Ontem eu vi o filme On the Road e
gostei. Curiosamente, vi este filme de Walter Salles de 2012, dois dias depois
de ter visto, também, na mesma trip e quase na mesma vibe natalina, Into the
wild de Sean Penn de 2007 e ter gostado muito. Digamos que no natal eu fico
mais venturoso e memorial. Também porque me lembro de todos os malucos que eu
conheci nesta vida e, ao mesmo tempo, vou fechando certas contas que devo a mim
mesmo, terminando o ano e limpando gavetas e concluindo certas tarefas e idéias
que tenho ruminado o ano inteiro. E o cinema tem sido para mim um grande
bastidor de conferencias e verificações, interpretações, explicações e
compreensões; muitas descobertas, invenções e novas percepções de outros pontos
de vista me vem através do cinema, de filmes e de vídeos que assisto de forma
quase planejada
Eram duas promessas e presentes que
me fiz este ano: ver os dois filmes em cadeia e sopesar cada idéia que
aparecesse e se furtasse a partir deles. Porque tem as idéias que ficam e tem
as ideias que nos escapam e muitas vezes as que escapam são bem mais
interessantes. E escrever sobre isto é já um hábito para a mim esquadrinhando
as fujonas e tão sutis idéias que parecem que nunca tive.
Quem freqüenta meu blog e perfil sabe
que tenho verdadeira devoção por On the Road. E quem me conhece bem mais do que
pelo meu perfil sabe que já andei de mochila por este mundo. Isso não quer
dizer, porém, que olho para o livro como algo sagrado. Como um depósito sagrado
de uma única experiência. Suponho mesmo que a vida de qualquer um de nós dá um
belo livro e talvez um filme também. Sobreviver neste “grande vale de lágrimas”
que é o mundo, superar e continuar de pé, após certas experiências e vivências
– algumas das quais todos nós passaremos, requer um bom esforço psíquico de
qualquer ser humano. Tendo e ando cada dia mais compreensivo e propenso em
olhar para o próximo com mais benevolência em relação a um conjunto de
experiências que hoje já tive. Quando delas nada sabia, pouco compreendia.
Nunca deixei de ter consideração por quem sofria ou vivenciava certas coisas e
acontecimentos, mas não compreendia e sempre tateei certas dores e experiências.
Durante um tempo percebi que as pessoas olham para a depressão como uma
fraqueza do outro porque querem negar a sua possibilidade. Tudo se passa como
se a incompreensão imunizasse as pessoas perante este tipo de mal. Hoje vejo
que a falta de compreensão só aumenta o sofrimento e cria uma situação de
isolamento de quem sofre. Ainda me parece importante cultivar e promover que as
pessoas aprendam a nunca ser indiferente ou insensível ao próximo.
A melhor descoberta do ano
para mim em relação à On the Road – do
que já falei antes – foi o manuscrito original, no qual, aliás, o filme me
parece ser bem mais inspirado. Já, de outro lado, a história de Alexander
Supertramp passou a existir para mim a partir da trilha sonora de Eddie Vedder,
vocalista do Pearl Jam, que compôs algumas canções muito evocativas para o
filme – ao que eu recomendo a audição.
Os dois filmes lidam com
temáticas que já vivi ou testemunhei de certa forma. Tanto o jovem sem nenhuma
necessidade de afirmação ou atuação moral de Neal Cassidy e seu par que
testemunha tudo e participa aqui e ali de suas aventuras, mas que pode dar o
fora quando julgar necessário; quanto o jovem naturalista e moralista com
vocação para uma reencenação de Walden, ou a vida do bosque de Henry Thoreau, já
foram personagens e leituras na minha vida.
Devo dizer, aqui para esfriar
ânimos, que nem sempre um autor está a altura da sua obra e vejo muito isso em Kerouac. Não me
parece mesmo que ele tenha conseguido vencer seu próprio dragão da dor. Quero
dizer com isso que a força narrativa de On the Road não desaparece após o
término da obra e que todo o resto passa a ser tragicamente um reflexo disto,
mas ele não consegue descer a montanha que escalou. E muitos escritores e
escritoras sofrem disto. E na vida acontece coisa parecida.
Alguns olham para vida real e
pensam que ela deveria possuir um grande palco em que em atos altamente
desenvolvidos e carregados de sentido tudo deveria se desenrolar tal qual uma
peça teatral com uma trama bem definida e uma jornada linear das personagens.
Mas a vida não é assim e talvez esta seja uma das maiores percepções de Kerouac
ao final do livro: todo esforço de dar sentido a liberdade conquistada se
dissolve na liberdade perdida do personagem Dean Moriarty. A vida real é
salina, salgada e corrói o homem. O paraíso que todos pensam encontrar um dia é
salino, salgado e árido.
Ou seja, sem dar todos os nomes
aos bois, nem contar mais uma parte ou capítulos da minha vida aqui, a
realidade apresentada nos dois filmes parece romântica, mas no fundo, ao fim e
ao cabo. é trágica. Já estive biograficamente motivado para aventuras
semelhantes, vivenciando perspectivas e jornadas semelhantes aos dois
personagens, mas percebi muitas das dimensões trágicas de uma necessidade de
liberdade que sucumbe a um aprisionamento da própria liberdade. Poderia dizer
que ambas apresentam – por mais tolo que isso pareça - para algum jovem auto
centrado e planejado sem frustrações pelas famílias e suas estruturas atuais um
conhecimento de si que se segue da ousadia de cair no mundo sem proteções,
precauções ou arranjos.
E são, assim, dois filmes que tratam
de temas que me interessam muito e que creio que interessam a qualquer um.
Ainda estamos vivendo e executando a tarefa de compreender a vida, pois a trama
da jornada de uma pessoa em busca de si mesma ou a procura do seu lugar no
mundo ou de sua dificuldade para traçar um retorno para casa é algo permanente.
Não somos seres humanos terminados e estamos sujeitos tanto ao imponderável
quanto ao mundo. O tema da busca de uma liberdade e do risco da perdição
envolvida nisto é ainda permanente. E o tema da coragem em viver o que se julga
ser a nossa vida e o que se decide que vai ser a nossa vida. Isso também é tratado
nestes filmes, portanto, de uma certa forma de coragem para enfrentar a estrada
da perdição e arriscar-se nesta vida.
São belos leitmotivs que movem as
personagens já de certa forma clássicos para algumas gerações. Não havia visto eles
antes e outros filmes do período de sua produção, por completa absorção em
certos trabalhos entre 2005 e 2012, que me deixaram fora de certas contemplações,
prazeres e curtições. São filmes que, entre outras coisas, em meu estado normal
de ocupação, teriam tido bem mais atenção.
On the Road, é preciso dizer, é
um dos livros mais importantes que já li, porque também me deu corda e força na
minha juventude. Como diversas outras coisas nesta vida, algumas acontecem e
tem algum sentido para a gente porque deixamos ou fazemos acontecer e lhes
damos um sentido.
São dois filmes que eu
consideraria do gênero “pé na estrada”, mas que curiosamente narram, com base
em textos literários e datados, o que ocorre ao longo de uma jornada, que me
parece não depender tanto do exterior assim, ou seja, me parece que a jornada é
no fundo interior e que o exterior é um cenário, que provoca esta jornada.
Assim, nesta aventura de liberdade, as descobertas e revelações que se seguem às
trajetórias interior e exteriores de duas pessoas em busca de si mesmas. Em
filosofia se pode chamar isto de reflexão ou auto-conhecimento e algumas
religiões chamam isso também de outros nomes, mas o principal é que temos um
sujeito refletindo sobre o sentido e o significado da sua existência e dos
demais. Ele faz nisto uma aparente busca de algo, de uma experiência, de uma
sensação que parece estar perdida e que faça sentido para suas vidas. No caso
de Keruac e Macandless a perda do sentido da vida está associada a perda de
algo que eles um dia tiveram ou julgaram que tiveram.
A distância e o tempo entre os
dois acontecimentos narrados, os paralelos possíveis entre os dois me parecem
muito interessantes e eu opto aqui por falar dos dois filmes juntos porque
considero muitas conexões entre eles. Conexões que vão para além da Kristin
Stewart estar presente e muito bem nestes dois filmes como a personagem
feminina mais próxima da aventura dos protagonistas.
Kerouac narra acontecimentos que
se deram entre 1947 e 1951, de suas viagens após conhecer Neal Cassidy, das
peripécias, quedas, fugas e prazeres a partir disto indo até a sua despedida que
me parece um abandono culposo - meio sem sentido - de um Neal Cassidy praticamente moribundo e
agônico nas ruas de New York. Isto corresponde ao último capítulo de On the
Road e é muito bom comparar as duas versões a do Manuscrito Original com a do
Texto Editado com o filme. Não vou me alongar nisto e deixo a pista aqui para
cada um ver como quiser esta experiência que marca a morte simbólica e a falta
de sentido final do protagonista ou do centro da trama.
Kracauer – ao contar a história
de Maccandeless ou Alexander Spertramp, trata da vida de um menino que percebe
que algo está errado neste mundo. Percebe isso também a partir de leituras de
Tolstoy, Thoreau a partir de uma formação em Antropologia também - o que me parece pouco explorado ai.
Maccandless percebe que algo está muito errado na forma como as pessoas tentam
ser felizes nesta vida. E isso – por assim dizer - guia sua jornada para uma
outra vida, que no roteiro do filme vai da infância até a vida adulta de forma
paradoxal, se é que um jovem de 23 anos pode ser considerado um adulto. O que
no filme recebe alguns flashbacks da infância dele, me parece uma motivação
moral em relação ao pai e também ao mundo, sendo no filme uma construção em
sete atos da jornada dele da sua libertação na formatura da faculdade –
nascimento – até o seu fim no Alasca. No filme, me parece haver uma presença
excessiva da necessidade de perdoar os pais como uma necessidade mais guiada
pela colaboração dos mesmos do que propriamente pelas experiências das
personagens reais. Alexander Supertramp, me parece não quer somente se afastar
da mãe e do pai, culpados de um pecado original. Não quer somente se afastar do
mundo, me parece que ele procura a si mesmo. A viagem ao Alasca é uma
construção toda feita como Experiência Limite a partir da qual um verdadeiro eu
iria aparecer. O menino quer, no fundo, vencer a si mesmo o tempo todo e todas
as aventuras dele são preparações e acompanhadas de muitos escrúpulos em
relação aos outros e em relação a si mesmo, por mais arriscadas que pareçam.
Ainda que não tenha lido este livro ou outros sobre esta personagem fantástica
e intrigante, me parece que ele não ergue alguma forma de cumplicidade com seus
amigos. Ele lhes dá conhecimento de seus planos, mas não há uma perspectiva
sequer de que ele seguiria de forma insensata para uma aventura cujo final
seria trágico. Isso me parece importante aqui anotar. Ele não se auto destrói
deliberadamente, ele morre porque comete um erro no seu plano de vôo – digamos
assim. Ou seja, ele não se mata para penitenciar ou culpar mais seus pais. E
toda a abordagem moralista da experiência nos deixa um que de absurdo nisto.
Considerando aqui uma formação mínima em
antropologia não me parece que o alcance do jovem seja apenas uma perspectiva
meramente conservadora das relações matrimoniais ou que ele careça de uma
compreensão do tipo de vida dos seus pais. Me parece que ele simplesmente quer
ser independente disto. Macandless quer dar outro sentido a sua vida se
despregando dessa matriz familiar.
Alexander Supertramp e Sal
Paradise são duas personagens criadas por seus próprios autores para falar de
si mesmos e dar outro nome às coisas mesmas, para usar aqui a analogia final de
Into the Wild. Na história de Maccandless, Alexander Supetramp é seu codinome
com o objetivo de ser não somente um super-mendigo com os pés de couro e viajar
pela América. Macandless, definitivamente, não é um poser nem considera ser
necessária a sua aprovação pelos demais seres humanos. Ele desenvolve grandes
afetos por pessoas que também estão despregadas de um passado, ainda que tenham
ambas elas uma experiência de perda como é o caso bem marcante do casal Jan e
Rainey e do velho Ron Franz. Nestes dois
casos a perda de filhos.
Ambos, em suas próprias
Odisséias, lembram muito a grande aventura de uma outra personagem bem
clássica. Ulisses e sua Odisséia em sua árdua e difícil luta para voltar para
casa. Trata-se de uma luta ou jornada por chegar no seu objetivo final. Para
Kerouac, trata-se de terminar um livro que seja fiel aos seus sentimentos e que
traduza sua grande aventura com Neal. Para Maccandless a busca da sua própria
natureza livre de tudo que lhe prenda materialmente e espiritualmente ao
passado. A diferença entre ambos é que a jornada de Kerouac chegou até nós
contada pelo próprio, enquanto a jornada de Macandless chega até nós por uma
reconstrução sobre vestígios por parte de Krakauer e que é levado ao roteiro do
filme feito com contribuições dos amigos de Christopher e seus familiares.
Ainda que com base em narrativas
ficcionais - com seus campos próprios de distorção da realidade, as duas
aventuras ficcionais versam sobre duas realidades cujo tempo que as separa por
si mesmo deveria nos levar a certa reflexão.
Me chamou a atenção por exemplo
que o pai desprovido de moralidade,
egoísta e auto-centrado em sua próprias satisfação pessoal de Macandless,
poderia ser uma espécie de Neal Cassidy
bem sucedido do ponto de vista material.
Mas eu queria dizer uma única
coisa que me aparece como uma psicologia da personagem como mais importante
aqui. Em ambos os filmes, vemos uma personagem principal que enfrenta mesmo uma
única trama: a perda do pai e a repressão que se impõe sobre si a partir disto.
Jack Kerouac havia perdido o pai
e seu amigo Neal Cassidy também havia perdido um pai. Lidamos aqui com pais
desaparecidos, com figuras masculinas que foram dissolvidas pelo tempo,
afastadas de seus filhos e que se esfumaçaram no ar das histórias.
Além da perda do pai e da
ausência de qualquer limite moral ou de responsabilidade paterna presente em
Neal, que sequer havia adquirido qualquer senso de respeito à convenção social
do casamento. Já Christopher Maccandless, tinha um pai do qual queria se
afastar ao máximo, de cujo pecado moral “ter abandonado uma família” para ter
dois bastardos – dos quais um deles era ele e o outro sua amada irmã Carine - com outra mulher e que o atordoava muito. Um
pai cuja relação com a mãe o atordoava muito. Um pai cuja relação com o filho –
pelo menos no que o filme exibe – era de uma distância imensa.
Então vemos ai com mais clareza,
me parece agora, duas imagens muito fortes. Dois arquétipos de um pai
desaparecido e também a falência da convenção do casamento em ambos os
casos.
No primeiro, a jornada leva por
experiências de desregramento sem culpa à confecção de uma obra cujo tom
autobiográfico e suas experiências reais se reapresentam e se repetem. On the
Road é ele mesmo a narrativa auto-referente de Jack Kerouac. Uma narrativa de
si mesmo e do que lhe deu na cabeça e na vida para lhe fazer contar a sua
grande aventura com Neal Cassidy até o fim e que lhe levou a fazer um livro vir
a existir como obra.
Into the wild é uma obra feita
sobre fragmentos de anotações, indícios e sinais deixados por um jovem de 23
anos que, após uma jornada de dois anos, após a conclusão de sua universidade,
sem lenço e sem documento segue pelo interior dos EUA, tentando se afastar ao
máximo da sua família de origem, que se confina no Alasca e acaba falecendo por
inanição. No segundo, a jornada leva á descoberta de si e ao desaparecimento de
si.
Queria terminar este comentário
dizendo algo que me perturbou em certa altura disto tudo. Uma espécie de
percepção sobre estas grandes personagens e os elogios grandiloqüentes que elas
podem receber e tem recebido. Quem leu até aqui deve ter observado que não
falei nada de sexo, drogas e jazz em On the Road, e nem de grandes peripécias
filosóficas em Into the wild, que me parecem ser os apelos popularizantes das
duas obras. E tenho uma razão para isto que é contrária a qualquer forma de
glamourização ou heroísmo em personagens trágicos com o vejo ambos aqui.
A grandiloqüência e os elogios da
crítica vendem muitos livros, lotam cinemas, nos fazem ver filmes e ler livros
ou pelo menos adquiri-los, nos fazem comprar ingressos para shows, fumar
cigarros, beber certas coisas e experimentar certas coisas – e não há nada
absolutamente de errado, na nossa liberdade de fazer isto tudo; mas nada disso
nos faz compreender melhor os livros ou os filmes. Porém, ainda assim,
considero que estes dois livros (ou os mais livros sobre estas personagens), e
estes dois filmes soa muito bons. Julgo que, enfim, nos ajudam a entender algo
daquilo que nos dói nesta vida e algo perante o qual erguemos grandes
frustrações, mas o que realmente importa é que a gente entenda isto como uma forma
de vida e de dar sentido a vida, dentro de determinada circunstância muito
particular de ambos. E que se use isso também para nos auto-compreender...
Três pontinhos podem significar
muita coisa, sim...aqui significam apenas um fim...do que pode continuar depois...
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