles comunidade de raciocínio?” Metafísica. K, 5, 1061 b 34 - 1062 a 14.
FIM
NOTAS:
Usamos como texto base para a tradução da refutação do livro Gamma, capítulo 4, a tradução para o espanhol de GARCIA YEBRA. Mas para melhorar a versão portuguesa a seguir fazemos uso de um cotejo entre as variantes para alguns termos entre as traduções de MOERBEKE, ROSS, TRICOT, COLLE, AZCARATE, VALLANDRO, KIRWAN, YEBRA.
Pode-se optar entre um opositor forte ou médio. O cético e o heracliteano. Como o heracliteano acaba por reconhecer que a mudança é de aspecto, resta somente o cético.
Segundo classifica ROJO.
Conf. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983, para edição B. Especialmente em Do Princípio Supremo de Todos os Juízos Analíticos, B 189-B 193, no que ele interpreta a expressão de Aristóteles do PNC “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” como contendo “uma síntese introduzida nele por descuido e de modo completamente desnecessário”(B 191). O uso que Aristóteles faz dessa expressão não é, queremos destacar em primeiro lugar, nesse contexto do princípio, propriamente a introdução de uma qualidade temporal, mas sim a abstração do tempo. Ao dizer que “é impossível que algo seja e não seja simultaneamente” Aristóteles não está usando o “simultaneamente” aí para dizer “ao mesmo tempo”, mas sim “num único tempo”. Esse “num único tempo” é quase equivalente aí à uma eternidade. Se forçarmos um pouco nessa direção interpretativa, percebemos que “simultaneamente” funciona aí como um operador de exclusão do tempo e não como um operador intermediário entre “ser antecessor de” e “ser sucessor de”. Nesse sentido, o que é “simultâneo” aí é o “mesmo”. A expressão funciona, então, no princípio como modalidade de exclusão do tempo e, também, como modalidade de exclusão complementar ao “que seja e não seja” do princípio introduzindo uma espécie de identidade na fórmula do princípio de não contradição. O “simultâneo” aí indica, então, a identidade do sujeito ou do objeto sobre o qual repousa a imputação de ser ou não ser. Assim, “simultâneo” não introduz uma síntese no juízo, mas sim fortalece o caráter analítico mesmo do princípio de não contradição e, contrariando Kant, podemos dizer que o simultâneo de Aristóteles contribui nesse princípio para a sua perfeita analiticidade. Um desenvolvimento maior desse argumento encontra-se em meu texto Kant e o PNC de Aristóteles.
grifos nossos nos nossos pontos de exame.
as partes sublinhadas são acréscimos.
- Introduzimos uma disjunção nesse texto. Veja bem: fazer algo para si e “ou” para outrem, quer dizer, reconhecer consigo mesmo ou fazer outrém reconhecer algo. A expressão latina por MOERBEKE para a passagem referida é: “Sed significare quidem aliquid et ipsi et alii.” Conf. In: METAFÍSICA, Gamma, 4, 1006 a 20. ET, p.171.
- Dispensado o diálogo e o contexto refutativo dialético temos um contexto de outra natureza envolvido no reconhecimento do princípio. Em Zettel, Wittgenstein contra algumas versões de idealismo ou realismo pergunta “como é que eles educam os seus filhos?” Uma analogia aqui poderia ser feita: “Como é que o “insensato” educa seus filhos?”
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