Sigmund
Freud fez um dos trabalhos mais revolucionários na relação entre cultura e
pensamento e mesmo que se rejeite a psicanálise, seu pressupostos, seu método e
se tenha preferência por outros métodos ou por auxilio de medicamentos no
tratamento do sofrimento psíquico, não há como tirar de Freud o fato de que com
suas idéias influenciou tanto as artes quanto a interpretação de seus agentes e
obras. Freud tinha uma sensibilidade aguçada para elementos da cultura e das
artes que havia em seu tempo e percebia aspectos que hoje podem ser vistos como
triviais ou ultrapassados, mas que em seu tempo davam conta de aspectos
enigmáticos a respeito da natureza do impulso do artista, do significado da
arte e da nossa relação sensível e psíquica com seus produtos.
“A natureza generosa deu ao
artista a capacidade de exprimir seus impulsos mais secretos, desconhecidos até
por ele próprio, por meio dos trabalhos que cria; e estas obras impressionam
enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que desconhecem, elas também,
a origem da emoção que sentem.”
Sigmund Freud - O sonho de
infância de Leonardo da Vinci, 1910
Freud
fala acima da questão da origem e de que haveria uma espécie de fonte natural da
capacidade de expressão e do talento do artista e, nesta citação pinçada e
emprestada de um amigo, Freud aponta para algo que está além da fronteira
consciente deste homem que é o artista e também daqueles que fazem a recepção
de sua obra. É este além que pode ser chamado segundo Freud pelo seu efeito no expectador
da obra de arte de um estranhamento (unheiliche) e que só é possível quando a
arte ultrapassa a verossimilhança e passa a lidar com este algo desconhecido
cuja origem também é desconhecida.
Apesar
de Freud explicitamente privilegiar durante toda a sua vida a escultura e a
literatura como formas de arte que lhe atraem e às quais dedica mais sua
atenção, ele escreveu dois belos ensaios sobre Leonardo da Vinci que era mais
pintor e aquele famoso trabalho sobre o monumental e impressionante Moisés de
Michelangelo que se encontra no Museu do Vaticano. Curiosamente duas obras da
renascença que na época em que Freud recebeu e desenvolveu parte fundamental da
sua formação cultural recebia junto dos gregos forte atenção de grandes
intelectuais e escritores em todas as áreas da arte. Sabemos que tanto a
Escultura quanto a Literatura tem uma grande vantagem para a linha de
raciocínio, predileção e reflexão de Freud. A Escultura cujo caráter mais táctil ou palpável e a
Literatura imediatamente decifrável ou inteligível. Ambas são também notáveis
em suas vantagens para a interpretação em relação à pintura e à música, ou
poderia acrescentar o Teatro e a Poesia, mas creio que podemos dizer que suas
idéias se aplicam também à todas as artes. Ou seja, apesar de seu interesse ser
mais pronunciado sobre estas duas artes, suas idéias e pensamentos nos valem
para as demais artes.
Ele
explicita sua predileção pela literatura e escultura no seu ensaio sobre o
Moisés de Michelangelo assim:
“Não
sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (…). Sou incapaz de
apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em
arte (…). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente
a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou
a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha maneira,
isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer
isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer
prazer.”
OU
Nos
primeiros parágrafos do artigo, “Moisés de Michelangelo” , Freud observou:
“as
obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura
e a escultura e ,com menos, freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar um
longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las á minha própria maneira,
isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito (…) Uma inclinação
psíquica em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato
de comover-me com uma coisa sem saber
porque sou assim afetado e o que é que me afeta”
O
Moisés de Michelangelo. 1914. (in: Freud
e a Arte.)
Mais
tarde Freud irá se debruçar e procurar interpretar o modelo por assim dizer
real da representação de Michelangelo, dedicando-se também sobre a própria
figura histórica e fascinante de Moisés. Suponho que deveria haver uma espécie
de cruzamento entre as duas obras: aquela que descreve e interpreta as
impressões de uma escultura impressionante e aquela que conjectura e interpreta
uma figura histórica também impressionante e com certeza fundadora na cultura
ocidental que é ou poderia ser a “base real” que afetou por diferenças de anos
a sensibilidade de Michelangelo para levá-lo a representar daquela forma. Chego
a pensar mesmo em um estudo comparativo entre as duas. Por enquanto posso
pincelar aqui com o propósito de avançar.
Na
primeira Freud assume o papel de intérprete de uma obra estética já na segunda
cabe a nós compreender o quanto há de arte e de gênio na sua interpretação da
personagem histórica, bíblica e mitológica do Moisés. Sempre penso num aspecto
interessante quando me defronto com Freud com sua capacidade literária e
criativa e, também com sua capacidade de interpretar e desvendar os enigmas que
a ele se defrontam. E esta é uma das características lógicas presentes na
interpretação e na recepção da obra de arte cujo estranho e oculto é revelado
ou nos é apresentado. E em ambos os casos o suporte último desta representação
é um ser vivo, real, de cuja existência insuspeita não podemos nos furtar por
sua obra ou obras.
A
natureza generosa que ele aponta ai como um pano de fundo orgânico se revela já
na formação de uma capacidade do artista, aquele que faz algo com arte, de
fazer de seus impulsos mais profundos sua obra. Digo formação...
Os
impulsos mais secretos ou desconhecidos parecem estar ocultos ao próprio autor
e serem revelados em sua obra. Esta formação é justamente aquela que ultrapassa
a dimensão técnica e a completa pelas vivências e experiências. Eles aparecem
como que surgindo de um fundo oculto de nós mesmos, de um fundo onde repousa um
sentimento uma percepção que nos era inconsciente, não manifesta e que vem a
ser manifestada ou revelada na obra de arte, na arte ou na obra – como quiserem
aqueles mais especializados.
Tenho
certa convicção sobre isto relativa ao fato de que tal origem e forma deste
impulso pode permanecer oculta ao autor ainda nos seus primeiros esboços ou
ensaios, mas que na justa medida em que vai desenvolvendo seus trabalhos, o
autor dedica-se a conversar ou laborar sobre este material antes oculto e este
passa a fazer parte de seu consciente. Minha intuição baseada em minha própria experiência
e na observação de outros é que o autor atinge sempre a posteriori uma autoconsciência
e a vai forjando na sequência e concomitante
com o seu trabalho sobre a obra e o seu ensaio que segue até sua “finalização”
ou entrega ao mundo. E, assim, passa a fazer parte do seu repertório ou agenda permanente
de forma explicita e a se mostrar de forma quase deliberada ou conduzida com
certo equilíbrio entre impulsos voluntários, racionais, conscientes e
deliberados. Numa possível narrativa detalhada do desenvolvimento da pintura de
Miró desde suas primeiras obras até às últimas – e creio que em muitos outros
autores de forma análoga – ocorre uma boa demonstração disso, mesmo quando o
autor parece realizar saltos ou pulos, creio que é possível observar este mesmo
fenômeno.
Quando
penso nesta passagem deste impulso oculto à sua revelação e que depois disto
ocorre uma elaboração e reelaboração do artista, penso também naquilo que
muitos chamaram de um leitmotiv sendo fixado, quando então um autor ou autora
passa a explorar até sua perfeição, em variações e ensaios de aproximação até
encontrar a sua forma definitiva a partir do qual ele ergue uma espécie de
modelo. A elaboração e reelaboração é
que vai dar um desenvolvimento em múltiplas direções do tema e de suas formas. O
leitmotiv ou esta inspiração mostra aí que não é completamente controlada pelo
autor, ou seja, por isto desenvolve-se em múltiplas formas e que, então,
justamente por estas formas múltiplas este é aquele momento que não é
voluntário, nem racional, nem consciente e nem deliberado mas que passa então,
pela exibição, repetição e exercício do seus autor se passa à latência e fica
presente à consciência.
O
nome tradicional deste impulso é paixão e sua espontaneidade não deveria
encobrir completamente sua lógica ou nos impedir de interpretá-la, mas sim nos
permitir a ter acesso a este universo em que símbolos, fantasias, ilusões e
sensações reais e imaginárias se misturam formando um caldo ou um oceano
inteiro de imagens, idéias, sentimentos e palavras.
E
aqui mais uma vez Freud explica que a origem deste impulso e sua realização
está ligada a uma busca de satisfação do artista com sua obra:
“A
arte é o único domínio em que a onipotência das idéias se manteve até aos
nossos dias. Só na arte acontece ainda que um homem, atormentado pelos seus
desejos, faça qualquer coisa que se assemelha a satisfação; e, graças á ilusão artística,
este jogo produz os mesmos efeitos afetivos se se trata-se de uma coisa real.”
Totem
e Tabu. 1913.
-
E quando ele coloca este algo desconhecido como “origem da emoção que sentem”
podemos nos perguntar como nos tocamos, sentimos e percebemos algo
desconhecido? Como refletimos ou percebemos este material que antes era oculto
á nossa consciência, mas que de certa forma nos pertence e talvez pertença
também a mais pessoas posto que ao virar arte também as toca, se comunica com
elas e gera nelas também um encontro com seus próprios sentimentos, antes negligenciados,
desprezados, reprimidos ou não manifestos.
Podemos
nos perguntar se basta ai a pura emoção ou se realizarmos a análise de certa
obra nos é facultado o acesso a uma outra emoção também nossa? Quando iniciei
minha caminhada neste tema por outro viés – pela análise dos mecanismos de
significação e compartilhamento de uma mesma linguagem, via jogos de linguagem
e formas lógicas da linguagem - me perguntei se tal fenômeno não envolvia um
mecanismo de transitividade de compreensão. Parece uma idéia banal, mas
envolvia certa comunidade entre o representado e a representação, ainda que
pudessem haver traduções e códigos diferentes para isto. Freud nos dá uma outra
pista também sobre isto na seguinte passagem:
“Não
quero dizer que os conhecedores e aficionados de arte não encontrem palavras
para exaltar esses objetos. Eles são bastante eloqüentes, segundo me parece.
Mas, geralmente, diante de uma grande obra de arte, cada um diz algo diferente
do outro, e nenhum diz nada que resolva o problema para o admirador
despretensioso. A meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a
intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos
compreendê-la. Entendo que isto não pode ser simplesmente uma questão de
compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude
emocional, a mesma constelação mental que produziu nele o desejo de criar. Mas
porque a intenção do artista não poderia ser comunicada e compreendida em palavras,
como qualquer outro fato da vida mental? Talvez no que concerne ás grandes
obras de arte, isto nunca seja possível sem a aplicação da psicanálise.” (
Freud, 1914/1969, p.213)
Eu
diria, então, sem abusar aqui de uma alternativa psicanalítica, que com esta
experiência de buscar no fundo da nossas emoções e percepções a interpretação
exata, parece que nós temos uma forma de acesso a uma emoção que nos coloca em
face de uma síntese entre sensibilidade e entendimento. Uma síntese que é comum
não somente a nós próprios, na esfera da minha consciência individual, mas que
também toca a possibilidade de consciência e entendimento do outro, cujo mesmo
sentimento ganha, então, um mesmo sentido na nossa linguagem comum. Uma síntese
esta que não é mais do que um sublime kantiano ou mais do que mais uma
compreensão meramente intelectual e discursiva. Mas, uma síntese que nos leva
diretamente às condições de possibilidade de uma interpretação comum e daquilo
que Freud chama de “constelação mental” que produziu no artista o seu “desejo
de criar”. Diria, assim, uma síntese
muda, mas que me parece sábia do seu alcance e do seu sentido ainda que as
palavras nos escapem.
ABAIXO DE JUAN MIRÓ O CAÇADOR
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