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domingo, 12 de maio de 2013

SOBRE A EXISTÊNCIA DE UMA ELITE INTELECTUAL HOJE



"Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu, em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes, pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como animal falante). Toda sociedade tem os seus detentores do poder ideológico, cuja função muda de sociedade para sociedade, de época para época, cambiantes sendo também as relações, ora de contraposição ora de aliança, que eles mantêm com os demais poderes." 

In: BOBBIO, Norberto.Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p.11



Tudo bem amigo Jorge, isto não refuta tua objeção à existência de uma elite intelectual que é ainda assim uma questão importante. Eu fiquei curioso com teu argumento sobre a inexistência de elites intelectuais e aqui quero só pontuar algumas coisas como exemplos de uma análise geral deste tema, porque sinceramente eu desconhecia argumentos contrários a existência de uma elite intelectual e, também, porque é um tema que sempre me atraiu e que com tua provocação me coloquei a tarefa de refletir livremente sobre ele de novo. Me dedico a ele, também, por uma necessidade de abordá-lo por diversas outras razões de minha biografia e formação.

Não sou um especialista neste grande tema das ciências humanas, que foi praticamente tocado por todos os grandes pensadores no século XX. A lista deles é notável. Talvez isto explique porque eu desconheça esta discussão sobre a existência de tal coisa também. Porém conheço, por outro lado, muitos trabalhos e discussões interessantes sobre elites, elites intelectuais e intelectuais em geral e destes já conheci muitos trabalhos notáveis, inclusive.

Confesso também que é um tema que me atrai, por conta do papel que a gente também acaba assumindo na sociedade quando se participa politicamente de debates, quando se formulam propostas e criticas também e se faz isto assumindo posição naquilo que chamamos de espaço público. Seja através de artigos em jornais, postagens no Facebook, no Orkut um dia, em Blogs diversos ou no meu blog próprio.  A cada tomada de posição por mais simples que ela te pareça estamos entrando num debate em que se encena também uma disputa de hegemonia e de ideologia, estamos professando concepções de forma mais ou menos consciente, dependendo da forma como olhamos para as idéias e do respeito que temos pela importância delas e também dependendo da nossa consciência à respeito das suas origens e de suas conseqüências.

Assim, o papel de intelectual é exercido primariamente no debate público. Papel este que se desempenha correntemente, na medida em que se adquire por formação regular – e isso vale para todos nós que avançamos nos estudos até o ensino superior ou no mínimo técnico - um conjunto de conhecimentos técnicos ou culturais, científicos ou de trabalho e se aplica estes conhecimentos ao debate. Estes conhecimentos que nos habilitam a tratar das questões de uma forma mais racional e precisa ou racionalizada e eficaz nos colocam por assim dizer acima da média, mas somente quando os expomos publicamente e sofremos, por assim dizer, o juízo e o julgamento de outras opiniões e outros debatedores.

Mas não basta ter opinião, conhecimento, ciência, técnica, arte ou formação, para ser considerado intelectual, é necessária certa atuação pública, é necessário expor-se publicamente. Ou seja, não basta ter seu lugar na academia ou ter qualquer prestígio acadêmico ou profissional para ser considerado um intelectual, é necessário explicitar certa tomada de posição, a expressão de uma opinião pública ou de uma posição a respeito de assuntos públicos e sociais.

Sejam eles polêmicos ou aparentemente consensuais. Segundo a maior parte dos historiadores que examinam a história das idéias e a história dos intelectuais, o termo intelectual surge por volta de 1898 por conta dos debates originados no caso Dreyfus, quando Emile Zola e outros tomaram posição pública contrária à prisão deste tenente francês. O artigo inaugural para esta expressão e exposição de uma posição intelectual é J’accuse de Emile Zola, e a designação de intelectual foi dada positivamente por Georges Clemenceau quando este ainda era um jornalista e agitador político do cenário cultural francês, antes de vir a ser eleito alguns anos depois senador e primeiro ministro. 

Mas é polemica também sua dimensão e polaridade porque também outros usavam o termo pejorativamente à época no sentido de que “estes intelectuais estavam ou estariam se metendo em assuntos que pouco dominam”, como foi o caso Dreifus, em que um oficial era acusado de traição. Isto, aliás, é corrente ainda hoje quando se percebe que alguns argumentam contra o uso de teorias ou de argumentos teóricos, em prejuízo de uma simplificação ou de um tratamento eminentemente prático. Tive muitas experiências de ser acusado de estar teorizando ou de testemunhar esta acusação vã. Mas sempre lembro que boa parte das argumentações de cunho mais teórico acabam dando mais robustez ao debate. 

É importante frisar aqui que este conceito ou categoria surge também com um debate feito via folhas de jornal, revistas ou panfletos que tinham incidência sobre a opinião pública e que isso gerava debate na sociedade sobre este ou aquele tema. E penso que isto é importante porque contribui para dar forma a opinião pública e a opinião das gentes sobre diversas assuntos e está também ligado ao surgimento de um espaço público realmente democrático também com ampla e plena liberdade de opinião.    

A Elite Intelectual é somente prima facie uma categoria usada para discernir melhor tipos de intelectuais e famílias de intelectuais em níveis de intervenção. Haveria assim intelectuais com baixa repercussão e intervenção e intelectuais de largo impacto o que define pertencer a esta elite. Assim, a sua capacidade de incidir nos debates e seu poder de persuasão marcariam o pertencimento a elite intelectual.  A explicação que encontrei para isto, esta mudança de nível e de impacto, é de que é um substituto ao conceito de Marx de classe dirigente, porque daria conta da dimensão reflexiva desta classe ou de um extrato desta classe que elabora sobre a tal uma certa direção da mesma, mas é preciso diferenciar aqui, porém, espaços de debates dentro de uma classe dirigente e espaços de debates no espaço público.

Isso significa também que pertencer à elite intelectual não é sinônimo de defender as mesmas idéias ou que a elite intelectual não é homogênea em pensamento não. Ao contrário, um conflito intelectual também se dá dentro de uma elite intelectual. E mais frequentemente há grandes e intensos conflitos intelectuais e ideológicos no meio de uma elite intelectual. E, em geral, estas disputas geram facções dentro desta classe dirigente. É exemplar o que ocorrem nas revoluções das quais temos conhecimentos em que frações políticas se formam sob a direção de certas lideranças que somam aspectos intelectuais e retóricos, ideológicos e pragmáticos.

Raramente verás um intelectual deste tipo “elitista” debatendo em registro inferior aquele que ele julga possuir, com a plebe então nunca o verás. Ele em geral é seletivo e faz escolha de seus adversários e de suas prioridades de debate. Mas também existem intelectuais que não pertencem a uma determinada elite. Aqueles que se constituem na vida sem muita direção cultural ou formação regular. Isso, esta condição inferior, pode ser algo permanente, mas pode mudar por avanço social ou na carreira acadêmica, política ou profissional. Mas, também, pode mudar por protagonismo próprio e  assertivas  decisivas ao longo de suas tomadas de posição. Em todo caso, como eu já disse vamos ter que ver na prática – ou seja, através de exemplos de aplicação e não como quimeras ou arquétipos de generalidade – usando tua expressão, se esta categoria é dispensável ou não.

Uso ela – e imagino que a maioria que a usa compreende mais ou menos desta forma – porque preciso discernir certos papéis desempenhados por intelectuais, bem como, suas relações sociais e com o status quo.  Assim, como outros que estudam a história, a cultura e a política também usam esta categoria.

Disse também que considero tua pergunta importante porque ela vem de onde vem. Talvez você possa ou deva me explicar um pouco mais sobre o que te levou a questionar isto. Isto é, apor um argumento sobre isto.

Ora, pelo que sei és um Arquiteto com militância intensa na defesa do patrimônio histórico e cultural, seja ele material ou imaterial, por suposto.   

Você fala em definições ou arquétipos genéricos no sentido de que referem a algo inexistente então. Mas tem um traço importante nestas definições e nestas generalidades das quais você fala: muitos cientistas classificam as coisas fazendo exatamente isto, diferenciando-as de outras, por suas funções, modos de ser e etc.

Assim, comparativamente, como os arquitetos ou historiadores da arte diferenciam correlatamente estilos e escolas estéticas.

No ano passado, por exemplo, para ficar no caso dos gaúchos, naquela pesquisa sobre a praça tive uma experiência de descoberta interessante sobre este tema. Acabei encontrando e me defrontando com uma função típica daqueles que são membros das elites intelectuais gaúchas no início do século. E há inclusive um trabalho interessante sobre isto que descobri do professor Sérgio da Costa Franco. As elites intelectuais cumpriam uma função importante que era de sustentar a ideologia positivista ou republicana via revistas e imprensa em geral. Parte do prestígio de Getúlio Vargas, para ficar só num exemplo, se constituiu através da Revista do Globo que foi criada e dirigida em seu início por Mansueto Bernardi – aquele ex-prefeito de São Leopoldo (1919-1923), o qual foi sucedido por Érico Veríssimo na direção da Revista do Globo e na Editoria da Editora Globo, quando Mansueto segue para a direção da Casa da Moeda após a revolução de 30.

Muitos destes intelectuais de elite cultural faziam isto com empregos públicos ou assessorando políticos. E isso certamente ainda ocorre hoje de uma forma semelhante, ainda que seja mais comum se ter certa independência maior nos dias de hoje, através dos concursos públicos. Ainda que isto seja mais especializado e de certa forma caiba a parte mais visível disto mais aos atuais jornalistas e assessores de imprensa, não é invisível a relação de organicidade entre diversos intelectuais e partidos e organizações políticas.

Eles – os jornalistas - são e tem sido mais visíveis ao fazerem isto e não mais tanto aos típicos intelectuais. Mas me parece que isto tende a mudar com o uso mais intenso de redes sociais e debates de opinião nas redes sociais. Muitos são pessimistas com isto, mas eu tendo a ser bem mais otimista e vejo em blogs e outros meios grandes debates. Até mesmo no Twitter ocorrem debates e divulgação de idéias e links que levam para debates e penso que isto está democratizando também o acesso e os espaços para a opinião também. Ainda que a visibilidade disto seja mais difícil de tomar eu discordo dos pessimistas neste tema. Bem se isto estiver certo talvez o conceito de elite intelectual tenha que ser mais alargado, posto que não haverá mais espaço para uma estreita parcela de intelectuais de elite como formadores de opinião, posto que aumenta o seu número e também a diversidade de assuntos tratados. Talvez neste sentido deixe de existir uma categoria tradicional de elite intelectual e tenhamos que criar outra categoria que me parece ser a de ativistas.

Por outro lado, creio que há uma fantasia por trás das redes sociais de que as redes sociais estariam fazendo algo exclusivamente novo e isoladamente das velhas categorias de circulação dos intelectuais como a política tradicional e representativa. Sinceramente não creio nisto. Mas se você raspar a camada superficial dos discursos dos políticos vai encontrar intelectuais envolvidos em debates e em formulações deles. Acadêmicos, PHDs, Pesquisadores, Escritores, e Pensadores em geral de diversas ciências fazendo este trabalho de conceber, sustentar e legitimar-se enquanto elite e enquanto uma elite portadora de um projeto de sociedade. Não podemos dizer também que não existem muitas elites intelectuais nas redes sociais, inclusive com diferenças ideológicas entre elas. Pelo menos eu as observo claramente por me ocupar com isto a partir de uma vida orgânica partidária e também a partir do meu intercâmbio com a academia e de certa forma com intelectuais de outros partidos também. Vejo isso com certa simplicidade. Assim como você se ocupa com o tema do patrimônio Histórico e conhece diferentes intelectuais, profissionais e pessoas com formulações sobre ele, algumas das quais inclusive você pode discordar, mas que compartilham com você de debates e de pontos de acordo em comum, também vale isto noutros domínios e assuntos.    

Creio que este tema do patrimônio histórico com o qual me envolvi intensamente como tarefa de gestor e também de elaboração, concepção e pesquisa, nestes últimos dois anos e que me foi apresentado pelos membros do COMPAHC - Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural e também por você e pelo pessoal da Defender, não é um tema simples. Sei que não é uma questão sobre a qual se discute de uma forma simples e, desta forma, posso dizer que ele também é um tema que requer uma elite e um conjunto de intelectuais que o dominem para ser tratado. O que ultrapassa a mera simpatia pela causa, pois envolve mesmo efetivamente todo um ramo de conhecimento e de especialidades que não é simplesmente apreendido pelo leigo como eu.

Tuas perguntas sobre como definir a categoria de elite intelectual, quem a integraria, o que faz e o que pensa, me parecem ter sido tocadas já aqui e envolvem de fato a necessidade de avançar para dentro da pesquisa e ultrapassar as opiniões sobre haver uma instituição ou não desta classe ou categoria.  

Sobre as elites intelectuais há, também, toda uma área de investigação sobre este tema que fica limítrofe à sociologia, história, história das idéias, literatura, estudos culturais, ciência política, e são pesquisas muito interessantes porque falam sobre esta categoria dos intelectuais e suas diferenças enquanto elites também.

Por fim, para não deixar de filosofar um pouco mais.

Talvez tenhamos ai a dificuldade clássica que se estabelece com a diferença entre predicados de objetos e predicados de famílias de objetos.

Elite Intelectual não refere a um objeto em sua homogeneidade, mas sim a uma família de objetos cada vez mais diferenciados e que é, como tentei expor antes, cada vez mais democrática.

Talvez por isto esta aparência de quimera ou de artificialidade nos dê na telha.

O nosso uso da palavra arquétipo, por outro lado, somado à generalidade já nos traz problemas de outra ordem.

Nos leva para a pergunta de se existe uma figura clássica e representativa de Elite Intelectual, que creio que não.

Este tipo sequer é necessário para reconhecer a existência de uma elite intelectual mais ligada a um espaço de atuação e circulação de idéias, que é mais amplo do que nunca e que há ai mais uma forma de atuação, do que propriamente um tipo determinado de sujeito histórico.

O que se preserva das figuras clássicas talvez seja o engajamento e a persistência no debate, mesmo quando ele pareça encerrado.

E eu gosto de sempre anotar ao final de um debate destes é se você alcançou ou construiu suas posições com o propósito de produzir uma mudança social qualitativa e não apenas exibir sua verve retórica ou entabular um debate.

PRIMEIRA VERSÃO PUBLICADA TAMBÉM NO BLOG DO NASSIF: A QUESTÃO DA EXISTÊNCIA DE UMA ELITE INTELECTUAL ATUAL

Agradeço ao Jorge Luis Stocker Junior por ter suscitado estas notas de uma discussão comigo mesmo.

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