Hoje uma amiga lembrou aqui no Facebook
de que o GOOGLE não comemorou os 419 anos de Descartes. Afinal ele nasceu em 31
de março de 1596 e até onde se saiba suas estátuas e monumentos ainda estão de pé,
mais firmes que outras e não foram ainda retirados do panteão dos sábios, filósofos,
cientistas, escritores e gigantes da humanidade. No frontispício da Biblioteca Pública
do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, sua imagem ainda está lá esculpida
a observar o nosso pequeno mundo cada vez mais liliputiano de Porto Alegre,
onde algumas grandezas são diminuídas e algumas pequenezes são amplificadas.
Em frente cavaleiro mascarado,
pensei eu, imediatamente. Achei legal a lembrança e me toquei de escrever um
pouco e livremente sem peias sobre ele e sua relação com a tradição. Isso me
pareceu algo para anotar e de pensar que talvez ele tenha sido mesmo abandonado
e que talvez volte a ter um lugar melhor para si que é justamente fora de toda e
qualquer tradição oficial ou oficiosa. Sou daqueles que sempre tendo a mais elogiar
Descartes do que combatê-lo. Tendo sim a crer mais no gênio dele do que
naqueles que o detratam, pois vejo sempre algo libertador mesmo num erro desde
que bem pensado. E se tem algo que eu vejo bem pensado, de caso pensado e bem
propositado são suas idéias, textos, teorias que se encontram em suas obras e
mesmo em cartas, rascunhos, esboços, notas ou em suas correspondências. Em tudo
isso e também ali onde há uma falta, eu vejo um gigante.
Descartes foi um escritor e pensador
tão impressionante para mim que sempre descubro algo ao ler ele, assim como descubro
algo também naqueles que o negam ou renegam. Descubro algo naqueles que usam
seu recurso ao “Eu penso” e descubro também algo naqueles que tentam superá-lo,
ultrapassá-lo e ir pára além dele. E este algo sempre me me obriga a voltar a
pensar em algo do tipo como nosso ser se coloca em relação a sua negação, seja
ao pensar seja ao tratar com algo diverso de si mesmo. Ando lendo, para variar
minha dieta, um pouco de Schopenhauer nos últimos tempos e se soma à isso uma
certa leitura indireta de um Fichte, também, e com isso meu Ich Habe ou Ich
sein tem me mostrado muito mais sobre Descartes e somado ao que já li em Kant me convenço que tanto o eu penso, este
ser que pensa e que julga determinar a si mesmo como universal em seu pensar,
tem um que de realmente singular e necessário como ponto de partida da reflexão
sobre o que há, o que nos parece e como fazemos as nossas diversas formas de
sínteses dos dados dos sentidos e usando conceitos.
Mas a minha vontade e a minha disposição
ou paixão por ele está de certa forma tranqüilizada, pois toda vez que o leio
sinto hoje mais uma prosa tranqüila e serena do que aqueles solavancos que sentia
ao pular do argumento do sonho para o do gênio maligno, do Deus Enganador ao
meu bom Deus, ou os solavancos que eu sentia ao pular de uma regra para outra e
mesmo meu espanto ao conferir que ele não julgava mesmo possível a supremacia
da razão sobre o coração ou as paixões hoje me parece algo como uma paisagem
estabilizada. Mas deve haver, portanto algo de errado comigo e com ele, posto
que assim não se trata mais como escândalo a divisão ou separação do corpo e da
alma, não temos mais porque temer como se vai conseguir juntar os dois, após separá-los
e muito menos fico a imaginar que minhas certezas serão mais uma vez abaladas,
afinal elas andam tão rasas e minhas esperanças são tão modestas que posso
falar dele prosaicamente como falo aqui agora.
Agora, é mesmo interessante o fato
a ser observado de que há aqueles que o renegam sem jamais tê-lo apreciado com aquela
generosidade de alma que é tão necessária para ler cartas que vem de lugares
tão distantes no tempo e no espaço. Eu fico pensando no déficit hermenêutico disso,
dessa interpretação que se diz crítica mas que num tem uma linha sequer dissolvida
em suas mãos. E há sim entre aqueles que o renegam aqueles que não o leram ou
que se o leram não entenderam, como me disse um velho mestre sobre este e outro
autor. Assim, temos hoje mesmo um anti-cartesianismo que repousa em ataques a
um fantasma, que se aferram a uma máscara de tradição, sem perder de vista seu
próprio ponto de partida, mas sem saber.
Alguns recebem suas lições sobre
isso de segunda, terceira, quarta, quinta ou milésima mão e a imagem ou desenho,
modelo ou sistema que atacam é um arremedo. Então também escrevo isso aqui –
com uma gota de revelação de um segredo – recomendando que o leiam de verdade.
Que tome entre suas mãos frente ao fogo deste inverno que virá suas obras e vejam
se é tão insensato assim tentar dar um limite a suas crenças,s e é tão insensato
assim questionar a si mesmo sobre suas certezas e mais – porque é possível mais
sim – se não seria um bom augúrio olhar para este céu com outros olhos e tentar
ver as estrelas que antes pouco percebias. E isso é só um modesto conselho que
homenageia um aniversário de aparecimento e desaparecimento.
Desconfio ainda que ele é tão
influente entre nós hoje que mesmo frente
a uma pequena lista de atividades banais e comezinhas calha bem ordená-las e
discerní-las ainda assim pelo seu método
e suas regras de direção do nosso espírito. E que curiosamente temos as regras
sem seu autor em nossas mentes como que introjetadas. E isso pode me levar a
crer que ele apenas exibiu aquilo que todos nós sabíamos, ou que ele explicou
aquilo que já compreendíamos e saiu-se a triunfar sobre isso. Mas qual triunfo mesmo
precisaria de uma interpretação aqui? O nosso de reconhecê-lo ou o dele de
descobrir tais regras?
Por seus conceitos que já nos
deixaram a muito tempo – ultrapassados em um upgrade mais analítico que o dele –
temos filosofias que vivem entre nós como hábitos arraigados.
Os que renegam isso, portanto,
adotam seus modelos de racionalidade e alguns chegam a ser mais racionalistas
do que o recomendável. E, então, confiantes na razão em desmedida seguem se julgando
seus sucessores. Mas não era isso, creio que ele diria. É preciso manter o
espírito da dúvida e a questão de método acesa para nos iluminar e nos impedir
de crer de forma irrefletida. Para evitar que surjam repetições e que
ingressemos numa era do automatismo de novo. E eu creio que ele está fora da
tradição atual e é negado muito mais por isso: justamente por possuir este vírus
da dúvida por nos lembrar que podemos estar errados, por nos lembrar que precisamos
de razões melhores e pro nos lembrar que mesmo um edifício bem construído, bem
belo e vistoso pode soçobrar. Mas é, então, uma paixão que aparece aqui contra
ele mais uma vez. Ele ainda é perigoso, portanto, deita fora, deixa de lado...pois
na fortaleza das crenças bem amarradas ele pode te fazer pensar ainda de forma
diferente...
O seu estilo inconfundível com
aquela narrativa justa e malemolente e que, ao mesmo tempo, como a água mole em
pedra dura, tanto bate até que fura vai abrindo ao nosso pensamento uma nova
forma, uma nova ordem e vai nos formatando. Eu creio sim que Descartes é
perigoso mesmo, é contagioso. Assim, ele continua correndo em muiats vertentes
da tradição ocidental, de uma filosofia com matriz de origem européia e que mesmo
seu adversário mais extremo acaba por lhe render homenagem e paga. Nos mais
radicais e nos hipercríticos ( nova categoria), nos pós modernos e céticos, nos
apocalípticos e nos integrados, nos analíticos e nos dialéticos, nos aforismáticos
e nos tratadistas, entre pessimistas e otimistas, realistas e idealistas,
pragmáticos e funcionalistas, estruturalistas e externalistas, construtivistas
e intuicionistas e muitos outros – não posso continuar fazendo esta lista – seguem
seu velho trilho e sua velha forma, de afirmação, negação, revisão e fundação. Ainda
que não gostem tanto mais de fundações ou de ter que fazer tais escolhas, mas
ao fixar uma posição a partir da qual combatem fazem o mesmo. Isso é para mim
como uma espécie de golpe de uma luta qualquer que sempre figura em qualquer
combate. Como se uma certa forma de recurso ou forma de argumentação que só se
mostra e não se diz estivesse ali.
E, então, cada vez que alguém
nega o automatismo da confiança na tradição, na autoridade ou nas crenças dominantes
eu vejo um dedinho cartesiano apontando “tui” contra um gigante ou um sistema.
E tal como um David com sua pedra certeira derruba o gigante Golias que tem em
seu excessivo tamanho descuidado de seus pés, abandonando os zelos
recomendáveis em tal empresa com seus fundamentos e então de uma forma livre ao
ter relaxado no método precisa voltar a sua origem e refazer sua jornada, para
quem sabe ter de novo um lugar de tradição ou, se preferir, continuar contra
ela até o fim dos dias e para além mesmo deles.
Obs.: Fiz questão de escrever
isso com a retórica mais deslavada de tal modo que ninguém pense mesmo que eu
estou a defender a um Descartes com suas próprias armas, mas apenas dando
voltas ao seu ponto com a tradição e a questão da fundação de um discurso que
se quer verdadeiro ou mais verdadeiro que ao outro.
E a imagem de FOUCAULT, que roubei
da Mariane, serve aqui de alento...ou motivo de um bom riso ao nosso pensamento.
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