SOBRE A PANDEMIA E O PÓS
PANDEMIA, do Professor José Guilherme Pereira Leite
Peço licença aos leitores e
leitoras e, especialmente, ao autor, para apresentar este excelente texto, com
uma pequena reflexão minha.
Tenho observado uma situação
corrente na Pandemia: ela acirra ou acentua muito os traços de caráter e as
tendências morais das pessoas. Quem é bom e tem boa vontade tende a ser muito
melhor e a ter mais boa vontade ainda e que é ruim e perverso, cínico ou
levemente ruim, tende a ficar muito pior. Mas talvez essa boa vontade não seja
suficiente. Ora, todos sabem que sou otimista por natureza, mas por não me
afastar da realidade no isolamento e nem antes dele, eu diria que as coisas
podem piorar e muito. Seja porque os ruins e os perversos tem vencido muito e
desde muito tempo e tem essa vantagem acumulada já e que é baseada na
desigualdade profunda da qual eles são especialistas em se articular, tirar
vantagem e agravar. Seja porque os bons ou os que se julgam bons, tem ainda
muita dificuldade para entender que não adianta ser bom em qualquer sentido
sozinho e sem ser relativamente aos demais. Então, só piora.
Esse texto me parece tocar por
outro viés, mais técnico, ilustrativo e metódico, também nesse ponto. Se eu
estiver enganado, me perdoem. Eu tentei. Boa leitura.
"À semelhança de ficções
distópicas, a pandemia aprofundou a artificialização do cotidiano, isolamento
de pobres em moradias precárias e sentimento de angústia sobre o futuro.
Previsões sobre o mundo pós-coronavírus são terreno fértil para a ficção, não
para a reflexão acadêmica, diz autor.
Sobre a crise pandêmica que nos
acomete, eis a única futurologia crível, porque já presente: tudo o que estamos
passando aumentará os níveis mundiais de desigualdade sócio-étnico-econômica,
que já eram horrorosos em perspectiva cristã ou funcional. Mas e a evidente
melhora do ar e das águas, os tais ganhos ambientais que o “decrescimento”
trouxe?
Nas grandes cidades, até o
momento, o novo coronavírus transformou os mais ricos em meros consumidores, na
linha das ficções distópicas. Estamos mais próximos dos robôs do comércio
online, em nosso cotidiano privado dominado por premências fisiológicas e pela
atividade turva dos encontros virtuais, das relações impalpáveis com imagens.
Netos não tocam avós. Mantemos uma dieta solitária, recorrendo a aplicativos de
compra que prometem agilidade na entrega e auxílio nas escolhas racionais,
balanceadas, ao estilo da nutrição sideral.
Aumentamos ainda mais nosso uso
de máquinas mcluhanianas que, como extensões de uma corporeidade agora
verdadeiramente truncada, expandem as telepresenças e estimulam a musculatura,
adiando o colapso de nossas estruturas ósseas “desenhadas” pela natureza para
funcionar ao ar livre, sob sol, vento e chuva Sol, vento e chuva tornaram-se
commodities impossíveis, cujo gozo é controlado pelas leis que regulam a
fruição do espaço. O novo coronavírus, desse modo, aprofundou a
artificialização da vida e impediu experiências pouco assépticas, cultuadas
pelo hábito descalço e desnudo. A vida boêmia voltou a ser infecta.
Compartilhar cigarro é risco.
Com luvas kubrickianas,
borrifamos germicidas nas cascas de ovo, respirando por trás de máscaras.
Complicou-se o contato orgânico entre mãos e alimento. Ratificou-se a
telemedicina, e, mesmo para aqueles que vão a hospitais, o médico é sem rosto,
como naquela cena marcante do “E.T.”, de Spielberg. No sufoco, ficamos da porta
para dentro, minando-se assim a tímida porém fortuita retomada do espaço
público, sobretudo pelos jovens. A maioria não fugiu para o campo. O campo é
"prime", como a casa de praia.
Os pobres, até aqui, o novo
coronavírus reduziu à condição de presidiários domésticos, no programa
canhestro da autoconstrução e do “in-saneamento” bubônico. As habitações são
exíguas e de pouca infraestrutura. São as células cínicas do morar onde grandes
e complexas famílias revezam um só banheiro, tornando risível a cartilha do
isolamento.
Há até aqueles que têm quintais,
mas assim mesmo rezam diuturnamente pelo pão do dia, circulam à procura de
caridade ou assistência na defesa da prole, não dispondo de playgrounds nem
sequer em rodízio. São as periferias de sempre, onde estendem-se as filas da
Caixa, onde falham as conexões de rede e o Rappi vai dormir cansado depois de
abastecer o centro. São os barracos de sempre, onde netos e avós dividem a
cama.
Entre ricos e pobres, algo em
comum: poucos sabem seu destino na nova configuração socioeconômica que
emergirá e que desconhecemos, pois está em processo. Assistentes sociais,
terapeutas e psiquiatras trabalham como nunca, na urgência de fomes e angústias
extremadas. Aumentou o consumo de bebidas e psicotrópicos, conforme o vaticínio
de Huxley. Pipocam previsões arrepiantes a respeito do ilhamento, de um mundo
sem praças ou parques, com ilusões neuronais instaladas na sala.
Em tais imaginações, se houver
renda garantida, os óculos de videogame nos trarão o céu aberto, turbinado por
tecnologias endodérmicas complementares que, ao estilo “Black Mirror”,
restaurarão na pele a sensação perdida: sol, vento e chuva, sexo e fluidos,
plantas e terra, rumores dominicais de criança correndo.
As TVs e rádios, os jornais e a
internet se acham assim coalhados de charlatões do amanhã, dublês de
intelligentsia preditiva externando palpites exóticos sobre o mundo porvir,
arriscando-se na roleta da futurologia que consagrou Nouriel Roubini em 2008.
Na Bloomberg News, Anthony Fowler alertou elegantemente os incautos: a Covid-19
é mau negócio para as ciências sociais, mas poucos ouviram.
Produzem-se assim quilos de
caracteres que enrubescerão carreiras, conforme aconteceu com Giorgio Agamben:
apressado em esposar os efeitos do "lockdown" e sua justa visão sobre
as brutalidades biopolíticas do Estado ultramoderno, Agamben apostou na
minimização constrangedora da doença e de suas consequências sanitárias, num
lance de má-calibragem doravante carimbado em seu curriculum.
Essa sociologia afobada praticada
igualmente por medalhões e neófitos ignora a demora do conhecimento e maltrata
a lição das teorias da história: as imanências do presente são assaz
imanifestas e sujeitas às muitas variações do acaso, do imprevisível e do
inimaginável. A própria pandemia é exemplo disso. Portanto, os cenários de
futuro não são brincadeira boa para rascunhos especulativos, mas são férteis
para a ficção e a arte. Essas sim, como instâncias da livre maquinação,
interessam enormemente porque apresentam insights, fobias e posições relativas.
Uma dessas ficções vulgares
circulou no WhatsApp da classe média na última semana. Em um vídeo inglês, um
homem louro e de rosto quadrado, com sotaque britânico, se encontra num futuro
distante e conta para seu filho que o ano de 2020 foi marco de uma virada para
a humanidade: vivíamos um dia a dia de equívocos, destruindo o planeta,
siderados por telinhas e telonas que nos impediam até mesmo de atentar para os
filhos. Foi então, diz o pai, que veio o novo coronavírus, causando
transformação radical.
Moral: não foi fácil, é claro,
muitos morreram, mas foi graças àquela longínqua pandemia que voltamos a viver
em família, consumir menos, andar devagar, desligar os celulares, respirar
fundo, cozinhar folgadamente. No “fofismo” que nos assola, pipocam carochinhas
de mau gosto.
Essa é particularmente grotesca e
interessante porque sintetiza o delírio oposto ao desespero apocalíptico. Sua
fantasia central é a transformação da doença em cura, pressupondo que a
pandemia é panaceia e fará emergir um mundo melhor. É a transformação da
Covid-19 no “Emplastro Brás Cubas” para todos os desvios predatórios que
andamos cometendo.
Até o momento, exceto pela
desaceleração que indubitavelmente melhorou o ar e as águas urbanas, nós apenas
pioramos em todos os quesitos de que o próprio vídeo trata. Há muito sabemos
que toda depressão econômica resulta positiva para o meio ambiente. O desafio
real, porém, não é simplesmente puxar o freio da economia, mas também encontrar
formas novas de renda, desatreladas da performance produtiva, a fim de que a
recuperação ambiental não se faça no lombo dos mais pobres, às custas de seu
martírio e de seu extermínio, como está acontecendo.
Qualquer celebração de supostas
conquistas ecológicas, elevações espirituais ou "joie de vivre"
baseada nesses primeiros efeitos da pandemia é tão caricata e paralógica quanto
o “fim do mundismo” e tão desgraçadamente necrofílica quanto a trampa
bolsonarista do negacionismo."
Por: José Guilherme Pereira
Leite, sociólogo e ensaísta, é professor e coordenador de Relações
Institucionais da Escola da Cidade.
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