Powered By Blogger

segunda-feira, 3 de março de 2014

LIBERDADE E INDETERMINAÇÃO: O CONFRONTO DE POSSIBILIDADES

Menalton Braff, este notável escritor que vem sendo reconhecido no início do século XXI, em seu artigo ou Crônica de hoje (03.03.2014) da CaRTA Capital, Pedras que Rolam, (aqui) após detalhar a sua relação com um amigo e conhecido e de quantas vezes estiveram próximos ou paralelos sem no entanto se encontrarem,  diz que as vezes pensa “nas pessoas que cruzamos na vida, que poderiam ter sido amigos ou inimigos” e etc. Eu vou suar isto como uma alavanca aqui para tratar e tentar compreender a nossa liberdade e indeterminação.

Este tema dele sobre o que lhe é fortuito e indeterminado e sua curiosidade com isso é um belo tema que recebe outros títulos na literatura. Os encontros e desencontros, as afinidades eletivas, aproximações, contatos e cruzamentos, as vidas paralelas e – por conta do seu caráter fortuito, imprevisível, indeterminado e acidental, estes casos de aproximação e afastamento de uns e de outros caem no rol das possibilidades, daquilo que é possível acontecer, mas que não possui necessidade alguma de acontecer. E que sendo possível acontecer nos leva a pensar em quanto destes encontros determinam o que nós somos e como vivemos.

No filme dirigido pelos irmãos Coen, ONDE OS FRACOS NÃO TEM VEZ (2007) aqui que assisti de novo com mais atenção na semana passada, observamos um velho xerife às voltas com uma série de assassinatos e um caçador profissional que caça seu alvo e impiedosamente mata tudo que se atravessa no caminho dele, o momento mais tenso do filme – para minha escolha e opinião - se dá quando o policial cruza por segundos com o assassino profissional e psicopata. E isso é tenso porque na trajetória da personagem de Tommi Lee Jones vemos um homem que reflete com todas as suas dificuldades e limitações sobre as fatalidades da vida e sobre a sua dificuldade para entender o mundo ou o tempo em que vive. E esta personagem conquista nossa admiração seja pela singeleza das suas reflexões, diálogos e exemplos, seja pela piedade que desperta em nós aquilo que parece ser um pobre homem, mas que nos fundos  me mostra um bom homem, um homem comum que parece não merecer um final trágico.  Devo confessar – abre aspas ou parênteses aqui - que tanto fisicamente como em suas expressões Tommi Lee Jones sempre lembra e vai lembrar meu falecido pai. E quem conheceu ou conviveu com meu pai nos últimos 40 anos deve perceber rapidamente porque. E as suas personagens que misturam um heróico com um irônico sempre fazem isso comigo, porque meu pai parecia meio assim também um homem prosaico e simples, mas reflexivo e bondoso, enérgico e corajoso e bem determinado no seu andamento sobre o mundo. Voltando ao filme. Fica no ar a possibilidade do encontro cujo desfecho é trágico e bem previsível para o xerife, mas que mesmo assim é indeterminado e fortuito. E este encontro entre Ed Tom e Cigurth – a personagem assassina e quase marciana de Javier Bardem - não acontece, o que nos mostra que mesmo a sorte pode ajudar ainda em meio ao grande mar de sangue, lágrimas e azares do filme.

E isto nos impressiona neste filme e na crônica de Menalton, porque nos dá uma noção, de um lado, da nossa liberdade de escolha, bem como, da nossa responsabilidade nas escolhas, ações e iniciativas que tomamos, mas também, de outro lado, de que o fator sorte, o fator fortuito e indeterminado também intervém ai. Vai saber? Diria meu pai.

Então isso nos mostra que não depende somente de nós, de nossa prudência, maestria, virtude ou sabedoria, as condições do desfecho ou do que vai ocorrer. E nos vemos assim com duas dimensões efetivamente decisivas e indecisas. De um lado o que está ao nosso alcance do outro lado o imponderável, o sobrenatural de Almeida, o que é misterioso e espantoso e que nos surpreende ao longo da vida. Nosso mundo de possibilidades passa a ser cindido por aquilo que podemos fazer e aquilo que não depende de nós. E as vezes aquilo que não depende de nós nos joga em um trecho pelo qual devemos passar compreendendo.

Como dizem e reproduzem já a exaustão por ai: somos responsáveis pelos afetos que conquistamos, somos livres para escolher, mas depois de escolhermos não escapam as conseqüências,  todas elas nos advém à medida exata do seu tempo e da afinação dos demais instrumentos e personagens da vida. Porém, não somos tão livres assim como julgamos.

Um fantasma ronda nossas vidas, se aproxima e se afasta da gente, quase como um termômetro que marcasse os nossos momentos em que passamos por um fio, escapamos por um triz de uma fatalidade, tragédia, grande alegria ou grande sorte. Andamos sem saber em uma corda bamba como dizia a canção O bêbado e o equilibrista, que Elis Regina cantou com tanta beleza. (aqui) Mas isso não deveria nos levar a pensar em termos fatalistas, nem estabelecer decretos de impossibilidades ou, a partir de insucessos, determinar que certas coisas não podem dar certo.  

Eu andei pensando neste tema dos cruzamentos e seus efeitos também de uma outra forma ainda, mergulhando em nossas relações indo para além dos fatos. Aliás, eu suponho que todos que estudam filosofia ou literatura devam refletir em algum momento sobre isto. Não creio que seja possível ler o que lemos sobre liberdade, sabedoria, amor, amizade, compreender tramas ficcionais ou reais, casos existenciais ou imaginários, sem pensar uma pitadinha nisto.

Todos sabem que pensar nisso e também isso que se pensa é chamado de influência e que isso também é um dos elementos de disputa no sentido de explicarmos os comportamentos das pessoas para além de seus atributos ou herança genética e para além das influências familiares ou sociais imediatas. E é possível se imaginar aqui como explicar a trajetória de determinada personagem a partir dos livros que ela leu. Ou como Harold Bloom tratou da angústia da influência em sua obra.

Penso nisso também por conta de certo mistério que me provoca no entendimento da filosofia, das obras e idéias  de certos filósofos e filósofas,  de como explicar certas direções, certos estalos, usando aqui uma perspectiva que percebe e se surpreende quando observa um autor andar em direção do desconhecido e do impensado de forma surpreendente e ficar se perguntando: Mas como? Sim eu fico me perguntando em como é que ele foi pensar nisto e guardo esta pergunta às vezes durante a leitura de uma obra inteira, procurando a sua resposta. Sei que alguns autores tentam ser o mais transparente possível, sobre suas motivações, sobre o que lhes fez pensar assim e que registram isso em suas obras e que às vezes o mistério se dissipa, mas, mesmo assim, permanece uma dúvida, não por falta de confiança, mas porque as vezes as explicações para tal movimento, direção ou interrogação parecem tão insuficientes. ( Tenho adotado uma narrativa muito pessoal e confessional também muito por conta disto, para tentar explicitar ao máximo as influencias, os tempos delas e as ocorrências que me levam a pensar nisto ou naquilo.)

Este tema do lançamento ou da escolha – e escrever em tom confessional também é um lançamento aqui - em meio a indeterminação de muitas possibilidades e seu risco é, então,  como a vida...e também a vida do pensamento tem disto quando  escolhemos determinada direção ou posição para nossa reflexão. É arriscado sim e a sabedoria está em fazer esta escolha e em saber ou aprender a lidar com aquilo que independe desta escolha.

Estou então, a partir do texto do Menalton Braff, do exemplo do filme Onde os fracos não tem vez, da angustia da influência, escrevendo sobre isto agora: sobre as nossas escolhas e os limites delas...e ao mesmo tempo lendo a percepção de um filósofo (Renato Janine Ribeiro) sobre o jogo do Tarot, que ele sempre pensou que dependesse da mão do oraculista como os búzios, e que então  surpreendido com o fato de que as cartas são escolhidas pelo consulente e que somente a interpretação é do tarólogo ou taróloga.

Excluindo a idéia de uma vidência ou do sobrenatural resta apenas o indeterminado. Porém ai há no elemento fortuito e indeterminado, um elemento para o qual nossa tendência é atribuir a alguma força sobrenatural ou mística, ou a uma vontade divina, o que ocorre, mas eu não sei não. Não sei nada sobre isto e não tenho como saber. E o exemplo do jogo de tarot é um bom caso para percebermos isto, haja visto que ele depende de uma escolha e de um indeterminação também. Porem a escolha é também indeterminada na contra-face e na ocultação da face das cartas escolhidas, pois esta escolha de cartas é feita por alguém que não sabe, enfim, qual carta esta a escolher na aleatoriedade do que foi embaralhado e disposto à mesa.  É uma escolha no escuro como muitas outras em nossa vida, com o risco para o bem e para o mal disto.  (O filósofo Michael Dummett talvez tenha algo mais a nos dizer sobre o Tarot.)

Mudando um pouco a direção da minha digressão me lembrei de algo mais ai. Sempre tive que lidar com esta espécie de dogma do pensamento solitário, e falo dele agora por conta de que creio que ele não ajuda na compreensão, tanto da influencia como da indeterminação, porque tudo parece depender do sujeito que pensa quando sabemos que não. Há, portanto, duas ilusões ai: a ilusão de liberdade e a ilusão de uma originalidade. Ambas tendem a ser maximizadas para certo proveito pessoal e para a vaidade de quem pensa ou compartilha seus pensamentos. Creio que há uma tendência de que isso desapareça com algo que eu poderia chamar de certa planície do pensamento que vai sendo construída aqui e ali em que a fantasia de liberdade e de originalidade vão sendo dissolvidas pelo encontro com o outro e pelo encontro com outros textos e outros pensadores que antes eram inimagináveis sem as redes sociais blogs e esta ampla circulação de opiniões e artigos. E hoje é maior e mais intensa a influencia recíproca entre certos grupos sociais e eu creio nisso como um fenômeno que tenderá a depurar e qualificar nossos textos, debates e abordagens.

Porque sempre tive comigo mesmo certos registros de minhas influências e sempre percebi que isso se confrontava com um certo dogma intelectual. Um dogma em que tudo se passa como se as idéias que temos fossem produtos somente de nossa reflexão individual, como se nada fora de nós tivesse provocado. Eu não tenho a menor idéia se tenho mais consciência que outros, mas eu tenho uma memória que me dá informações sobre muitas influências  conscientes minhas e as recordações são tão nítidas de tal modo que poderia enumerar as experiências, as vivências e as fontes de muitas de minhas idéias e concepções.

Ontem mesmo dei de cara com duas matérias que para mim estão vinculadas a este tema geral das RELAÇÕES SOCIAIS, das INFLUÊNCIAS e das diversas formas de CONTATOS temporais ou espaciais entre as pessoas...uma destas teorias é aquela sobre os seis graus que nos separam de outras pessoas, outra que compartilhei aqui é sobre as DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE IRMÃOS e enfim - agora mesmo lendo textos especializados sobre a relação entre Platão e Aristóteles (Gadamer, Ross e Jaeger), ou entre discípulo e mestre ou mestre e aluno e suas diferenças fiquei pensando nas marcas e em como nos relacionamos com elas.

Já disse antes que virei professor por conta de certo privilégio dos professores que tive e que isto me motivou a ser como eles em algum sentido e a lecionar tendo eles como modelo em muitas coisas, ao contrário de outros que partiram de modelos negativos e que hoje tem uma performance e concepção diversa...mas bem como seria se fosse diferente? estamos aqui naquele oceano logo posterior a pergunta: Como isto foi possível? e que nos leva ao caso de que outra coisa poderia ter sido possível também.

Mas daí eu lembro de Leibniz e esta lembrança me destaca a diferença de nível das possibilidades sub specie aeternitate, onde a opção do criador é A MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS, frente ao nosso nivel mundano em que isso aqui é somente isso aqui que é, nem melhor nem pior, não há escolha ou há apenas uma pequena margem de escolha e uma grande margem que independe de nós. Quando Albert Einstein disse que Deus não joga dados ele pensou em uma dimensão sub specie aeternitate, porém este lançamento divino permanece em certa medida insondável e a medida que a ciência vai eliminando alguma indeterminação ou aleatoriedade o que ocorre não é o aumento da nossa liberdade, mas sim o contrário que é a imposição de um limite físico e material a ela. Porém tanto a confirmar a hipótese do Big Bang quanto o fim dos tempos nada poderemos fazer em relação a isso que o mude. E quando Luis Fernando Veríssimo escreveu a última crônica dele posta em Zero Hora no caderno dominical, não coincidiu esta publicação com o nosso tema, mas somente indiciou-se que este tema é mais uma vez presente em reflexões literárias e filosóficas sob muitas formas, mostrando mais uma vez o limite desta bela ilusão que temos sobre nossa originalidade e liberdade.  Então sofremos influencias seis graus ao lado, seis graus ao passado, seis graus na literatura e seis graus na filosofia, enfim, seis graus na vida desta humanidade.   

Compreender isto é superar a vaidade (aquela vaidade que o tio de Ed Tom acusa no filme) de julgar que podemos realizar a escolha completa ou que podemos superar esta condição com toda a nossa racionalidade.  E não digo isso para promover alguma resignação, mas sim para despertar uma compreensão melhor sobre este lançamento e nossa comunidade de condição.


As pedras que rolam são como os dados que são lançados ou as cartas que escolhemos nos nossos jogos da vida. E dependem em parte da nossa sabedoria, da nossa sorte e também da dos demais seres humanos. Isso significa que não é porque algo é assim que somente assim deveria ter sido ou que esta era a única possibilidade, poderia ser diferente e este é sim um mistério que devemos respeitar, em especial, nos assuntos humanos para compreendermos melhor os demais seres humanos que compartilham da mesma condição de liberdade e indeterminação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário