Certas pessoas, coisas, nomes,
proposições e acontecimentos parecem sucumbir ao fado de com o tempo - e aqui
nem o tempo ajuda - perderem sua ligação com o real, perderem seu significado
e/ou perderem sua conexão ou ligação significativa com um panorama de
compreensão de tal modo que perdem seu sentido.
Deve haver uma razão justificada
para que algumas pessoas não sejam compreendidas mesmo que elas façam um
esforço descomunal ao seu modo e com seus meios por uma vida inteira para
atingir clareza e precisão em suas expressões ou formulações. Mas também
existem pessoas que são muito claras em suas expressões, mas que nos deixam uma
vida para contemplar em que temos dificuldade de explicar sua biografias ou
suas escolhas que parecem não ter lógica de forma alguma, no sentido de não nos
ficar clara a causa de suas ações suas motivações pessoais, subjetivas ou
psicológicas. E curiosamente pouco nos interessamos por aqueles que são claros
em vida e obra. Ainda que possa citar aqui o resumo da vida de Aristóteles por
Heidegger: nasceu, viveu, trabalhou e morreu, nós não nos interessamos de forma
alguma nem por obras planas, nem por vidas planas e de fácil explicação. Mas as pessoas de obras
incompreensíveis e vidas complicadas são, de fato, aquelas que atraem nossa
atenção e curiosidade, mas que por isto mesmo correm o risco de serem
incompreendidas.
Tudo isto e o que virá a seguir
carrega água para o moinho de uma questão clássica sobre a vida que vale a pena
ser vivida. Sócrates ao arguir que uma "vida sem reflexão não vale a pena
ser vivida" defende uma concepção do que daria valor a uma vida ou
existência humana. No caso dele o valor de sua vida seria encontrado com a
reflexão. Isto é um ponto muito central de uma estratégia de resposta ao tema
do sentido da vida e da nossa relação social, ética e discursiva com os demais
seres humanos. Ou, como tenho tratado em minhas aulas sobre o valor da vida de
um homem ter duas dimensões a intrínseca e a relacional. Em minha análise do
filme O Resgate do Soldado Ryan, defendo que esta é a questão filosófica
principal encenada naquela obra de tal modo que existem problematizações deste
tema no decorrer dela que nos ajudam a compreender melhor certos dilemas a este
respeito. Estes dilemas envolvem desde o nosso modo de viver, o merecer
viver e nossas qualidades próprias,
talentos, habilidades e disposições. E isto toca diretamente em nossos juízos
sobre as vidas dos outros ou sobre seus discursos. Não é nada fácil compreender
pessoas cuja vida sofre balanços e riscos e em geral toda grande biografia
contém elementos de surpresa aos admiradores e aos detratores.
Nestes casos biográficos estas
personagens são taxadas de idiossincráticas ou complexas e, segundo nossa
simpatia, recebem elogios admirados ou observações intrigadas com o mistério de
suas vidas e escolhas de vida. Em outros casos, elas tem suas vidas reviradas,
seus pecados, deslizes, vieses e escorregões expostos a reprovação pública. Na
vida de alguns filósofos isto é um tipo de característica mais comum do que
parece e mais cômica e trágica do que se imagina. Poderia desfiar aqui milhares
de casos em que curiosidades ou erros de filósofos levam para as mesas de
reflexão dos biógrafos a questão de como compreender isto e ou bem acaba-se
explicando isso a partir de sua própria tela moral ou acaba-se por decretar ali
um problema sem solução.
Em filosofia muitos gostam de
separar filósofos (as) claros de filósofos (as) obscuros. De fato alguns
parecem atrair nossa atenção justamente por sua extrema capacidade de nos
dificultar a interpretação ou o seu entendimento. Já outros nos fascinam por
sua brilhante luz, luminosa expressão e clareza e precisão assombrosas. Sempre
lembro de Descartes nestas horas de benevolência compreensiva e generosidade
desnecessária. Porque muitas vezes toda esta clareza argumentativa, precisão
conceitual esconde algo muito mais obscuro e indevassável do que a nem tão mera
exposição metódica de um discurso que organiza ideias de forma muito cuidadosa
e habilidosa. Nem tudo que é claro para mim suprime a obscuridade de
determinadas questões.
Quando leio os textos de
Wittgenstein, por exemplo, e encontro expressões claríssimas tenho a forte
impressão de que é bem mais complicado do que parece e de que o que ele
realmente queria me ou nos fazer entender não está sequer ainda em minha mente
sendo concebido. Digo isso com especial destaque para os diversos textos
inéditos ou póstumos dele.
Algumas pessoas e filósofos
passam uma vida inteira sem serem compreendidas e parecem virar uma espécie de
enigma ou paradoxo ambulante provocando sentimentos ou o juízo alheio e
despertando reações que às mais das vezes expressam incompreensão ou mal
entendidos. Temos que admitir e admitimos que é bem difícil interpretar e ler o
mundo, as pessoas e suas relações entre elas e com a gente.
Estive pensando nisto estes dias
e em muitos momentos me dobrava em cuidados com o que escrevia e como escrevia,
com certas dificuldades acidentais e não intencionais com o corretor
ortográfico do meu MOTO G, mas com aquela imperiosa disposição e vontade de
dizer algo. Quem me conhece de perto sabe que sou extremamente inquieto,
reflexivo - nem sempre com clareza e precisão - e que tenho uma necessidade de
interagir e dialogar com os outros. Bem, a verdade é que por conta disto virei
professor, por conta disto lido com assuntos políticos precocemente desde que
me conheço como individuo ou parte de um todo maior, parte de um coletivo ou
comprometido com o mundo. Isso não é uma explicação nem uma justificação, isso
é apenas uma auto-consideração que espero que conforte outros jovens que, como
eu, tem estes impulsos em direção aos outros seres humanos. Impulsos de falar,
dizer, dar opinião, considerar, compreender, propor, criticar, julgar ou
simplesmente expressar um sentimento.
Bem, mas hoje, após ler uma
postagem na verdade duas, do Gregory Gaboardi eu me senti reconfortado porque
simplesmente ficou clara para mim a emergência social e filosófica deste tema:
de como compreender ao outro e suas expressões
- e, por certa coincidência, que só pode ser verificada mesmo nos dias
de hoje por força das redes sociais, de nossas interações paralelas á vida
cotidiana e ás nossas leituras e destes meios devem haver mais pessoas pensando
nele hoje ou neste período. O tema do viés citado por ele me leva em parte a
escrever da forma como escrevo aqui. Em parte, de modo demonstrativo, ao
mostrar que a consciência ou conhecimento do viés pode ajudar a superá-lo,
ainda que fazendo uso dele. (neste sentido este texto é um texto retórico com
um exercício de correção de fala.)
Minha linha de interrogação
subjetiva que estava sendo desfiada desde que escrevi sobre A CAVERNA DAS
CRENÇAS DOGMÁTICAS, envolvia saber se eu seria compreendido em meu propósito
naquele texto, se seria arrogância de minha parte escrever de forma indireta,
difícil ou complicada sobre aquele tema e isso acabou me levando para a questão
de saber se um dia me compreenderão afinal - veja-se o despropósito e a pouca
humildade devida aqui a alta importância que dou a mim mesmo nesta questão.
Ocorre que amanheci hoje com disposição de encarar isto - e outras questões -
com menos exigências de perfeição ou perfectibilidade e ao repor tal questão em
mente penso que pouco importa isto no presente caso.
Nossas expressões e discursos
postos aqui ou ali pegam na geral, mas podem sim ser endereçados a um público
específico e estar voltados para determinadas frações dos grupos sociais aos
quais pertencemos. Curiosamente isto ocorre exatamente assim, porque observamos
em alguns casos que são estas pessoas com quem queremos conversar ou propor
algo sobre este assunto que nos dão retornos, fazem considerações ou sugestões,
E mesmo aquelas que não compreendem o que dizemos ao abordarem de forma
deslocada ou enviesado, diversionista ou tresloucada o que dizemos merecem
também nossa boa vontade, pois este é justamente o ônus de nossa exposição:
suportar não ser compreendido e tolerar isto com uma atitude tranquila,
moderada e pedagógica ou, no caso de cada, um responder a isto com os meios que
dispõe e com mostras de sua disposição ao diálogo. Não há, então, ao meu ver,
pecado aqui na profissão de fé ou proselitismo nesta intencionalidade.
E do mesmo modo que é assim para
os textos e discursos, em nossas vidas privadas, e, portanto, nossas escolhas
existenciais, morais, religiosas e nossas adesões políticas podem sim ser
incompreensíveis aos leigos, aos moderados de espírito, aos quietos de alma e
também aos iluminados da razão ou conformados sociais. Não faz muito sentido
escrever uma obra na esperança de um dia ser compreendido por alguém que virá a
atingir os píncaros de tuas idéias, mas também não há nenhum motivo relevante
que te obrigue a escrever apenas coisas que valham para todos e que sejam
entendidas por todos, porque talvez ao fazer assim esteja apenas encobrindo ou
simplificando algo que não é passível de tal simplificação. As vezes, a melhor
atitude é mesmo complicar um pouco para que a vida não seja resumida e para que
o valor intrínseco de uma existência não seja resumido na presunção apressada
de outro.
Enfim, creio que por mais
dançante e carregado de dúvidas que tenha sido meu texto, me compreenderão
aqueles que assim desejarem e, também, aqueles que eu gostaria que assim o
fizessem, por força do meu tema e da forma que dou a ele aqui. Presumo então um
leitor e uma compreensão, mas esta é uma presunção comum e frequente em todos
que escrevem. Não precisamos esperar outra geração para sermos bem entendidos,
mas podemos provocar já nesta um esforço de compreensão que não se fará por
generosidade, mas sim por interesse. Eu gosto de escrever especialmente para os
interessados. Aqueles que não são interessados não precisam ler. Podem ler
outras coisas ou outros. O interesse aqui nos ajuda a encontrar a ligação entre
as coisas, as palavras e o sentido do que dizemos e o modo em que vivemos.
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