A VITIMIZAÇÃO MASCARADA DE
LIBERDADE
Devemos sempre tentar quebrar o
jogo da vitimização nos processos e nas relações pessoais. E a vitimização
também pode começar por uma ilusão de liberdade acompanhada de uma grande
tentativa de controle do outro. A ilusão de liberdade transfere para o outro a
culpa da sua frustração e do seu próprio medo de envolvimento. A tentativa de
controle se consagra, ao final, na punição do outro.
É preciso perceber essa dinâmica.
Essa talvez seja uma, entre outras formas, de se libertar da dor e da repetição
da mesma dor ou sofrimento nas relações humanas. Isso envolve romper essa
espécie de compulsão a um comportamento quase automatizado ou/e naturalizado
que repete uma espécie de mania.
Essa compulsão evidencia dois
mecanismos muito interessantes e que são combinados. Um de ação, que consiste
em fazer as mesmas coisas que já não deram certo em outras vezes. O outro, em
repetir os mesmos discursos sobre estas experiências. Essa junção entre ação e
discurso repetido deixa apenas mais fácil ao discurso de vitimização a condição
de passividade: de um lado você acredita que sofreu algo, do outro, a ilusão de
que está se libertando disso, ainda que repetindo o mesmo discurso do sujeito
que era passivo e vítima da circunstância.
Essa quebra da compulsão não se
traduz apenas em abdicar do discurso da vitimização, como se a partir dele ou
do abandono dele, você te tornasse livre por uma expressão de consciência do
que você mesmo criou. Para sair desse labirinto, a quebra desse mecanismo é
fundamental, na ação e na reação às circunstâncias e, assim, impedir a si mesmo
de voltar a esse pensamento recorrente.
Quebrar ou não aceitar o jogo de
culpa envolve, ainda, fazer certa exclusão dos elementos de um balanço de
responsabilidades com o outro, em que é reapresentado o mesmo complexo, esquema
ou sistema de avaliação. Para isso, é essencial abandonar o excesso de
condescendência com o outro e consigo mesmo. Ou o jogo de empurra-empurra da
culpa perseverará e você nunca vai fechar o processo ou equilibrar as relações
de forma justa e sensata.
Inclusive, precisamos aprender a
negar que você e essas pessoas são vítimas dos astros, das cartas, dos deuses,
dos pais e mães e do mundo. Em especial, com aquelas pessoas que já têm o
privilégio de realmente pensarem nas suas vidas e fazerem suas próprias
escolhas. Aquelas que, por pior que se sintam, têm uma vida repleta de
escolhas, em um patamar superior às demais. Claro está que as pessoas que tem
esse privilégio nem sempre são aquelas que alegam possuir esse privilégio.
Porque mesmo argumentar nesse sentido pode ter por base apenas a fantasia de
que se é livre nas escolhas porque se possui um discurso que combina com elas,
e que promove a legitimação dessas escolhas.
Pensemos na quantidade gigantesca
de pessoas que não têm essa liberdade. Quando fazemos isso, percebemos o quão
pueril e infantil é o queixume ou muxoxo de certas pessoas. Daí que eu diria
que a análise ou psicanálise foi criada para dar um start nesse processo, mas
que hoje temos outras formas de liberação dessa culpa, dessa vitimização, desse
tipo de sofrimento.
O crucial é reconhecer o problema
e pedir ajuda, mais que isso, se tornar completamente responsável pelo que
ocorre antes disso e após a crise. Não se trata de instaurar uma grande culpa
ou pecado, porém de construir a compreensão dos dispositivos de transferência e
de pseudo-libertação para não repetir eles. Não se trata da abertura de um
processo do santo oficio em que as culpas serão distribuídas e desviadas para
que se abra, assim, um justo relatório em sua narrativa e um grande purgatório,
em suas ações ou decisões, de punição de si mesmo ou do outro.
É preciso também
ser responsável pelas nossas próprias interpretações ou explicações dos fatos e
dos sentimentos e pensamentos. São escolhas nossas. A adesão a esta ou outra
abordagem deve ser consciente e reflexiva. Por fim, nem você mesmo merece isso,
muito menos o outro.
Obs.: tem uma tradição muito
grande que chama as manifestações desse tipo de processo de histéricas. Eu acho
um nome muito feio para algo que parece apenas uma grande confusão entre os
nossos desejos e ideias e a nossa instabilidade e insegurança comum em tempos
líquidos.
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