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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

SOBRE MAPA DE CRENÇAS

 

O amigo e filósofo Gregory Gaboardi (1), extremamente dedicado à epistemologia, escreveu uma postagem em 2017 citando David Malet Armstrong (2), com sua abordagem dinâmica sobre Mapa de Crenças. Ele estava usando um texto de Armstrong, que eu não conhecia, sobre o tema e esse aspecto dinâmico foi o que me saltou aos olhos. Hoje visto com mais calma e distância e me beneficiando do seu tradutor quero um pouco tratar disso. Penso que agora, passados alguns anos in progress – em 2019 escrevi a base desse comentário - posso tecer algumas considerações mais longas sobre esse tema que me persegue no estudo da filosofia. Vou começar citando Armstrong:

 

"Se pensarmos em crenças como mapas, então podemos pensar na totalidade das crenças de um homem num momento particular como um único grande mapa do qual as crenças individuais são sub-mapas. O grande mapa abraçará todo o espaço e todo o tempo, passado, presente e futuro, juntamente com qualquer outra coisa que ao crente demore para existir, mas terá como ponto de referência central o eu presente do crente. Mas não devemos pensar no grande mapa como o mapa de um cartógrafo moderno da superficie da terra. Tal mapa é um mapa demasiado bom para ser uma imagem adequada. (Não é só crença, é conhecimento.) O grande mapa de crenças será muito parecido com os mapas antigos, contendo inumeráveis erros, fantasias e vastos espaços em branco. Pode até envolver representações contraditórias de porções do mundo. Este grande mapa, que está continuamente a ser adicionado e continuamente a ser tirado enquanto o crente viver, é um mapa dentro da sua mente."

 

D. M. Armstrong, grifos meus.

 

Fica clara a dimensão ou as múltiplas dimensões dinâmicas desse mapa de crenças. De um lado, ele possui uma dimensão temporal, de outro lado, que pode ser considerado relacionado à essa dimensão temporal, esse mapa está continuamente em mudança e suas crenças sob apreciação, adição e retiradas. As crenças são adicionadas ou retiradas, portanto, trata-se de um mapa em aberto, com ingresso de novas crenças, com retirada de crenças e com mutações de crenças.

 

Na descrição de Armstrong, além disso, também podemos observar que nesse mapa de crenças temos crenças até mesmo contraditórias. Podemos imaginar isso muito facilmente quando pensamos que possuímos versões verdadeiras sobre os fatos e também versões ficcionais sobre os fatos. A existência dessas crenças antagônicas ou sutilmente diversas sobre os fatos estão depositadas “dentro da nossa mente”. Esse tipo de sacada de Armstrong pode ser reconhecida por qualquer um de nós que se coloque a examinar os conteúdos de suas próprias reflexões, opiniões ou conhecimentos. Alguns de nós tem inclusive a capacidade de narrar as mudanças em suas próprias crenças a respeito das coisas, dos fatos ou das pessoas ao longo da própria vida.

 

Entendemos isso perfeitamente bem também quando lemos obras literárias, poesias ou mesmo ensaios e artigos em que ao longo de um processo esses conteúdos complexos sofrem alterações de vocabulário, estilo, narrativa e também de significado e modo ou forma de construção. Percebemos isso também quando nos damos ao trabalho de colecionar, por exemplo, traduções dos Sonetos de Shakespeare.

 

Na mente de um escritor ou escritora, de um pesquisador ou pesquisadora, tradutor ou tradutora essas variações são compatíveis e permanecem presentes no seu mapa de crenças, sendo as mais recentes ou mais aperfeiçoadas ou consideradas melhores mais utilizadas sem que, no entanto, na maior parte dos casos, este autor perca ou abandone em seu mapa mental as outras versões. Lemos constantemente ou podemos ler relatos de tradutores, autores, poetas ou mesmo cientistas sobre as mudanças de suas crenças ao longo de um processo determinado.

 

Poderíamos avançar aqui em outros exemplos, mas acredito que isto já basta para se ter uma ideia desse aspecto dinâmico do Mapa de Crenças de cada um de nós. Ressalte-se, apenas, que isso não significa que não escritores não colecionem também em seu mapa de crenças, crenças antagônicas ou distintas no todo ou em detalhes em relação aos mesmos fatos, às mesmas coisas e às suas próprias fantasias.      

 

Tenho uma intuição geral forte sobre este tema e essa imagem de Armstrong me ajuda muito a desenvolver essa intuição aqui um pouco mais. Desde que li as Meditações de Descartes e, em especial, a Primeira Meditação, pela primeira vez, tive um insight absurdo: posso enumerar todas as minhas crenças? Minha resposta foi que posso começar a anotar minhas crenças em um caderno. E em sequência imaginei que não conseguiria enumerar todas as minhas crenças em um caderno. Mais tarde isso me conectou a um outro insight a partir daquilo que poderia ser o que Wittgenstein chamava de proposições elementares.

 

Tomando uma medida ou método diverso do dele que simplifica em tipos de crenças por redução, podemos dizer que Descartes faz na primeira Meditação, uma espécie de roteiro ordenado e enumeração dos capítulos ou tipos possíveis das nossas crenças. Veja que quando ele faz a exposição sistemática e geral do método da dúvida, ele faz isso por tópicos, ou seja, em vez de refutar cada crença em especial ele opta por ir metodicamente por partes e usa argumentos conhecidos para fazer isso atacando por conjuntos ou capítulos certos tipos de crenças.

 

A ideia de um mapa das crenças de Armstrong corresponde ao exemplo que eu usava para exemplificar a escolha de Descartes. Você pode adotar um outro caminho para refutar suas crenças e chegar ao “eu penso” como substrato final ou como pressuposto inegável ou uma crença irrefutável - toda vez que a proferir em seu pensamento ou expressar ou simplesmente erguer seu caderno de crenças e dizer: bem, algumas ou muitas podem estar erradas, assim como não podem todas estarem certas, mas algumas crenças estão certas neste caderninho ou nesse mapa de crenças.

 

Uso até hoje o exemplo do caderno de crenças. Se você começar a anotar num Caderno tudo que acredita o trabalho será quase infinito, mas por hipótese, vais aceitar que é possível fazer isso e que algumas coisas que você coloca ali são tão óbvias ou quase irrefutáveis e outras são deveras banais ou corrigíveis ou até já corrigidas mas continua ali e são lembradas com ironia e humor por cada um de nós. Vais encontrar nessa caminhada ou auto exame, crenças mais seguras, então, aquelas a que você dá mais crédito e crenças mais instáveis, sutis ou sensíveis a uma ou outra forma de refutação e outras que parecem ser carentes de alguma correção ou reparo. Em todo caso, você pode fazer isso e pode, portanto, revisar suas crenças. Uma curiosidade aqui é que mormente erros, incorreções ou imprecisões, essas crenças equivocas não são simplesmente depositadas em uma lixeira e esquecidas. Você pode não fiar mais nelas, mas elas permanecem no seu mapa mental de crenças.  

 

Não é difícil imaginar que com o tempo, será uma tendência racional que você vai acabar por classificar essas crenças em tipos de crenças e aos poucos vai acabar também tendo a capacidade de as ir revisando. Você irá hierarquizar suas crenças ou ordenar suas crenças, dividindo elas em crenças mais importantes ou prioritárias e crenças menos importantes ou menos prioritárias. Ao longo da vida, e é no curso da vida que o pensamento deve caminhar, você pode mudar o conteúdo desse caderno, despachar algumas crenças e também corrigir essas crenças e construir novas crenças. Alguns alunos e alunas mais entusiasmados chegaram mesmo a topar fazer isso e os resultados foram incríveis porque boa parte deles acabou por me dizer que a coisa mais importante nesse processo não era saber o que era seguro ou inseguro, mas sim como algumas crenças seguras acabavam por estar relacionadas a outras crenças que pareciam ser apenas definições ou decisões conceituais. Tem aquele aluno que também pensou em algo como nós ou núcleos analíticos espalhados no meio dessas crenças.

 

O mapa de crenças ou o caderno de crenças parece explicitar uma exposição cartesiana de crenças no detalhe. Aqui não se trata mais de usar um método da dúvida para encontrar a certeza, mas sim o método da exposição das crenças para visualizar a rede ou a trama de crenças que constitui o nosso horizonte e perspectiva epistêmica existencial. Algumas crenças foram adquiridas por hábito, porque não havia ou fazia sentido ter razões para duvidar no curso normal da vida. E assim fomos acumulando crenças sobre crenças e formamos uma rede vasta de crenças. Algo que também me veio a cabeça agora, foi o lugar dos sistemas filosóficos e o impacto deles nos sistemas, mapas ou cadernos de crenças de um filósofo ou filósofa qualquer. É de se pensar que esses sistemas acabam organizando em diversos níveis e dos diversos tipos de crenças desse personagem. E não é assim que ocorre de fato?

 

Outro aspecto importante me parece ser o fato de que: nossos mapas pessoais de crenças, tem conexões com os mapas de outros indivíduos. Incluso, indivíduos que já não estão mais por aí. Em certo sentido, todos nós temos uma certa consciência de crenças compartilhadas e em muitos casos consciência de algumas fontes pessoais de nossas próprias crenças que só são próprias porque as possuímos, mas nos foram dadas e tiveram a sua origem em uma fonte exterior a nossas mentes.

 

Por fim, é preciso arguir aqui, porém, que algumas crenças são absolutamente pessoais. Suas fontes não são externas. Nós as criamos e produzimos por própria reflexão e intuição. Ou seja, nós produzimos crenças também por interpretação e por uma espécie de jogo de busca de sentido e significado, narrativa e compreensão sobre as coisas, os fatos e as pessoas. E essas crenças também podem possuir valores de verdade especiais ou aguardarem confirmação, correção ou refutação no nosso jogo amplo da vida e da busca de sentido da vida.

 

Obs.: O mapa de crenças pode corresponder a um caderno de crenças ou a um sistema de crenças. Mas deve haver uma espécie de dinâmica entre crenças rígidas e crenças moles, crenças mais estáveis e crenças que vão mudando de conteúdo a partir de sua situação no mapa, localização ou de suplementação de informações. Vou dar um exemplo simples aqui. A Revolução Farroupilha é um episódio histórico que não somente faz parte do imaginário simbólico dos gaúchos e gaúchas – ainda que existam gaúchos e gaúchas que não dão a mínima para isso, mas que tem gerado muitas controvérsias e polêmicas no último período. Creio que vale examinar isso sob as luzes de um mapa de crenças compartilhados socialmente que sofre abalos pontuais e no todo. Isto é, há uma disputa sobre a conformação das crenças a respeito desse episódio histórico. A única pergunta que me surge é como corrigir crenças equivocadas ou mal informadas sobre esse episódio, sem gerar, apenas resistência e/ou uma guerra do osso cujo resultado é soma zero.

 

(1)   Gregory Gaboardi.

(2)   Mapa de Crenças.

(3)   David Malet Armstrong.

(4)   Rene Descartes

(5)   Ludwig Wittgenstein

 

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