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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

“A PRIMEIRA VITIMA DE UMA GUERRA É A VERDADE”

 Assistir ao filme Munique: no limite da guerra, pela Netflix, gera uma sensação estranha, um certo Deja Vü, do tipo já vi esse filme antes. Aquela complacência burocrática e encenada com o modo como os cuidados com a Paz e as possibilidades de uma guerra, eram tratados e são tratados pelos líderes das nações e seus staffs. No caso deste filme, o modo como as grandes potências européias no século XX tratavam esses assuntos aparentemente triviais e cotidianos, de tal modo que nenhuma dramatização parece fazer sentido, quando o que ocorre de fato é uma marcha quase combinada de ambos os lados para a insensatez e a barbárie, o terror e o sac5rifício de inocentes com uma complacência cerimoniosa.

Não é uma sensação distante aliás daquela que temos quando vemos a história da relação entre os EUA e a URSS ou hoje EUA e Rússia sobre a Ucrânia ou  com o Oriente Médio ou as Repúblicas próximas ou seus quintais, incluso Balcãs, Cáucaso, África, América Latina e alhures. Essa sensação nos faz associar diretamente esse modo com a gigantesca carnificina ocorrida durante todo o Século XX e que prosseguiu nas duas primeiras décadas do Século XXI. E nos faz pensar nas responsabilidades e impunidades.

A coisa é tão facilitada, sem ONU ou com ONU, que parece haver no ar uma espécie de diálogo onipresente e de consentimento nas cabeças dos líderes dessas grandes potências globais ou regionais: ah, guerra ali? Vai lá e faz. Simples assim. E esse é o modo padrão como as potências regionais ou globais lidam com os países vizinhos, próximos, um pouco distantes ou nas suas áreas de influência e interesses. Simplesmente mandam ver e combinam antes, numa espécie de diplomacia de encenação. 

Veja bem, que antes mesmo da primeira guerra mundial, em meio a ela, depois dela, na segunda guerra mundial, na guerra fria e a partir dos anos 90 até os dias de hoje essa é a dinâmica padrão dos Foreign Affairs. Fazer guerra no início do século só dependia de construir uma narrativa a priori ou sobre um determinado pretexto ou interesse inegociável, indepoendentemente da sua legimidade e de alguma contestação, ou então como é muito corrente hoje, a posteriori e impor essa narrativa criando um ambiente de tal modo que pareceria razoável a qualquer observador, excluso os povos desses países e as futuras vítimas civis e alguns observadores idealistas internacionais, tudo bem, faz um arranjo aqui e ali, constrói um discurso de legitimação e vai lá e faz. Ou seja, o velho ditado de que a primeira vítima da guerra é a verdade, foi longamente aperfeiçoado no século XX e hoje mudou de categoria passou de um enunciado constatativo para um enunciado condicional. Essa mudança deveria deixar arrepiado qualquer cidadão e cidadã desse planeta.

Assim, passamos sem a ONU de um Constatativo:

A primeira vítima da guerra é a verdade.

Para, com a ONU e o atual, amplo e disseminado sistema de informações para um Condicional:

Se queres uma guerra, produza uma mentira.

Alguém poderá pensar que estou aqui sendo ingênuo ou desconhecendo as razões de estado ou que tenho dificuldade para compreender a história. Porém, quando olhamos para o Afeganistão e sabemos, só para variar um pouco o foco, que Osama Bin Laden e a Al Qaeda foram o pretexto para aquela invasão e sabemos que a CIA e, portanto, o governo americano teve em mãos já o endereço de Osama Bin Laden em Tora Bora já em dezembro de 2001, para encerrar qualquer iniciativa de invasão ou de guerra continuada no Afeganistão, mas negligenciou isso. Que o mesmo governo apresentou a comunidade internacional a mentira de que Sadan Hussein possuía armas de execução em massa, como justificativa para mais uma vez ir lá no Iraque e destruir as vidas daquele povo.  

O filme que me levou a enunciar isso hoje aqui, narra com pinceladas de ficção e elementos de realidade histórica um episódio diplomático decisivo que antecede a Segunda Guerra Mundial. As pinceladas de ficção ficam por conta de algumas personagens que seriam o elo de ligação na trama. Dois ex-colegas de Oxford, um alemão e outro inglês, que se reencontram participando cada um deles nos dois lados opostos das negociações do Acordo de Munique.

Dei mais atenção, porém, ao assistir o filme a caracterização das personagens reais  e concretas e para uma espécie de tentativa de atenuação da responsabilidade ou erro de Neville Chamberlain na forma como encarou Hitler. Haveria uma razão para isso, segundo a versão autoral dos fatos. Neville Chamberlain estaria retardando o inicio da guerra para permitir algum preparativo do seu lado e ir, por assim dizer, “levando no bico” o líder alemão. Como se houvesse uma grande astúcia e um velho sabujo por trás dessa estratégia de apaziguamento. 

A interpretação de Jeremi Irons é muito boa e permite, não apenas pela verossimilhança, mas mesmo pela caracterização e o timing racional do ex-primeiro ministro inglês, identificar a dimensão da mentira no preambulo da segunda guerra. É evidente que Neville estava errado na estratégia de apaziguamento em relação a Hitler. Ele estava tentando negociar até o limite com uma fera indômita, desconsiderando todos os claros sinais de fanatismo e de fascismo que marcavam a atuação de Hitler, num momento em que os judeus já eram perseguidos e em que a Alemanha Nazista já tinha anexado a Áustria na Anchluss. Ou seja, num momento em que não poderia mais subsistir nenhuma dúvida sobre as pretensões beligerantes e expansionistas de Hitler.

Tendo a considerar que além de um imperialista ensimesmado e conservador, ele possuía alguma espécie de complexo de inferioridade em relação ao irmão seis anos mais velho já falecido na época, um ano antes para ser mais exato. Porque, é justamente sobre a memória notável dele que Neville procura promover uma ação diplomática exitosa com os alemães e italianos. Austen colheu um Prêmio Nobel da Paz, já Neville a Segunda Guerra Mundial. Vejamos um pouco disso aqui.

O irmão de Neville, Austen Chamberlain que permaneceu 45 anos na Casa dos Comuns, havia recebido o Prêmio Nobel da Paz em 1925, junto de seus companheiros de ações diplomáticas pelos oito tratados de Locarno, assinados entre Alemanha, França, Inglaterra e Itália e outros países para suplementar e reajustar os nefastos acordos ou tratados do pós guerra. Ele era inventor de uma certa estratégia que pode ser a matriz da estratégia usada por Neville “arranjos especiais para atender a necessidades especiais”, criando uma espécie de regra de excepção para certos tratados. Não sou um especialista nesse tema, mas acredito que não há como explicar as ações de Neville sem esse pano de fundo em tela. E basta uma simples pesquisa para se verificar as conexões entre o Tratado de Locarno e o Tratado de Munique. Sendo o tratado de Munique algo como um reajuste do anterior mais ao sabor e gosto dos interesses alemães, nazistas, e também italianos, fascistas. 

Neville, como é retratado no filme, parecia ser muito vaidoso e despreocupado em relação a operações de inteligência e de espionagem ou contra espionagem, se sentindo superior na estratégia a qualquer vantagem que pudesse ser retirada a partir da inteligência. Se tem uma coisa que o filme mostra é que ele realmente optou por um resultado diplomático imediato, contra uma política de longo prazo e sustentada. Ele estava esticando a corda com Hitler ao máximo. Porém, o filme apresenta também e mais uma vez a hipótese ou alternativa histórica de que uma rejeição inglesa e francesa nas negociações enfraqueceria Hitler e fortaleceria certa facção de militares de carreira alemães que gostariam de afastar Hitler do poder. A dimensão histórica aqui mistura a característica irônica dessa hipótese. E a personagem de Neville de certa forma expressa isso: nada deteria Hitler, o máximo que se pode fazer é dissimular nossa objeção a ele e aguardar um tempo melhor para enfrentar ele.

Todo mundo sabe que isso apenas facilitou a invasão da Polônia e moto continuo a deflagração da guerra em setembro do ano seguinte. Dando um ar de legitimidade as pretensões de Hitler sobre os Sudetos e, portanto, admitindo as ambições expansionistas dele. A teoria da busca de ampliação do espaço vital não uma quimera, é a própria lógica imperial nazista levada as suas últimas consequências que envolve não somente tomar um espaço, mas saquear esses territórios e submeter as populações desses lugares a sua opressão étnica e social.            

Churchill depois faz a metáfora mortal dessa política de apaziguamento: colocaram a cabeça na boca de um leão faminto e esperaram que ele não os devorasse? Foi de fato um erro. Acredito que a vantagem desse firme é praticamente colocar a peça nesse episódio que faltava e completar a grande narrativa ainda que cheia de dissonâncias sobre a perspectiva inglesa da Segunda Guerra. Completa Dunkirk, Churchill e alguns outros filmes.

Sobre a falta de uma Otan e a questão de um staff estratégico a altura, chega a irritar ver a empáfia maníaca da elite inglesa em relação ao processo histórico que estão enfrentando. As cenas da hora do chá, o “não tratar disso agora”, o retardamento de informações e mesmo observarmos que um assunto tão grave dependia de um staff limitado e pedante, arrogante e torpe.

Por fim, a caracterização de Hitler faz uma importante contribuição em desvendar sua força de constrangimento contra um jovem que, por hipótese ou ficção, poderia ter liquidado com ele. Pode não ter existido essa personagem, mas com certeza diversos outros que passaram de admiradores a conspiradores contra ele, também se sentiram constrangidos e demovidos de promover algo contra esse monstro. Isso também aconteceu com Stalin.

É triste se perceber como é fácil matar Gandhi, Luther King, etc, e quase impossível matar uma criatura dessas e isso não é assim por um sistema de proteção erguido sob paranóia persecutória sistemática, mas por certa caraterística da personagem que parece tornar esse tipo quase inatingível. Os tiranos, em geral, quando são assassinados, o são antes de terem o poder ou imediatamente depois de perder o poder, quase jamais no exercício de seus mandatos. Aproveitei para esboçar parte de um longo comentário sobre o filme que começaria com "a primeira vítima de uma guerra é a verdade". E terminaria com a versão retórica de Churchill que era a única resposta tática possível às consequências nefastas desse acordo de Munique e a essa política de apaziguamento dos conservadores, que também sofriam influência, é bom que se diga, de simpatizantes ingleses da política de Hitler. 

A verdade mais terrível é que a Inglaterra e a França venceram a primeira guerra, afundaram com a providencial ajuda americana a Alemanha no tratado de Versalhes e foram absolutamente negligentes em manter e preparar seus exércitos para o troco. Em história se aprende muita coisa compreendendo que um péssimo acordo tem consequências sempre. E isso vale para o fim da primeira guerra e o acordo de Munique, entre outros episódios. O modo como ingleses e franceses, em sua cerimônia dispuseram dos sudetos na mesa  e cravaram o destino da Tchecoslováquia, é vergonhoso. Aquilo não é diplomacia, é puro imperialismo.

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