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domingo, 20 de abril de 2014

CEM ANOS DE SOLIDÃO E MIL ANOS DE SAUDADE: GRANDE GABO!!!


Tomo a liberdade de escrever sobre este grande tema e obra e o seu autor que atinge a eternidade, não porque ele me provoca hoje, mas porque já me provocou há muito tempo atrás e o faço, então, por uma certa gratidão ruidosa. Se você pegar pela primeira vez entre as mãos a obra Cem Anos de Solidão e ler dez páginas ou dez linhas e continuar lendo é porque valeu a pena, ou seja, é porque o seu motor deu o arranque necessário ao seu próprio imaginário. Isso, entretanto, é preciso reconhecer não acontece com todos. Porém, penso que é uma experiência literária muito importante e que é recomendável ou será um gesto muito preciso se começar um dia, posto que a partir destes dias e pela dimensão dos acontecimentos e a grande repercussão da morte percebe-se  a grandeza e eternidade do autor. Ainda que esta apreciação dependa de nosso juízo solitário e de nossa ruminação. 

Esta obra, que é mais importante do que qualquer coisa que se possa escrever sobre ela, começa assim:

“MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores,dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o imã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.” José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos de modo que trocou o seu jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguaráni sua mulher, a que contava com aqueles animais para aumentar o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar a casa”, respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram um esqueleto calcificado que trazia pendurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher. Em março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculos ao alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Dentro em pouco o homem poderá ver acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa.“ (Cem Anos de Solidão, PP.7-8.)

Nestas primeiras palavras de seu romance já se vê como Gabo SUSTENTAVA NOSSOS SONHOS QUANDO NOS ERA PROIBIDO SONHAR...para quem não crê em mim, ou quem não me entende, ou para quem não acredite que Macondo exista recomendo que continue a leitura pois descobrirá um continente através desta obra...Enquanto eu sustento aqui que esta é uma obra de quando a literatura era o melhor refúgio de nossa imaginação...ou o melhor refúgio de todos os sonhadores latino-americanos sufocados pelos regimes ditatoriais vigentes nos anos 69, 79 e 80...

A morte de Gabriel Garcia Marquez aos 87 anos, por outro lado e aspecto, é colhida em um ambiente completamente diferente e me parece já um dos maiores fenômenos de discussão cultural e agitação cultural que eu já assisti na rede social. E há que se fazer justiça com este homem: ele escreveu como poucos e talvez seja um dos primeiros escritores a cumprir a receita mais integral de escritor e leitor que conheço. De bula de remédio a um romance, da matéria jornalística a discurso político, de artigo interpretativo a ensaio criativo e inovador. E construiu um estilo e um certa liberdade formal e material, com rigor e precisão, a qual quase todos nós que o sucedemos e a partir de suas letras nos inspiramos, seguimos.   

Mas o sucesso post mortem dele me parece ser não maior, mas fazer par com o seu sucesso em vida, pelo menos na rede social que eu freqüento e no meu círculo de amigos, conhecidos, familiares e alunos, colegas, ex-alunos e ex-alunas que estende arco em todo o Brasil e fora dele. Parece que sua morte precipitou um ataque do anjo, tocando as trombetas e anunciando  não um fim do mundo, cem anos de solidão aos malfadados, mas sim um novo período de trocas e de diálogos. No twitter a hashtag é #gabriel. E tem de tudo, mas nas demais esferas das redes sociais não há página de jornal, ou blog, ou link que não tenha dito algo sobre ele e, na maior parte das vezes algo de qualidade e bem superior a qualquer coisa que eu possa ousar dizer aqui.

E isto tem gerado diversos tipos de discussões sobre a qualidade das obras de Gabriel, mas também sobre a relação entre estas obras e a história da América Latina, as posições políticas de Gabriel e ainda mais as relações entre a obra dele e o momento atual. Eu li muita coisa dele, mas reconheço em Cem Anos a opus mater dele, ou seja, a maior obra que ele escreveu e talvez seja de fato como diz Neruda a maior obra de literatura em língua espanhola após Cervantes.

Já José Saramago parece dizer algo que todos nós sentimos de certa forma ao ler estas páginas: “O primeiro livro seu que me veio às mãos foi Cem Anos de Solidão e o choque que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta páginas. Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração, e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus olhos.”  

Eu devo confessar que meu contato com ele foi altamente influenciado por uma impressão fantástica e que à primeira vista despertou meu imaginário pela capa do seu livro Cem Anos de Solidão, na edição brasileira da José Olímpio, sim, aquela capa com um mapa da mão humana para uso de quiromantes, mais aquelas duas cartas do Tarot, a número dez, A Roda da Fortuna, e a número quinze, O Diabo, me atraíram a atenção de forma inesquecível na prateleira de uma estudante de arquitetura no início dos anos 80. Além disso, outra que me bate a minha grata coincidência, quando fui folheá-lo me dei por conta que o livro tinha 365 páginas escritas, ou seja que daria para ler ele calmamente por um ano, numa dose de uma página ao dia. E naquela época eu cultivava razoável curiosidade por artes ocultas, divinatórias, profecias, mistérios, sincronicidade, símbolos, números, desígnios superiores e fortíssima atração por qualquer uso da nossa imaginação que possa nos levar ao maravilhoso e ao insondável. Ou seja, não foi uma fase marcada pelo realismo não e, além disso, combinava na minha dieta mental e literária certo engajamento político.



Alguns leitores de Gabo nesta hora enunciaram que viam algo melhor em outras obras dele, mas eu mantenho minha predileção por Cem Anos. É preciso relativizar e refazer certas conexões para explicar isto. Bem, sabemos que cada um lê aquela obra à sua própria forma. Sabemos que nem todos tem algum  gosto por imaginar aquele mundo de fantasia, mas eu sempre lembro da prosa fantástica a partir de dois vieses. Um deles é em que sentido ela nos leva para outro mundo o outro é como ela dá narrativa às coisas deste mundo de uma forma diferente e para as quais as palavras de que dispomos ainda não estão com a gente. Eu admiro muito este livro porque a leitura dele foi feita num tempo em que muitas coisas tinham que ser ditas, sonhadas, escritas, cantadas, versejadas e poetizadas por metáforas, porque não se podia dizer diretamente quase nada sobre o que vivíamos. Os discursos políticos eram clandestinos naquele período, eram considerados perniciosos e um bom bocado da prosa se centrava em outras coisas para evitar a acusação de subversão. Aqui no Brasil era assim e na América Latina praticamente inteira foi também deste modo. Então a fama e o prestígio de um escritor como Borges, Octavio Paz, Graciliano Ramos, Julio Cortazar, Érico Verissimo e muitos  outros raramente era acompanhada de uma abordagem de sua posição política. As posições políticas precisavam ser buscadas nas entrelinhas, num detalhe de uma entrevista ou através de um gigantesco exercício de leitura de uma prosa. Era uma conjuntura histórica difícil, onde toda a esquerda latino-americana sofria o revés da Guerra Fria e das trevas que recaíram sobre nós nos anos 60, 70 e 80...Mas isso deve ser relativizado também neste aspecto, porque o que marcará a obra de Gabriel não é tanto sua posição política ou sua extrema qualidade literária, mas provavelmente o diálogo destes dois componentes com o seu tempo, com o que todos nós vivíamos na América do Sul e Central nestes anos.
Quando você pega um disco do Chico Buarque dos anos 70, ou a poesia de Neruda dos anos 60 percebe que naquela época família, autoridade, fé e poder na América Latina tinham suas restrições de abordagem... E em praticamente tudo que foi escrito, cantado ou pintado naquele período que vale a pena ser visto, ouvido ou lido , há esta marca indelével do viés, do contorno, de um certo drible ou burla necessária à realidade para confrontá-la. Naquela época a fantasia não era um recurso de originalidade, mas sim um instrumento de proteção, um mecanismo de defesa consciente perante a repressão, censura, admoestação e provável perseguição. E é bom que se diga: muitos não conseguiram burlar o sistema repressivo generalizado em toda a América latina e a conta de mortos, feridos, torturados, perseguidos e violentados e censurados do período é arrasadora. A conta de obras destruídas, de mãos decepadas, de línguas mutiladas e a arrasadora violência que se abateu sobre muitos, milhares e milhões não é pequena. Então esta dimensão de Gabriel Garcia Marquez fazer frente e representar o sonho de uma outra realidade possível deve ser feita e sopesada sim. E quando ele conquista o Nobel em 1982 para a América Latina oprimida foi praticamente como a libertação do Mandiba ou Mandela para a África do Sul. E é bom que se diga, o Nobel de Gabo marca para mim, em especial um movimento de reação não somente na superestrutura, mas também nas ruas. É quase da mesma época (1980) a gloriosa reação dos jovens militantes sociais que sonharam, planejaram e executaram um ato político no qual impediram a inauguração da Praça Argentina pelo ditador Jorge Rafael Videla em Porto Alegre.  

"Você não gosta de mim, mas sua filha gosta..." Cantava Chico para determinado General cuja filha – e eu poderia dizer aqui “filhas” – gostavam das canções de Chico. Eu me deliciava ao máximo ao ler Cem Anos, pela metáfora e pela fantasia engraçada do nosso mundo latino e trágico....e porque ele mostrava nos ápices de distorção da realidade, quase como a guitarra de Jimmi Hendrix distorcia as notas e tamburilava as notas para além de um cânone com pura invenção, assim gabo mostrava que haveria um espaço para nossa melodia ou nossa ousadia nas teclas de uma máquina de escrever. Era, então, ao ler ele, perceber que era possível sonhar.  

Sim, mas olhando para o todo da obra dele superficialmente em sua cronologia é que percebemos que são livros de tempos históricos e políticos diferentes. Mas ele enfatizou que toda a sua obra versava sobre a solidão e que a solidão era seu tema principal. Fiquei a pensar como isto vira algo universal e conclui que a única possibilidade disto é tocar em todas as nossas almas, não por singularidade ou originalidade, mas pela velha e boa verossimilhança como diria Aristóteles. Gabo, para mim, não era mais genial do que Borges, mas possuía um gênio que foi capaz de ser o escritor da América Latina de uma dimensão superior, pois foi tal coisa quando a América Latina precisava muito disto. E isto, eu suponho, devia ter sido uma coisa muito consciente para ele. Não se tratava mesmo de uma sabedoria dissimulada. Me parece muito em entrevistas e em suas ações que Gabo era autoconsciente de seu papel histórico além  de literário. Isso quer dizer que ele tinha nas suas letras e escrituras algo da alma de todos e não somente seu próprio gênio. E escritores assim ultrapassam a condição de gênios e se tornam lideres e fundadores, pois tem em si mais que a originalidade, tem a familiaridade e a similiariedade em comum com seus contemporâneos e conterrâneos de um vasto continente que quer se libertar para ser real em seus sonhos, fantasias e que quer certas possibilidades que outros gostariam de impedir. Por isto, a sua escritura é fundamentalmente um ato político e que nos abre um futuro para a imaginação de todos nós.

Ontem estava lendo um texto sobre as 1 milhão e 500 impressões de Cem Anos no Brasil e me dei por conta que todos nós que o lemos viramos de alguma forma escritores de nosso tempo e de nossas gerações...portanto o alcance deste livro na popularização da leitura, na disseminação da escritura não pode ser subestimado...e mesmo os professores de filosofia ou lógica também o são à sua forma...então, a passagem dele marca algo de fato grandioso para a cultura da América Latina, cuja grandeza nos desafia a compreensão e a interpretação...e tal tarefa não se termina aqui.

Gabriel nos parte e deixa muita coisa boa para ler e reler...e parece que todos que o leram escrevem, seu Gabriel....foi, então, mais um parteiro neste mundo...aqui fecho um texto da minha lavra e mão...nem numa grande profecia, isso seria previsto...que a literatura de alta qualidade continue gerando mais escritores e mais ousadias nas palavras...e assim se termina sua obra, na página 364, no penúltimo dia de minha leitura...

“Macondo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Porém, antes de chegar ao verso final já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra.”

(Cem Anos de Solidão, p. 364)

Me é muito emocionante ler isto de novo, me parece que acendeu uma estrela na minha cabeça quando eu li isso pela primeira vez...e agora tal estrela que nunca se apagou desde lá brilha muito mais...

Muito obrigado Gabo!
No dia do índio, 19 de abril de 2014...


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