“A paixão de Heidegger era
indagar, não responder. Por isso indagar podia ser para ele a devoção do
pensar, porque abria novos horizontes — assim como outrora a religião, quando
ainda era viva, ampliara os horizontes e santificara o que neles aparecia. Para
Heidegger possuía especial força reveladora a indagação que ele fez durante toda
a sua vida filosófica: a pergunta pelo ser. O sentido dessa pergunta não é
senão esse abrir, esse remover, esse sair para uma clareira onde de repente é
concedido ao evidente (Selbstverstãndlichen) o milagre do seu “aí” (Da); onde o
ser humano se vivencia como local onde algo se escancara, onde a natureza abre
os olhos e percebe que está ali, onde portanto no meio do ente existe um local
aberto, uma clareira, e onde é possível a gratidão por tudo isso existir. Na
questão do ser esconde-se a prontidão para o júbilo. A questão do ser no
sentido hedeggeriano significa tornar mais claras (lichten) as coisas, assim
como se levanta (lichten) uma âncora a fim de partir livremente para o mar
aberto. É uma triste ironia da história que a indagação pelo ser na leitura de
Heidegger em geral tenha perdido esse traço revelador e iluminador, deixando o
pensar antes inibido, enovelado e crispado. Com a indagação pelo ser acontece
com a maioria assim como com o discípulo numa história zen. Ele meditara
longamente sobre o problema de como tirar o ganso crescido da garrafa com
gargalo estreito sem matar o animal ou quebrar a garrafa. O discípulo, já torto
de tanto pensar, foi ao mestre e pediu a solução do problema. O mestre
afastou-se um momento, depois bateu palmas energicamente e chamou o discípulo
pelo nome. “Estou aqui, mestre”, respondeu o discípulo. “Está vendo?”, disse o
mestre, “o ganso saiu”. O mesmo vale para a questão do ser.
Também sobre o sentido do ser,
que se busca na pergunta pelo ser, existe uma bela história zen, bem na linha
de Heidegger. Ela relata que antes de ocupar-se com o zen alguém vê as
montanhas como montanhas e as águas como águas. Mas se depois de algum tempo de
contemplação interior ele atinge o zen, vê que as montanhas já não são montanhas
e as águas já não são águas. Mas quando ele se torna um iluminado, volta a ver
as montanhas como montanhas e as águas como águas.
O Heidegger dos anos vinte gosta
de empregar a expressão aparentemente abstrata “anúncios formais”. Gadamer
relata que a seus estudantes, que tinham dificuldades com o termo por
suspeitarem que em seu significado houvesse gradações de abstração, Heidegger explicou
da seguinte forma a expressão: ela significava “saborear e completar”. Um
anúncio (Anzeige) se mantém na distância do mostrar (Zeigen), e pede que o
outro, a quem algo é mostrado, olhe ele mesmo. Precisa ver ele próprio, na boa
maneira fenomenológica, o que lhe é “anunciado” e “completá-lo” com sua própria
contemplação. E na medida em que o completa, saborear o que ali há para ver.
Mas, como se disse, a gente mesma precisa ver."
Rudiger Safranski
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