“Mais uma vez um caminho da
filosofia perde-se no desconhecido.”
Heidegger pronuncia esta frase
quando da morte de Max Scheler (1874-1928). E esta é a frase final da biografia
Heidegger: Um mestre da Alemanha: entre o bem e o mal, escrita por Rudiger Safranski, página 500.
Filosofar é sempre um jogo ruim.
Pelo menos do ponto de vista de quem acredita que irá ganhar alguma coisa com a
filosofia. Porque você joga mais do que vence. E jogar mais aqui não significa
apenas mais movimentação, mas sim altas apostas e expectativas que devem ser
acompanhadas de muito esforço e que trarão, ao fim e ao cabo, poucos
resultados. Quando digo isto lembro apenas que você não terá vitória e nem
vitória fácil em filosofia. Você terá prazer, emoções, ideias, encontros e
desencontros, aproximações e afastamentos, problemas e questões a resolver e a
rever e isso nunca pára, nunca acaba.
Ou
você se desgraça na entrada, ou no meio da estrada ou no final. Já chamei
muitos filósofos de desgraçados, mas creio que o mais correto seria
desencaminhados, porque muitos deles ainda tem graça e ainda nos deixam sorrir
ao ler e descobrir suas idéias. Mas o que mais ocorre é que nós nos perdemos
com eles e eles também se perdem. Você sempre perde alguma coisa e muda em
alguma coisa e o balanço e a avaliação é sempre provisória. A conta não fecha.
E no final tudo se perde no desconhecido. Isto é, no final, tudo se
desencaminha de novo.
E tal como bem compreendeu Albert
Camus (1913-1960), a pedra arduamente empurrada ladeira acima volta a descer
ladeira a baixo e terá que ser levada de novo arduamente até o cume para voltar
a rolar mais uma vez e sucessivamente até o infinito ou algum tipo de fim dos
tempos que encerre esta aventura do mundo. Um detalhe é que deverá haver
substituição e que muito poucos elevam a pedra até o cume da montanha duas
vezes na vida. Então uma outra pessoa terá que se encarregar e se ocupar dela,
porque o da última elevada se perdeu ou no caminho, ou no topo da montanha ou
foi esmagado pela pedra e restou despedaçado e desgraçado ao sopé de uma imagem
que o mito de Sísifo nos apresenta claramente. Assim, a filosofia nos leva a um
tipo de desencaminhamento.
Ler Martin Heidegger (1889-1976),
nos dá uma mostra disto, pois quando crê que compreendeu o texto logo em
seguida surge uma certa obscuridade que parece colocar tudo a perder. E isso
ocorre com ele em diversas dimensões. Na interpretação da sua biografia, da sua
obra e no alcance e influência de suas ideias. A obscuridade de Heidegger me
parece até perdoada, mas o resto não.
Heidegger como interprete de
outros é muitas vezes assustador. O seu trabalho de 1924 sobre O Sofista de
Platão, por exemplo, me atrai muito por seu detalhamento de plano e também por
anteceder Ser e Tempo, mas me dá medo, confesso. Já o texto dele Kant e o
problema da Metafísica, me pareceu
sempre um dos textos mais interessantes que já li de interpretação de um autor
e de Kant. Aliás, Heidegger sempre consegue ler os outros filósofos e lavrar
pedras novas em seus terrenos próprios e avistar aquilo que poucos avistam em
suas obras.
Porém, seguindo adiante, ele é
deverás surpreendente e é impressionante para mim quando chego a compreender
algumas de suas idéias presentes em suas próprias obras mais acessíveis e
traduzidas para o português. Cito aqui e recomendo o volume da coleção Os
Pensadores com as traduções de Ernildo Stein de diversos textos, as edições e
traduções de Ser e Tempo, as diversas edições das Editoras Vozes, Martins
Fontes e outras.
Quando chego em suas leituras dos
clássicos - além de Kant, Descartes e Platão com os quais parece dialogar e
debater em total e absoluta igualdade - e onde parte de seu pensamento se
resolve por assim dizer na relação com o pensamento de outros ( Nietzsche,
Hölderlin (se eu não botar trema aqui minha mãe me bate) e Heráclito, por
exemplo, são assombrosos) e, também, algo do seu estilo e tratamento
persistente de seus textos que aprece naquela prosa miudinha dele que vai
cerzindo e costurando o texto quase milimetricamente e muito minuciosamente e
algo que muitas vezes nos tira a paciência, porque cansa ver e ler alguém
ruminando e atacando por horas, páginas e até mesmo meses e mais de uma obra
uma espécie de cápsula de idéias.
Mas ele, é preciso reconhecer,
não dá pulos, é muito persistente e focado, apesar da tal obscuridade eventual
- que pode significar apenas que você não consegue pensar na terminologia dele
ou no seu jargão como diria Adorno - não é mesmo um filósofo saltitante, porém
de vez em quando vai nos levando naquele ruminar e de repente nos chuta para
dentro de um abismo. De onde, no mais das vezes, não sabemos como sair ou
simplesmente abandonamos a obra e o seu pensar sobre aquilo e tiramos umas
férias da metafísica. Aliás, creio que ele deve ser o teste por excelência de
quem pretende pensar a metafísica sem cordões, redes de salvamento e orientação
espiritual. A fase poética dele eu não leio não. Confesso me sentir bem
inferior a ele em sua leitura de poesia.
Tenho até pensado que se a sorte
me der mais tempo de vida vou me dedicar cada vez mais a leitura de clássicos
da literatura e da poesia com alguns filósofos e filósofas. Mas devo confessar
que tenho preferido filósofos e obras mais obscuras, nebulosas e intrigantes,
ainda que mantenha minha intuição fixa na obra de Wittgenstein desde a
graduação e, em especial, na Da Certeza como tarefa de leitura e investigação
de alguns dez anos para cá.
Até a crítica da técnica em
Heidegger, eu acompanho numa boa, aquelas obras introdutórias sobre o que é a
metafisica e a filosofia são ótimas para treinar nossa concentração e também
para testar nosso raciocínio de leitor, mas confesso que tenho muita
curiosidade sobre seus textos mais misteriosos e tudo que ele consegue fazer
quando mergulha nos pré-socráticos. (Os textos dele, Nietzsche e Hegel e outros
como Jean Beauferet em comentários sobre os pré-socráticos naquele volume da
coleção Os Pensadores são muito recomendáveis aos estudantes que queiram
entender a intrincada trama entre um autor e as sucessivas abordagens dos
pósteros.)
Em biblioteca de um mestre nosso
- a quem devo bem mais do que posso pagar em uma citação - olhei algumas poucas
imagens de fac-similes dos manuscritos dele - hoje você pode ler isto por aqui,
só que texto é em alemão é claro - e aquilo me deixava espantado também.
Imagina o cara dar um passeio na floresta negra pela manhã, voltar para casa
sentar e escrever ou reescrever 100 páginas em um dia. É no dia seguinte
refazer tudo e revisar tudo e concluir alguma etapa do seu manuscrito até a
madrugada. Imagine que ele fazia isto todos os dias...
A gente pode imaginar a
intrincada trama de um autor como Heidegger em sua obra completa e aprender a
respeitar ele muito mais pelo seu caminhar e desencaminhar próprio. E eu creio
que todo bom Dr. ou Dra., Mestre ou Mestra, Especialista, Bacharel ou Formando,
ou seja, qualquer acadêmico mais dedicado o faz ou pode fazer. Olhar para obra
inteira de um cara destes a medida que vai lendo o que pode, compreendendo mais
ou menos e seus textos e a medida que vai avançando, parece bem começar a
desenhar um quadro ou esquema em uma certa panorâmica e se põe a perceber, com
a ajuda de outros interpretes e introduções, as ligações entre todos os textos,
as chegadas de idéias novas, as idas e vindas de velhos problemas e também as
tais influências e as revisões de questões que eles perseguem. Nós mesmos,
passados alguns anos voltamos e devemos voltar sobre muitas coisas, como se
houvéssemos esquecido algo, lido muito rapidamente ou passado por cima. Para
mim, o chamado segundo Heidegger parece tentar romper com tudo isto.
Eu mesmo confesso estar mais interessado
em literatura ultimamente, por um impulso que me parece semelhante. A busca de
um pensamento que se conecte com os mistérios, escolhas, acidentes, gostos,
compromissos e necessidades da vida. Não consigo mais pensar filosoficamente de
forma a separar reflexões filosóficas de questões objetivas de minha existência
e sua dimensão passageira e incerta. E que não é bem uma fuga, mas talvez uma
contra fuga. Estar mais ocupado com os problemas da vida e suas diversas
versões, suas ficções e narrativas e não tanto em busca de uma teoria de
totalidade que responda às velhas questões de forma basilar ou conceitualmente
explêndida. Me parece que buscamos conceitos de forma diferente quando damos
estes passos. Hoje disse que quando não possuímos conceitos, não podemos
ensinar nada e que então precisamos construir conceitos ou buscar conceitos
prontos em alguém, mas eu creio que as vezes um conceito inacabado e incompleto
é muitas vezes mais interessante. ( Sei e lembro do probleminha dos juízos
sintéticos a priori aqui.)
Minha tergiversação aqui, por
exemplo, está ligada a questão mais fundamental de porque lemos estes caras ou
estas abordagens deles? Porque é um jogo de soma zero mesmo e é por isto mesmo,
assim me parece, que nós apostamos alto e o valor da aposta é justamente o
nosso problema. Todo mundo sabe que jogadores perdem muito dinheiro, assim como
filósofos perdem muito tempo até encontrarem um prêmio que poderá adiante ser
impugnado, refutado ou superado. Assim, a nossa força é muito dispendida na abertura
de uma grande dificuldade pedreira acima e adentro. Mas nós parecemos escolher
sempre a pedra mais dura para cortar, cavar e carregar. Eu diria, para lembrar
minha tia que me fez pensar por meses nesta questão: nós não procuramos o
caminho mais curto entre um ponto e outro não. E até mesmo os mais
disciplinados escondem grandes e tortuosas perdas de tempo.
A clareza aparece nas exibições,
mas a fabricação ou construção de conceitos deve ser muito pior do que fabricar
linguiças. Bismarck, por exemplo, é um inocente neste ramo de atuação. O fardo
mais pesado é o nosso escolhido, mas é justamente isto que acaba por nos
definir na filosofia e não em outras especialidades tão pesadas também, mas
cujo tereno e lavras parecem estar em boa ordem, ainda que não existam só
certezas nestas outras ocupações.
Eu reeditei o texto duas vezes
até chegar nesta nota que o ampliou e tentei corrigir algo de suas imperfeições
porque quando escrevi a primeira versão estava muito sonolento, por exemplo, e
deixei fora certos detalhes do meu pensamento sobre Heidegger, a filosofia e
nossos desencaminhamentos que me parece importante também.
Se alguém ler isto aqui - este
arrazoado posto assim nesta desordem toda - e gostar, recomendo que fuja da
filosofia e não perca tempo com ela e vá ler algum livro de poesia ou decorar
as obras completas dos Beatles em versões inglesas, francesas e portuguesas,
que perderá menos tempo do que tentando colocar as suas ideias em ordem, ou
entender a ordem das minhas. Se alguém se aborrecer com esta recomendação
provocadora, recomendo que não faça nada o que garante nenhuma perda de nenhum
ganho também. E quem não gostar que faça filosofia, ou curse tal coisa para
provar para si mesmo que é capaz de se organizar melhor e pensar melhor.
Um abraço...
Em um comentário inoportuno
talvez, ao meu colega querido Renato Duarte Fonseca que comenta a dificuldade e
obscuridade nas leituras das escrituras de Heidegger.
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