Ao Professor Balthazar
No sábado passado dia 18 de agosto de 2007, faleceu o Professor da Filosofia da UFRGS Balthazar Barbosa Filho. Eu tenho diversas lembranças deste mestre que faço questão de registrar como agradecimento e reconhecimento de forma publica e expressa. Principalmente, porque tive o privilégio de ter freqüentado as suas aulas e de ter convivido em meio a um grupo de alunos da filosofia, das ciências humanas e da UFRGS de 1989 a 1997, na graduação e pós-graduação. A nossa turma envolvia uns 15 colegas matriculados na Filosofia e outros cursos que passou a perseguir uma formação filosófica coletiva a partir do reconhecimento de que a busca e a valorização da filosofia independe da presença desta disciplina em currículos escolares ou nas páginas de jornais. Esta turma adotou hábitos escolares razoavelmente singulares de outros colegas mais velhos ou antigos nos cursos. Eu chamaria de os Anotadores, pois fazíamos questão de anotar ipsis literis palavra por palavra, sentença por sentença, parágrafo por parágrafo das exposições dos nossos mestres. Se alguém duvida é só pedir de forma convincente e com argumentos razoáveis os cadernos e ver que devem ter uns quinze alunos com cadernos publicáveis e alguns deles com boas glosas inclusive.
Pois bem, logo no primeiro ano nós tomamos conhecimento de que havia no curso um tal de professor Balthazar que era a FERA da filosofia, não que os outros professores não eram respeitados ou bons, mas todas as falas dos colegas mais velhos recomendavam a matricula em seus cursos. Ouvíamos falar dele muito, o Professor isto, o professor aquilo e aos poucos fomos encontrando o professor e o reconhecendo nos corredores do Instituto, no café com os demais colegas e no departamento ou na biblioteca. Carregava uma pastinha e alguns livros leves na mão. Sói observar que o peso dele não era físico. Era um homem de estatura media, nem gordo nem magro, 1 metro e 67 aproximadamente, cabelos curtos e grisalhos, fronte alta, olhos vivazes claros azuis e um nariz meio adunco que sustentava um óculos de lentes grossas geralmente redondas ou arredondadas. Vinha acompanhado do maço de cigarros que pude observar uma vez eram de preferência Gauloises ou Mahlboro. Ao tragar dava aquele puxão com os lábios demonstrando uma tentativa de tirar o Maximo de sumo daquele objeto. Seguia célere e pontualmente os horários, desenvolvia passo a passo os argumentos. Metodicamente e com um rigor que assombrava aqueles que chegavam em casa com as anotações e se davam ao trabalho de revisar as tessituras dos argumentos apresentados ele fazia a sua exposição. Não foi nem uma vez nem duas vezes que eu me via frente a diamantes lapidados com um cuidado impressionante. As exposições elegantes e caprichadas sempre vinham acompanhadas de uma incógnita, uma xarada para a reflexão cerzida com o aço da lógica rigorosa e que sempre – pelo menos em mim – provocava perplexidade e uma descoberta - darei um exemplo disto depois.
Hoje eu diria que parte do seu fascínio não era nada físico e estava ligada a sua complexa e nada simples relação com a lógica e a metafísica. Eu diria também que ele era um lógico que defendia a metafísica e um metafísico que amava a lógica. E agora após a sua morte encontrei um texto dele que expressa isto muito bem Vigiando a Verdade. Ele que também combinava no seu temperamento uma Fúria Racional com uma Gentileza Pessoal surpreendentes, também tinha na minha opinião um espírito muito justo. A cada um aquilo que lhe cabia. E eu não podia reclamar não. Para um aluno médio ate que ele me dava uma grande atenção.
Eu confesso que ele era o nosso Ícone, o Maximo que qualquer um de nós queria atingir era uma sólida formação em lógica e uma ampla compreensão da filosofia de tal modo que a maioria de nós já havia abandonado qualquer pretensão a originalidade e se contentava em ser um respeitável comentador técnico de algum clássico ou no mínimo um bom professor honesto de filosofia. Pois dado o rigor dele nenhum de nós se julgava capaz de ultrapassar aquele padrão. Bem você pode imaginar a nossa curiosidade em freqüentar estas aulas.
Já no segundo semestre passamos a freqüentar as aulas deste mestre e desde então até o final do curso e os que seguiram na pós-graduação não perderam um curso dele. Estudamos com ele aproximadamente em 10 cursos. Wittgenstein, Descartes, Hobbes, Kant, Aristóteles, Filosofia Moderna, Contratualismo, Platão, Filosofia Analítica e, por fim, participamos de todas as defesas de tese em que ele estava, de todos os painéis, seminários e debates em que ele participava. Era um séqüito de alunos atrás do mestre, lembro sempre das primeiras aulas dos cursos, ele chegava pontualmente na sala de aula, não fazia chamada, dava uma visualizada nos alunos (reconhecendo os mesmos e os novos no grupo) e iniciava a exposição lendo uns caderninhos minuciosamente anotados em que ele colocava as aulas, os textos e os problemas. Eu tinha a impressão sempre de que aqueles cadernos eram livros prontos para serem publicados. E fico imaginando o que não deve haver na biblioteca dele, no espólio dele. O Prof. Balthazar raramente publicava algo de seu jaez. Penso que era excessivamente exigente consigo mesmo. Não creio que tivesse temor de ser avaliado não. Posso dizer que nenhum texto dele que eu li me frustrou e nunca vi nada dele publicado ou vulgarizado na imprensa. Por isso eu o consideraria um Obscuro, não por falta de clareza, mas por raras exposições públicas. Não dava a mínima para os debates na mídia e imagino ele até sorrindo da vulgarização de alguns intelectuais, inclusive de colegas seus. Era também um pensador chinês, pois sabia que haver[íamos de esperar mil anos apara avaliar as [ultimas palavras de qualquer sábio, primeiro para compreende-las, depois para enfrentá-las. Os que me conhecem bem devem imaginar que é um reconhecimento caro para um engagë o que eu faço aqui. Diria que nem tanto, nem tão pouco. Cada um faz o que lhe passa pela cabeça e mete o nariz no que bem entender desde que aceite as conseqüências. O Balthazar, na minha visão, não queria ser nem Platão nem Maquiavel, nem ter ilusões sobre os príncipes nem pretender orientá-los. Queria pensar e pensar com a verdade. Como lógico ou filosofo lógico que é a designação que ele merece, não o via como um encantado com os rigores mas sim com aquele que vê a obra e diz toma cuidado.
Quando me dei ao trabalho de estudar um pouco mais Aristóteles descobri que o Estagirita também tinha os seus caderninhos com anotações nas margens e nos rodapés escritas com rigor e precisão, numa letra clara e legível. Hoje se sabe que algumas destas anotações foram feitas por seus alunos. Eu lembro também das correções das redações e das provas que ele fazia cujo retorno era ansiosamente aguardado pelos alunos. Lembro de sugestões aparentemente singelas mas importantes na orientação das nossas leituras.
Eu tive a minha primeira experiência com este professor fora da sala de aula num episódio de discussão da reforma do currículo de filosofia na condição de representante dos alunos. Nunca me esqueço do meu recurso retórico na tentativa de dar sistematicidade e organicidade ao currículo do curso que era até então um colcha de retalhos em que as disciplinas eram feitas sem nenhum pré-requisito e os alunos ziguezagueavam pela grade chegando ao final sem nada organizado nem na cabeça nem no papel. Eu dizia na reunião da comissão que era melhor dar sistematicidade ao curso porque senão a outra opção era os alunos irem estudar as bulas papais, porque pelo menos nelas tem mais claramente data, propósito e historicidade. Não me esqueço do olhar espantado do Professor Balthazar e do assentimento com a cabeça, nem do sorriso expresso por ele. E eu ali dizendo para uma plêiade de professores o que era melhor para um curso de filosofia. Ou a ordem ou a teologia.
Fiquei sabendo que ele havia estudado na Universite Catholique de Louvain, feito mestrado e doutorado sobre a filosofia de Ludwig Wittgenstein e dado aulas na Universidade de Campinas cujo Centro de Lógica e Epistemologia tem reconhecimento mundial. Na UFRGS eu creio que a morte dele representa o fim de um tempo. De 1997 para cá não tenho mais acompanhado a vida acadêmica. Sei que muitos professores se aposentaram e hoje são mestres na PUC, Unisinos, ULBRA e outras. Mas eu sempre imaginava que o Balthazar estava lá. Tinha até uma esperança em voltar. A morte dele na minha modesta opinião significa o fim da tradição escolástica na UFRGS, em que havia uma recepção sistemática dos comentadores. Sei que alguns colegas que lá estão podem bem fazer o papel de organizar as coisas, mas tenho certeza que o brilho do gênio do Balthazar fará muita falta.
Como ele citou uma vez “O homem é uma invenção recente”, e se isto é verdade talvez ele nem mesmo exista ainda.
Assim me despeço do meu mestre o reconhecendo e agradecendo as lições e decisões que me orientaram.
24.08.2007 - TEXTO BASE DE DESPEDIDA - FOI CONDENSADO E PUBLICADO NO JORNAL VS
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