Tomo a liberdade de escrever sobre este grande tema e obra e o seu
autor que atinge a eternidade, não porque ele me provoca hoje, mas porque já me
provocou há muito tempo atrás e o faço, então, por uma certa gratidão ruidosa. Se
você pegar pela primeira vez entre as mãos a obra Cem Anos de Solidão e ler dez
páginas ou dez linhas e continuar lendo é porque valeu a pena, ou seja, é
porque o seu motor deu o arranque necessário ao seu próprio imaginário. Isso,
entretanto, é preciso reconhecer não acontece com todos. Porém, penso que é uma
experiência literária muito importante e que é recomendável ou será um gesto
muito preciso se começar um dia, posto que a partir destes dias e pela dimensão
dos acontecimentos e a grande repercussão da morte percebe-se a grandeza e eternidade do autor. Ainda que esta
apreciação dependa de nosso juízo solitário e de nossa ruminação.
Esta obra,
que é mais importante do que qualquer coisa que se possa escrever sobre ela,
começa assim:
“MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel
Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou
para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e
taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam
por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O
mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se
precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de
ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande
alvoroço de apitos e tambores,dava a conhecer os novos inventos. Primeiro
trouxeram o imã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, que se
apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública
daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da
Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o
mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros
caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos
tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam
onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás
dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o
cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.” José Arcadio
Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza,
e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela
invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem
honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava,
naquele tempo, na honradez dos ciganos de modo que trocou o seu jumento e um
rebanho de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguaráni sua mulher,
a que contava com aqueles animais para aumentar o raquítico patrimônio doméstico,
não conseguiu dissuadi-lo. “Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar
a casa”, respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o
acerto das suas conjeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo
do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro
de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do
século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo
interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando
José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua expedição conseguiram
desarticular a armadura, encontraram um esqueleto calcificado que trazia
pendurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher. Em
março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculos ao alcance e uma lupa do
tamanho de um tambor, que exibiram como a última descoberta dos judeus de
Amsterdam. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo de
alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento cinco reais, o povo se
aproximava do óculo e via a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as
distâncias”, apregoava Melquíades. “Dentro em pouco o homem poderá ver acontece
em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa.“ (Cem Anos de Solidão, PP.7-8.)
Nestas
primeiras palavras de seu romance já se vê como Gabo SUSTENTAVA NOSSOS SONHOS
QUANDO NOS ERA PROIBIDO SONHAR...para quem não crê em mim, ou quem não me
entende, ou para quem não acredite que Macondo exista recomendo que continue a
leitura pois descobrirá um continente através desta obra...Enquanto eu sustento
aqui que esta é uma obra de quando a literatura era o melhor refúgio de nossa
imaginação...ou o melhor refúgio de todos os sonhadores latino-americanos
sufocados pelos regimes ditatoriais vigentes nos anos 69, 79 e 80...
A morte de Gabriel
Garcia Marquez aos 87 anos, por outro lado e aspecto, é colhida em um ambiente
completamente diferente e me parece já um dos maiores fenômenos de discussão
cultural e agitação cultural que eu já assisti na rede social. E há que se fazer
justiça com este homem: ele escreveu como poucos e talvez seja um dos primeiros
escritores a cumprir a receita mais integral de escritor e leitor que conheço.
De bula de remédio a um romance, da matéria jornalística a discurso político,
de artigo interpretativo a ensaio criativo e inovador. E construiu um estilo e um
certa liberdade formal e material, com rigor e precisão, a qual quase todos nós
que o sucedemos e a partir de suas letras nos inspiramos, seguimos.
Mas o sucesso
post mortem dele me parece ser não maior, mas fazer par com o seu sucesso em vida,
pelo menos na rede social que eu freqüento e no meu círculo de amigos,
conhecidos, familiares e alunos, colegas, ex-alunos e ex-alunas que estende
arco em todo o Brasil e fora dele. Parece que sua morte precipitou um ataque do
anjo, tocando as trombetas e anunciando não
um fim do mundo, cem anos de solidão aos malfadados, mas sim um novo período de
trocas e de diálogos. No twitter a hashtag é #gabriel. E tem de tudo, mas nas
demais esferas das redes sociais não há página de jornal, ou blog, ou link que
não tenha dito algo sobre ele e, na maior parte das vezes algo de qualidade e
bem superior a qualquer coisa que eu possa ousar dizer aqui.
E isto tem
gerado diversos tipos de discussões sobre a qualidade das obras de Gabriel, mas
também sobre a relação entre estas obras e a história da América Latina, as
posições políticas de Gabriel e ainda mais as relações entre a obra dele e o
momento atual. Eu li muita coisa dele, mas reconheço em Cem Anos a opus mater
dele, ou seja, a maior obra que ele escreveu e talvez seja de fato como diz Neruda
a maior obra de literatura em língua espanhola após Cervantes.
Já José
Saramago parece dizer algo que todos nós sentimos de certa forma ao ler estas
páginas: “O primeiro livro seu que me veio às mãos foi Cem Anos de Solidão e o
choque que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta
páginas. Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração,
e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de
orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus olhos.”
Eu devo confessar
que meu contato com ele foi altamente influenciado por uma impressão fantástica
e que à primeira vista despertou meu imaginário pela capa do seu livro Cem Anos
de Solidão, na edição brasileira da José Olímpio, sim, aquela capa com um mapa da
mão humana para uso de quiromantes, mais aquelas duas cartas do Tarot, a número
dez, A Roda da Fortuna, e a número quinze, O Diabo, me atraíram a atenção de
forma inesquecível na prateleira de uma estudante de arquitetura no início dos
anos 80. Além disso, outra que me bate a minha grata coincidência, quando fui
folheá-lo me dei por conta que o livro tinha 365 páginas escritas, ou seja que
daria para ler ele calmamente por um ano, numa dose de uma página ao dia. E
naquela época eu cultivava razoável curiosidade por artes ocultas,
divinatórias, profecias, mistérios, sincronicidade, símbolos, números, desígnios
superiores e fortíssima atração por qualquer uso da nossa imaginação que possa
nos levar ao maravilhoso e ao insondável. Ou seja, não foi uma fase marcada
pelo realismo não e, além disso, combinava na minha dieta mental e literária certo
engajamento político.
Alguns
leitores de Gabo nesta hora enunciaram que viam algo melhor em outras obras dele,
mas eu mantenho minha predileção por Cem Anos. É preciso relativizar e refazer certas
conexões para explicar isto. Bem, sabemos que cada um lê aquela obra à sua
própria forma. Sabemos que nem todos tem algum
gosto por imaginar aquele mundo de fantasia, mas eu sempre lembro da
prosa fantástica a partir de dois vieses. Um deles é em que sentido ela nos
leva para outro mundo o outro é como ela dá narrativa às coisas deste mundo de
uma forma diferente e para as quais as palavras de que dispomos ainda não estão
com a gente. Eu admiro muito este livro porque a leitura dele foi feita num
tempo em que muitas coisas tinham que ser ditas, sonhadas, escritas, cantadas,
versejadas e poetizadas por metáforas, porque não se podia dizer diretamente quase
nada sobre o que vivíamos. Os discursos políticos eram clandestinos naquele
período, eram considerados perniciosos e um bom bocado da prosa se centrava em
outras coisas para evitar a acusação de subversão. Aqui no Brasil era assim e
na América Latina praticamente inteira foi também deste modo. Então a fama e o
prestígio de um escritor como Borges, Octavio Paz, Graciliano Ramos, Julio
Cortazar, Érico Verissimo e muitos outros raramente era acompanhada de uma
abordagem de sua posição política. As posições políticas precisavam ser
buscadas nas entrelinhas, num detalhe de uma entrevista ou através de um
gigantesco exercício de leitura de uma prosa. Era uma conjuntura histórica difícil,
onde toda a esquerda latino-americana sofria o revés da Guerra Fria e das
trevas que recaíram sobre nós nos anos 60, 70 e 80...Mas isso deve ser relativizado
também neste aspecto, porque o que marcará a obra de Gabriel não é tanto sua
posição política ou sua extrema qualidade literária, mas provavelmente o diálogo
destes dois componentes com o seu tempo, com o que todos nós vivíamos na América
do Sul e Central nestes anos.
Quando você
pega um disco do Chico Buarque dos anos 70, ou a poesia de Neruda dos anos 60
percebe que naquela época família, autoridade, fé e poder na América Latina
tinham suas restrições de abordagem... E em praticamente tudo que foi escrito,
cantado ou pintado naquele período que vale a pena ser visto, ouvido ou lido ,
há esta marca indelével do viés, do contorno, de um certo drible ou burla
necessária à realidade para confrontá-la. Naquela época a fantasia não era um
recurso de originalidade, mas sim um instrumento de proteção, um mecanismo de defesa
consciente perante a repressão, censura, admoestação e provável perseguição. E
é bom que se diga: muitos não conseguiram burlar o sistema repressivo generalizado
em toda a América latina e a conta de mortos, feridos, torturados, perseguidos
e violentados e censurados do período é arrasadora. A conta de obras
destruídas, de mãos decepadas, de línguas mutiladas e a arrasadora violência
que se abateu sobre muitos, milhares e milhões não é pequena. Então esta dimensão
de Gabriel Garcia Marquez fazer frente e representar o sonho de uma outra
realidade possível deve ser feita e sopesada sim. E quando ele conquista o Nobel
em 1982 para a América Latina oprimida foi praticamente como a libertação do
Mandiba ou Mandela para a África do Sul. E é bom que se diga, o Nobel de Gabo
marca para mim, em especial um movimento de reação não somente na superestrutura,
mas também nas ruas. É quase da mesma época (1980) a gloriosa reação dos jovens
militantes sociais que sonharam, planejaram e executaram um ato político no
qual impediram a inauguração da Praça Argentina pelo ditador Jorge Rafael
Videla em Porto Alegre.
"Você não
gosta de mim, mas sua filha gosta..." Cantava Chico para determinado
General cuja filha – e eu poderia dizer aqui “filhas” – gostavam das canções de
Chico. Eu me deliciava ao máximo ao ler Cem Anos, pela metáfora e pela fantasia
engraçada do nosso mundo latino e trágico....e porque ele mostrava nos ápices
de distorção da realidade, quase como a guitarra de Jimmi Hendrix distorcia as
notas e tamburilava as notas para além de um cânone com pura invenção, assim
gabo mostrava que haveria um espaço para nossa melodia ou nossa ousadia nas
teclas de uma máquina de escrever. Era, então, ao ler ele, perceber que era possível
sonhar.
Sim, mas olhando
para o todo da obra dele superficialmente em sua cronologia é que percebemos
que são livros de tempos históricos e políticos diferentes. Mas ele enfatizou
que toda a sua obra versava sobre a solidão e que a solidão era seu tema
principal. Fiquei a pensar como isto vira algo universal e conclui que a única
possibilidade disto é tocar em todas as nossas almas, não por singularidade ou
originalidade, mas pela velha e boa verossimilhança como diria Aristóteles. Gabo,
para mim, não era mais genial do que Borges, mas possuía um gênio que foi capaz
de ser o escritor da América Latina de uma dimensão superior, pois foi tal
coisa quando a América Latina precisava muito disto. E isto, eu suponho, devia
ter sido uma coisa muito consciente para ele. Não se tratava mesmo de uma
sabedoria dissimulada. Me parece muito em entrevistas e em suas ações que Gabo
era autoconsciente de seu papel histórico além de literário. Isso quer dizer que ele tinha
nas suas letras e escrituras algo da alma de todos e não somente seu próprio
gênio. E escritores assim ultrapassam a condição de gênios e se tornam lideres
e fundadores, pois tem em si mais que a originalidade, tem a familiaridade e a
similiariedade em comum com seus contemporâneos e conterrâneos de um vasto
continente que quer se libertar para ser real em seus sonhos, fantasias e que
quer certas possibilidades que outros gostariam de impedir. Por isto, a sua
escritura é fundamentalmente um ato político e que nos abre um futuro para a
imaginação de todos nós.
Ontem estava lendo um texto sobre as 1
milhão e 500 impressões de Cem Anos no Brasil e me dei por conta que todos
nós que o lemos viramos de alguma forma escritores de nosso tempo e de nossas
gerações...portanto o alcance deste livro na popularização da leitura, na
disseminação da escritura não pode ser subestimado...e mesmo os professores de
filosofia ou lógica também o são à sua forma...então, a passagem dele marca
algo de fato grandioso para a cultura da América Latina, cuja grandeza nos
desafia a compreensão e a interpretação...e tal tarefa não se termina aqui.
Gabriel nos
parte e deixa muita coisa boa para ler e reler...e parece que todos que o leram
escrevem, seu Gabriel....foi, então, mais um parteiro neste mundo...aqui fecho um
texto da minha lavra e mão...nem numa grande profecia, isso seria previsto...que
a literatura de alta qualidade continue gerando mais escritores e mais ousadias
nas palavras...e assim se termina sua obra, na página 364, no penúltimo dia de
minha leitura...
“Macondo já
era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do
furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em
fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar a última página dos
pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. Então deu outro
salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de
sua morte. Porém, antes de chegar ao verso final já havia compreendido que não
sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos
(ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens
no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e
que tudo estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre,
porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda
chance sobre a terra.”
(Cem Anos de
Solidão, p. 364)
Me é muito
emocionante ler isto de novo, me parece que acendeu uma estrela na minha cabeça
quando eu li isso pela primeira vez...e agora tal estrela que nunca se apagou
desde lá brilha muito mais...
Muito obrigado
Gabo!
No dia do
índio, 19 de abril de 2014...
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