"(...) um condensado da
missão que Lacan apontava para a psicanálise e, indo mais além, para qualquer
esforço intelectual: nunca o vazio original deve ser preenchido por um ícone;
nunca o abismo primordial deve ser fechado por uma criação do imaginário. Com a
maneira cortante de sempre, Lacan certa vez disse que a filosofia nada faz além
de tapar o furo da política. Não é muito simpático para os filósofos! Mas
entendo perfeitamente o que ele quis dizer. De modo geral, mais vale cavar no
pensamento um novo furo do que tapar outro com um edredom. Nos dias de hoje, a
chamada moral dos direitos humanos e a palavra de ordem do retorno a Kant são
tais edredons (...) É o exemplo preciso de uma escola de pretensos filósofos [a
'nova filosofia'] que, de maneira entusiasmada se dedicou a tapar o furo da
política."
Alain Badiou In: Alain Badiou
& Élisabeth Roudinesco, Jacques Lacan, passado presente, 2012 [2011], pp.
80-81.
Eu creio que a debaclê da
esquerda expressa nesse "furo da política" na França foi tão perversa
que produziu este tipo de pensamento que nega aos direitos humanos e iluminismo
algum papel, trata emancipação e autonomia como secundários e, ao mesmo tempo,
que parece afirmar, ancorado numa forma descomprometida e desengajada, como se
a culpa fosse somente do outro. E há para mim nisso uma decepção típica do
mesmo perfectismo que temos no Brasil hoje, onde os governos Lula e Dilma são
mais avaliados por suas alianças e concessões do que por suas conquistas e
avanços. A iconoclastia - esta bela faceta crítica da modernidade que chegou
aqui no Brasil só em 1922 - que deveria nos imunizar contra ídolos ou totens,
acaba por nos cegar perante a realidade de uma difícil construção coletiva, de
uma síntese bem mais difícil que a subjetiva ensimesmada e auto-referente e de
uma dialética que não depende somente em sua resolução das figuras de um sonho,
de um imaginário, de uma fantasia idealista, mas sim do real que não é aquilo
que queremos, mas que precisa ser superado. Pensar para além do passado e para
além do presente é bem mais do que culpar este ou aquele pelo que é o caso. Na
minha opinião anda junto da esquerda como um grande fantasma da culpa e da falência
do socialismo real, a crítica às avessas, um autismo que adora discursar
sozinho e uma liderança que não lidera ninguém. Também é neurose essa busca de
um significado superior ali onde apenas repousa um erro, um insucesso imposto
pelo limite do real à nossa vontade. Não perceber isso é encaminhar a todos
para uma postura esquizofrênica - com múltiplas personalidades e justificações
para cada afazer - ou para uma certa paranóia da traição em que só o outro é o
culpado pelo destino e pelo tom escolhido para o réquiem. E é fácil seguir
assim aprofundando o revanchismo e o desacordo a priori sobre o nada, o que não
tem sentido e o que nem chegou a ser. Eu olho para isso como um militante de
esquerda não dogmático e que percebe que a dialética que importa não se faz
sozinho...
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