CHAMPIGNON E A NOSSA SOCIEDADE
A morte do Chorão neste ano, mais
agora a morte do Champignon, seu parceiro na banda CHARLIE BROWN Jr. – e
diversas outras mortes no último período no mundo artístico, me parece ser a
exposição mais uma vez de um drama social e de um problema de saúde pública que
precisa ser melhor compreendido por todos nós.
A depressão é uma doença que
abate com muita facilidade quase todos aqueles que não conseguem se adaptar a
este mundo e muitos deles são justamente jovens – meninos e meninas – com
muitos potenciais criativos, com muita sensibilidade. É preciso dizer que ela
pode ter também diversas causas e estar associada a diversos outros sintomas de
comportamento e que exigem da gente uma visão mais compreensiva e inclusiva
também. Não ia fazer isto aqui, mas preciso, em virtude de um comentário fútil
ou engraçadinho que li agora à pouco, dizer que ela também pode ser resultado
de problemas de ordem afetiva, sexual ou mesmo de identidade sexual
homoafetiva. Por uma questão de humanidade cito isto aqui, apesar do meu foco
aqui ser mais específico.
Os adultos que conseguiram vencer
a depressão, ou esta doença que leva este tipo de desfecho, o fizeram em alguns
casos por fatores que não estão exclusivamente relacionados à suas escolhas ou
capacidades ou virtudes, como alguns gostam de alardear por ai, como se
exibissem medalhas de boa performance ou grande racionalidade. Em boa parte dos
casos, no meu entender, os adultos adaptados tiveram um êxito fortuito e todo
elogio ou ufanismo construído em homenagem ao mérito pessoal deles encobre as
reais condições disto, quando parte de uma idéia de que há uma proeza pessoal
ai ou algo heróico. Não é o caso.
Eu me aborreço muito mesmo – no
caso das mortes do Chorão e do Champignon e agora vou ter que ouvir e ver de
novo - ao ver juízos morais sobre os vagabundos, os delinqüentes, os drogados, os
vadios, os mendigos ou os artistas fracassados que são colhidos em sua vida
justamente em seus momentos de maior fragilidade. Para cada depressivo bem sucedido,
pelo que vejo na realidade, podemos encontrar pencas de fracassados ou
frustrados, mas a nossa sociedade só olha para os bem sucedidos, lhes dá
prêmios, até que...
Cada um de nós deve ter conhecido
mais de uma pessoa extremamente agradável, criativa, com muito humor, com ares
de genialidade em alguns casos (ainda que isto nos apareça como um ser
delirante ou em excitação máxima) e com capacidade de nos fazer felizes que se
foi meio que tragicamente ou precocemente, seja porque contraiu ou desenvolveu
outras doenças, como a AIDS ou a Cirrose Hepática, por exemplo, seja porque se
tornou adicto de drogas legais ou ilegais (o álcool, cocaína e outras drogas em
especial) e então, nesta dependência química, ficou mais exposto ainda e à
mercê da sorte ou de uma loteria na qual muito poucos são vencedores e muitos –
mas muitos mesmo - são os perdedores.
A nossa sociedade, cujo sistema
produtivo e cuja divisão social do trabalho atingiu o atual grau de
complexidade, tem hoje mais papéis, espaços ou funções sociais (estou
desprezando aqui certas distinções que agora são irrelevantes) bem mais compatíveis
com estes indivíduos. Talvez bem mais do que tinha à dez mil ou mil anos atrás,
entretanto, suas formas, suas regras, seus preceitos e as condições que ela
impõe a todos para sobreviver no atual estágio do capitalismo ou do
desenvolvimento da forças produtivas levam ainda e, talvez bem mais do que
antes, que muitos indivíduos pereçam em seu seio por inadaptação social e
produtiva. É conhecido o trabalho de Emile Durkheim sobre o suicídio, mas é
preciso dizer que devemos incluir nesta categoria de fim outros fins que
parecem dissimulá-lo ou encobri-lo também
É uma pena mesmo, porque, assim
como o Chorão e o Champignon, existem neste mundo, nesta sociedade em que
vivemos, muitos jovens ou adultos que tem uma dificuldade quase essencial em
realizar aquilo que se espera deles, da forma que s espera deles e nos padrões
desejáveis da nossa sociedade. O confronto com as normas ai e com aquilo que
chamamos de conduta normal ou regular é freqüente característica entre estes
indivíduos, ou melhor, seres humanos
E,
é muito importante dizer isto aqui, porque também os familiares destes jovens
sofrem muito. Todos eles vão ter que lidar ali no enterro, no desfecho seja de
qualquer modo que ele vier, com algo que mesmo que não seja dito é pensado: a
gente se sente culpado.
Entretanto,
por uma questão de sobrevivência psíquica e por uma aplicação de um certo
princípio de realidade e de acomodação a realidade dura, a gente acaba olhando
para uma coisa chamada destino. Muitos familiares sofrem com esta perda e não
conseguem contorná-la, já outro a superam meio que à força. Alguns constroem
largas teorias espirituais e atribuem à vontade divina este ou aquele desfecho,
mas no fundo todos nós sabemos que poderia ter sido diferente. Nosso sentimento
e sofrimento ficam sempre ligados a isso. Quando amamos estes jovens, irmãos,
pais, filhos, sobrinhos e amigos, colegas ou conhecidos de alguma forma, mesmo
que não sejamos responsáveis de forma absoluta sempre ficamos com aquele nó na
garganta que expressa que poderia ter sido diferente e que algo poderia ter
sido feito. Pensamos sim que poderíamos ter feito algo, mas nos acomodamos
tristemente nos dando conta de que não fomos capazes de fazer isso. Tudo se
passa como se assistíssemos alguém se perdendo numa curva e não pudéssemos mais
puxá-lo de volta para a pista da vida. É um sentimento de impotência que nos
abate, nos corrói por dentro como dizia meu pai.
Alguns deles
morrem também porque, assim me parece ao analisar esta nossa impotência, na
nossa sociedade há uma espécie de grande elogio à independência e à autonomia
que é outra farsa, outra ilusão que afasta as pessoas da proteção e compreensão
dos seus familiares. Tal farsa promove uma dissociação e uma espécie de ruptura
orgulhosa e arrogante dos laços familiares e de outros laços de proteção
social. Alguns que conheci morreram simplesmente porque não conseguem admitir esta
fragilidade e dependência que às vezes pode ser temporária, pode ser só um
momento da vida da pessoa em que ele precisa de uma atenção maior dos seus. Em que
ele precise de alguém que dirigisse a vida dele numa boa sem rolar interdição
ou intervenção, mas nós não fomos e somos educados para aceitar isto. A nossa
sociedade é tão individualista que isso parece inaceitável Assim, a gente fica olhando adultos e jovens
selvagens e rebeldes, se extinguindo socialmente e atribui isto ao livre
arbítrio.
A depressão precisa, então, ser
tratada e compreendida de forma mais adequada. E é triste isto porque é mais
fácil para todos julgar moralmente do que compreender uma doença que tem toda esta
relação com a inadaptação ao mundo e ao sistema em que vivemos.
Prometi a uma
amiga que ainda ia escrever mais sobre isso e agora passo a dizer algo para
meus amigos de esquerda que são justamente aqueles que aparentemente tem certa
intolerância a isso: aos indivíduos que não atuam produtivamente. Mas é
interessante isso sobre o fato de que os socialistas e comunistas mais
maravilhosos e maravilhosas que eu conheci na vida, todos eles, tinham e tem um
amor gigantesco pela humanidade e compreendem muito rápido nesta vida que alguns
carros não andam direitos, outros quebram, outros tem o tanque furado, mas
muitos dão certo e que haverá o dia em que nós conseguiremos dar um espaço de
amor, dignidade e carinho para cada ser humano ou pelo menos reduzir a dor e as
tragédias.
Tive, por fim,
um diálogo sobre isto com minha filha mais velha estes dias. Dizia para ela que,
em virtude das minhas andanças, conheci muitas pessoas que não eram chegadas no
trabalho. Disse que eu aprendi que elas servem para outras coisas e que o
problema é que nossa sociedade é do trabalho. Falei isso com a Isabella num
domingo de passeio em meio a um café e nós ficamos juntos ali refletindo e
conversando sobre isto. Eu disse para ela o seguinte:
Isabella, tu vai conhecer caras muito legais, caras
super divertidos, caras que nos alegram um monte, que são bons de festa, que
tem um humor e um jeitão muito especial. Pois minha filha eles são mesmo muito
legais. Eles são sim super divertidos, só tem um, problema. Na nossa sociedade a
maioria deles não dá certo, eles não conseguem sobreviver, trabalhar, ter
disciplina, ter compromissos, serem subalternos, serem mandados e não querem
obedecer ninguém. Talvez, minha filha, um dia a sociedade mude e a gente pague
para eles serem como são e nos alegrarem. Disse que alguns deles até se adaptam
ao mundo, sobrevivem, viram artistas, desempenham funções criativas, desenvolvem
mais talentos e seguem. E eles ficam até famosos. Mas muitos deles vivem
tragédias pessoais, familiares, porque esta forma deles serem leva eles para a
miséria, para rolos, para problemas e leva junto com eles nesta cadeia e neste
circuito quase todos os familiares que os amam.
Ela me olhou e disse: Bah pai, eu estive pensando
nisso também. O fulano é assim, não é? Eu respondi sim filha, e Ela: Poxa ele
nunca consegue trabalho, mas é muito boa praça. Eu disse para ela, pois é minha
filha, eu pagaria para ter o fulano, o beltrano e o sicrano comigo agora aqui
junto com a gente. Porque eles são pessoas no fundo maravilhosas, mas o mundo
não sustenta elas, não comporta elas. Eu perdi, nós perdemos muitos deles - mas
temos que saber e entender quem eles são e tentar ajudá-los e evitar as tragédias
sabe filha?
Por fim, depois deste bate-papo com minha filha eu
disse também o seguinte que por trás disto há outra grande questão a da
fantasia de uma excessiva independência das pessoas, que é cultivada na nossa
sociedade – cuja forma mais bruta é o individualismo e o egoísmo - e com isto a idéia de que é normal educar os
filhos para cumprir este objetivo e viver com as pessoas uma vida cheia de muitos
segredos e questões sigilosas.
Mas este é um outro papo já...
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