Provavelmente desde 1976 eu tenho
tido o prazer e o privilégio de assistir, acompanhar e observar o que aconteceu com o Coral Unisinos. Morava
a menos de duas quadras dos locais de ensaios e sabia de todo o movimento em
torno do Coral, com uma espécie de auge nos anos 80 e depois com alguma
distância todo o desenvolvimento do Coral Unisinos nos anos 90 até o
falecimento do admirável e inesquecível amigo e maestro José Pedro Boéssio em
2001. Eu via o Coral se apresentando na cidade e via uma intensa movimentação
dos membros do coral em volta disto. Assisti menino e depois adolescente alguns
ensaios, mas nunca me aventurei de cantar em coral algum. Era uma coisa
estranha para mim, porque de um lado eu sabia que não era músico e de outro
lado eu amava a música e ficava em uma ambivalência em relação a isso.
Pensando, por um motivo passageiro
qualquer, que nenhuma importância tem hoje que haveria grande dificuldade para
cantar. Assim, mesmo convivendo com várias pessoas que cantavam e tendo tido diversas oportunidades para
começar a cantar, nunca ousei fazê-lo.
Em 1997, tive uma bela conversa
sobre música, canto e movimento cultural com duas pessoas que me eram muito
caras e que já se foram. Tinha retornado para São Leopoldo da minha temporada
acadêmica na UFRGS e em
Porto Alegre , e estava já a procurar ocupações e atividades
aqui em São Leopoldo. Meu
pai possuía uma oficina improvisada ao lado do MAK e eu trabalhava com ele no
ramo tentando obter alguma forma de sustento. Nos finais de tarde ficava por
ali nas imediações. Um certo dia me sentei no MAK BAR e me entra o Zé Pedro e
ficamos tagarelando brevemente sobre eleições e etc, e eis que em instantes
passa o Nando D´Ávila e acabamos nós três ali conversando sobre diversos
assuntos. O Nando eu conhecia desde menino porque éramos vizinhos de Agrimer
(apês 83 e 82) e depois nos anos 80 ele e Silvana acabaram ficando meus amigos
por conta de outros interesses culturais e místicos meus. Já o Zé Pedro era uma
espécie de parceiro de campanhas. Toda campanha do PT eu via ele junto e, em
uma ou outra circunstância, fazíamos algo. Ele era incrível em sua dedicação à
política. Eu vi aquele Dodge Polara amarelo dele fundir o motor três vezes,
creio, em campanhas. E
também admirava a coragem com que ele exibia aquela bandeirona vermelha do PT
na rua grande. Aliás, ele e alguns outros militantes do PT, apesar de tudo e de
todas as provocações e ofensas possíveis – porque era assim que os petistas
eram tratados em São
Leopoldo , andavam sempre com aqueles bandeirões gigantes na
rua em época de campanha. Havia preconceito e a forma que a gente enfrentava o
preconceito era se expondo e afrontando aqueles que nos rejeitavam ou nos
perseguiam. Talvez muitas pessoas que estão lendo este texto não acreditem, mas
tem muito abobado por ai dizendo que o PT antigo era melhor e tals, mas que
quando o PT antigo era melhor promoviam perseguição e discriminação de todo
e qualquer petista.
Bem, talvez nada disto tem algo haver
com canto coral, mas para mim tem. Porque notei que a forma como o canto coral
é tratado por algumas pessoas de fora é extremamente preconceituosa também. E
isto aparece na dificuldade permanente de termos sempre vozes masculinas e
também na forma subjetiva e leviana como algumas pessoas demonstram tratar o
canto coral em certas ocasiões.
Voltando a conversa com Zé Pedro e Nando – que é o nosso prelúdio
aqui.
A gente ficou ali umas duas horas
conversando sobre política, música, formação acadêmica, pós-graduação, viagens
e também sobre algumas escolhas que nós três havíamos feito na vida. Lembro que
faz[íamos perguntas uns para os outros e íamos tranquilamente batendo papo e
respondendo e misturando assuntos e encadeando temas.
Era muito importante aquela
conversa porque ela me serviu de alento em muitos aspectos. Eu era um professor
de filosofia formado na UFRGS, mas desempregado e sem nenhuma perspectiva de
trabalho estável em vista. E
já havia feito várias tentativas de obter emprego em escolas de São Leopoldo e
em instituições universitárias.
Naqueles dias trabalhava como
eletricista com meu pai que sempre me dizia para eu ficar calmo porque eu era
um professor e afinal minha hora ia chegar. Mas era engraçada a atitude dos
outros trabalhadores nas diferentes obras que passei. Me olhavam estranhando e
as vezes corria um comentário sobre este aspecto. Eu me sentia engraçado, mas
me empenhava fisicamente para também não parecer um alien no meio daqueles
afazeres físicos às vezes brutais. Qualquer pessoa que já abriu uma canaleta em
paredes de tijolos maciços usando apenas a marreta e uma ou duas talhadeiras
dando bamgornadas na cabeça das talhas e vendo o ferro se retorcer e os cacos
de tijolo e as faíscas, provocadas e lasqueadas, voarem no entorno sabe do que
eu digo.
Agora imagina o professor de
filosofia com um boné da Taurus, com a aba virada para trás lá fincado na obra
fazendo isto. É uma imagem não muito usual devemos admitir. Havia um que de
interessante para mim nisto. E confesso que sempre tive uma relação romântica
com o trabalho manual seja ele qual for. Lavrar a terra, pintar paredes, subir
em escadas, carregar pesos diferentes, mexer em máquinas ou em qualquer coisa
com algum mecanismo interessante sempre me atraiu muito. Afinal, se eu fosse
marxista de verdade deveria saber exatamente o que é que sentem os
trabalhadores manuais neste caso e refletir ali mesmo sobre a alienação, entre
uma porrada e outra ou mecanismo ou outro. Eu gostava de coisas engenhosas
também. E para mim a música e escrever tinham algo de engenhoso também.
Bem, eu estava sentado ali com
duas pessoas que representavam para mim artífices engenhosos de algumas coisas
que eu amava. A linguagem – que ia da leitura significativa dos textos que nos
caiam nas mãos, para a reportagem e ao poema ou livro, e a música que ia da
pequena canção à sinfonia, do canto coral à orquestra. E o Nando era para mim
muito especial porque acabou me aproximando muito das duas coisas em meados dos
anos 80 e me levando a fortalecer minhas paixões intelectuais que já eram bem
precoces. Em 1987 fiz o primeiro vestibular com Silvana, ficando no apartamento
de Martin Haag e passando sem, no entanto, ter concluído o ensino médio. Mais
tarde e depois em 1989 acabei ingressando no curso de filosofia da UFRGS. Não
sei bem a quem devo mais se a Silvana ou ao Nando, pelo apoio, incentivo e
companhia neste período todo, mas acabei por fazer filosofia com muita paixão e
dedicação pelos seus exemplos e inspirações.
Já o Zé Pedro era incrivelmente
animador em qualquer diálogo comigo sempre. Ele tinha aquele carisma e aquela
luz fantástica em volta de si que me impressionava muito. E era muito
comunicativo também. Prosear acidentalmente com estas duas pessoas naquele dia
foi uma grande experiência para mim. Dali muitas idéias que carrego comigo até
hoje sobre a cultura como um processo permanente de luta contra a barbárie e da
tarefa cultural permanente de humanização do mundo da vida. E também a conexão
disto com aquilo que nós alunos da filosofia da UFRGS influenciados pelo Paulo
Faria, chamávamos de educação da sensibilidade.
O Zé Pedro havia concluído o
Doutorado em Música, onde tinha conhecido um professor meu que pertencia a nossa
grande família Boeira – o Nelson Boeira. Mas falávamos muito da experiência
acadêmica e dos seus limites em que o tempo certo para as coisas era um grande
desafio e era uma grande luta não chegar a saturação por excesso de teoria ou excesso
de dedicação. Zé Pedro dizia que todo o trabalho dele sobre Villa Lobos – tema
do seu doutorado – envolvia muito prazer também, porque descobria detalhes
sobre a composição e os arranjos que o impressionavam muito. A Tese dele era
sobre a conexão estética entre o Coro Número 10 “Rasga Coração” de Villa Lobos
e a semana de arte moderna de 22. Para quem não sabe e tem alguma curiosidade
este coro é concebido em 1926 e já foi apresentado em diversas ocasiões por
diferentes orquestras ao redor do mundo. É considerado uma composição que exige
muito dos cantores e da orquestra. Ao escutar – enquanto escrevo esta memória
umas 7 versões diferentes – que vão desde a Regência em 1988 de Eleazar de
Carvalho até nos dias atuais no Liceu catalão, percebo que é uma composição
extremamente moderna e ao mesmo tempo conhecida que lembra muitas coisas do Guarani
de Carlos Gomes, das Bachianas Brasileiras
e também do Trensinho Caipira. Mas chama muita atenção a mensagem indígena
presente na composição para o coro e ao mesmo tempo o ritmo que lembra algo de
um avanço e do povoamento do Brasil, o que nos leva para o homenageado pro
Villa Lobos. É uma obra modernista dedicada ao amigo Paulo Prado que em 1926
compunha sua obra célebre Retrato do Brasil, que provavelmente foi em algum
sentido dialogada com Villa Lobos. É uma imagem fácil associar os movimentos da
peça de Villa Lobos ao movimentos da tese de Paulo Prado. Sugiro que vejamos isto mais de
perto um dia.
(Thesis: Boéssio, José
Pedro. 1996. Choros no. 10 by
Heitor Villa-Lobos: aesthetic connections with the Week of Modern Art. Document (D. Mus.)--Indiana University, 1996.)
O Nando já estava às voltas com a doença que o
aborrecia e chateava, mas tinha projetos muito interessantes. Não sei se as
pessoas sabem, mas ele tinha uma verdadeira paixão por escrever e eu não duvido
que existam alguns livros dele prontos em gavetas ou pastas do seu acervo
pessoal. Nando era um perfeccionista. Eu lembro da gente compartilhar por algum
momento lendo e tomando café o livro O Nome da Rosa do Umberto Eco e ele super
dedicado a traduzir as passagens em latin que Eco tirava tanto da Bíblia quanto
de obras filosóficas medievais as mais diversas.
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