Você quer saber mesmo porque eu
gosto de ler Simone de Beauvoir?
Eu gosto muito de ler os textos
autobiográficos de Simone de Beauvoir. Gosto da precisão de detalhes, do tom e
da ironia e auto ironia de que ela se serve e do modo ou estilo como ela narra
também.
Não sou, entretanto, um
especialista em literatura e estilo literário. Creio que o estilo literário
dominante no século XX mistura muita ficção com elementos biográficos. Parece haver
uma estrutura ficcional sobreposta a uma estrutura biográfica. Não me dei ao trabalho
de mostrar ou estudar como isso ocorre, porém, me parece evidente.
Às vezes a estrutura da ficção deixa
a narrativa melhor, pois a enriquece com elementos do extraordinário e com um
tom narrativo mais pessoal, sentimental e emocional e em outras as biografias e
suas estruturas que fazem a narrativa de fatos, parecem ser melhores.
Estou lendo A Força das Coisas
(volumes I e II), nessa obra ela mesma faz a crítica de suas ficções ou o que
podemos chamar de auto ironia e eu gostei muito. Uma característica que fica
ressaltada nessa obra dela – do qual as outras obras auto biográficas parecem
seguir o mesmo modelo, é que ela escreve suas obras meio que como uma resposta
às ideias e obras de outros e ela mesma relativiza e faz a crítica mais
apropriada e honesta possível de suas obras.
O que eu gostei mesmo foi da
lucidez e da clareza com que ela explicita suas razões e ideias que nem sempre
parecem ficar claras em suas ficções ou obras teatrais. Ocorreu um insight
quando li uma critica ao Murakami e também fiquei pensando nisso. A diferença
está entre saber ou vislumbrar as intenções dos autores ou buscar traços de
gênio e de alta inspiração.
Porém esse estilo corre o risco
de parecer raso e uma narrativa mais trivial. Mas não me parece ser assim. Ao
contrário, a simplicidade da expressão e a sua clareza não encobre os dilemas e
as reflexões profundas, apenas nos facultam o acesso a elas.
O ponto parece ser bem esse: ter
certo grau de informação sobre contexto de produção literária e compreensão das
intenções da autora. Simone parece ser uma testemunha altamente reflexiva da
história e dos fatos do seu tempo e isso inclui a caminhada de Sartre ao lado
ou próximo dela e de toda uma geração da cultura francesa entre guerras (1919 a
1939) e nos pós guerra (1945) até os anos 70.
Mas confesso minha insuficiência
para avançar muito nesse debate. Em parte, porque não li toda sua obra e, de
outra parte, porque também não li e não tenho domínio do contexto todo e das
obras e personagens que são suas contemporâneas. Fico imaginando agora, nós aqui
no Brasil que possuímos raros escritores que tentam fazer este esforço intenso
de interdisciplinariedade da filosofia, da literatura e das autobiografias de
seu tempo, antes mesmo dessa expressão ter uso. Nesse sentido, sinto certo
prazer com Simone, pois ela me dá aquilo que eu não conseguiria juntar sozinho
de seu tempo, obras e autores. Ou seja, compreender o modo como uma filosofia
ou visão de mundo e de existência se expressa no teatro, na ficção literária,
em obras autobiográficas e em ensaios e obras filosóficas. É sim a filosofia
aplicada à literatura, mas é também a literatura aplicada à filosofia. Assumindo
aqui, é claro, a literatura como uma designação ampla a obras de teatro,
ficção, auto biografia e poesia.
Eu gosto dela, portanto, por
diversos motivos guiados pela curiosidade e pela busca de uma qualidade narrativa
e reflexiva. Gosto das ideias dela e da forma como ela as apresenta com uma
certa clareza e finesse, mas sempre indo direto no ponto. Eu não diria que ela
é menos filósofa que Sartre, nem menos importante. da mesma forma que quando
leio Hannah Arendt, não vejo nela um filósofa menor ao seu mestre afetuoso Heidegger,
ainda que para mim Heidegger seja um verdadeiro gigante - com todos os riscos
que toda forma de grandeza acarreta.
Penso também nesta condição
feminina na filosofia. Uma coisa que parece colocar sempre a mulher ou o
feminino na lateral dos combates. Não sei se uma figura ou metáfora cai bem
aqui. Penso que não. mas me vem a calhar que a guerra, a meia guerra só é
vivida nas laterais da história. A verdadeira guerra ocorre dentro de nós
mesmos. E a consciência disso as vezes nos suaviza e as vezes nos enfurece.
Nenhuma filosofia sobrevive ao engano. No entanto o pensamento de Simone me
parece vivo, presente, ativo.
Posso estar enganado, mas creio
que deveríamos olhar com mais atenção para estes fenômenos das mulheres na
filosofia do século XX. Na maior latitude possível. O que inclui aqui Rosa de
Luxemburgo, Simone Weil, Susan Sontag e também algumas escritoras e filosófas que
ficam nas áreas de fronteira entre a literatura e a filosofia, a história, a
antropologia, nas ciências humanas e mesmo nas ciências exatas e biológicas.
Afinal, são sim obras do
pensamento de um tempo, reúnem testemunhos, ideias e também novas formas
narrativas e trazem junto novas concepções de mundo e modos de se encarar a
vida. Algumas hoje pode parecer triviais, mas no seu tempo não foram. Representaram
verdadeiras revelações existenciais e de
estilo.
Obs.: Na imagem, a obra de Simone
de Beauvoir, A Força das Coisas, primeiro volume com o marcador de página que
recebi de lembrança direto da China de minha amiga APS.
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