ANDRÉ E ALICE
Ele via tudo como um bom sinal,
escrevia pensando nisso e
dormia pensando nela.
André era um Bobo.
Mas era um bobo que amava alguém.
A imagem que agora via no espelho
era de um homem feliz. Tinha saído da cama mais uma vez e deixado ela nua em
pelo deitada com um dedo na boca e a palma da mão sobre a coxa direita. Ele
estava extasiado, nas nuvens e com as pernas bambas. Ela estava feliz e ele
sabia disso. Quase desmaiada e as suas ancas à vista, que eram estreitas,
pareciam maiores. Ela aumentava de tamanho na cama. Tudo era maior com ela na
cama. Gostava desse detalhe. Ele passava os dedos das mãos nos seus cabelos
mais uma vez ainda como quem alisava uma gata manhosa que ia aos poucos
perdendo seus tremores e relaxando.
Sim, ela dormia já, quando ele
levantou para fumar um cigarro e pensar se ainda existia uma esperança envolta
deles. Afinal com tudo que acontecia com ele na cama, não podia ser só isso que
rolava ali. Não adiantava querer justificar aquela mania, ela já tinha deixado
ele mais do que avisado sobre suas esperanças vãs e excessivas. Todos os
códigos de enxotamento foram cumpridos. Mas André era o homem que insistia com
ela. Ia e voltava. Era chamado, amado e depois espezinhado, mas não desistia.
Não desistia e não resistia nunca. Era um traço dela, somente dela e dava
resultados.
Ela fazia o que bem entendia com
ele. Era capaz de arrancar um “eu te amo” dele e logo depois dar um adeus bem
despachado com a maior tranquilidade. Para ele era mais um sinal entre tantos
de que, apesar disso, era ótimo. Salvo esse detalhe, era ótimo. Isso assustava,
aborrecia, mas por fim encantava ele cada vez mais. Era um feitiço que o fazia
ficar por perto e voltar abraçando ela e lhe pegando a mão, como se fosse seu
grande amor, o amor da sua vida. Ia lá para dar beijos no pescoço e em outros
lugares, na rosa e no peito, pegar suas mãos e tocar nos seus joelhos. Tocar
suas coxas e tentar avançar. Algumas vezes passava e parecia que todo aquele
esforço e dificuldades valia a pena. Ela chamava de migalhas e para ele era
apenas o máximo que ela podia dar ou queria dar. Se acostumou com isso. Ficou
habituado.
Os joelhos de Alice, que André
tocava, pareciam convites. Mas não eram só eles. Aquele perfume de erva doce e
maracujá embriagava ele, e ela não sabe porque ele amava aquele cheiro e aquela
pele. Julgava que eram outros os atrativos. O banho que ela tomava e aquela
ousadia na janela do banheiro entreaberta, parecia uma oferta ao seu olhar
perscrutador, um sinal ou assinatura, de um pedaço luminoso de vida e tomava
entre as mãos o reflexo de amarelo refletido pelo sol das seis da manhã. Tantas
vezes a ternura dela chegava naquelas horas vazias, naqueles intervalos entre
uma coisa e outra, que só compreendia isso com a saudade, com a falta. Tinha um
gatilho afetivo ali que como seus recados fortuitos e deixados no whatsapp
faziam ele voltar. Aqueles recados que só podiam ser lidos e respondidos com o
coração e o corpo limpo, após um banho e longa meditação.
O corpo que agora não repousa
comigo na minha cama, sob meu edredom vermelho, com aquela ressaca maluca, era
ainda meu. O corpo que não está mais encolhido do lado esquerdo em forma de
conchinha parece ainda estar ali me chamando ao beijo e ao carinho. Alice,
porém, só sabia dormir em sua casa, na cama de um menino e encostada na parede.
Ela talvez emanasse dali um sono mais profundo, como se atravessasse os
tijolos, como se desejasse fugir e ser uma personagem em outra dimensão e
deixasse o corpo abandonado para André. E ele via ela com aquele corpo de
mulher comprida, tão grande, e ao mesmo tempo miúda de gestos, trejeitos e de
manias que pareciam medidas de uma personagem de romance noir. Ele amava pegar
ela em uma tomada só e ver ela se entregar pedaço a pedaço. Por partes, até a
hora do “vem” e, então, ele ia. Por isso, decorou todas as tatuagens dela,
porque para chegar em cada uma precisava conquistar seu corpo e seu amor. Media
seu corpo com as palmas das mãos e os lábios. A pele dela o excitava e parecia
lhe chamar.
Quando olha para essas
lembranças, ele fica muito feliz. Não sente o lado vazio da cama, sente a
presença dela e o cheiro dela. Suas narinas desde o primeiro dia se habituaram
com ela mais, bem mais do que o desejável. Pensava nos beijos depois do vinho,
depois do sexo, depois do gozo e dos outros beijos e desejos de boa noite.
Beijos roubados, mordidos, molhados e tremidos.
André – ele sabia - nunca
despertou um interesse especial para ela, mas ele sentia que ela gostava de sua
presença ali. Entendia que não poderia dar nisso mais que um longo e arrastado
affaire enfermo, enfermo de uma amizade e cumplicidade rara para ele e parece
que para ela também. E seguiam pelo ano adentro, uma semana sim, noutra não. Um
mês depois e se viam de novo. Rupturas e reencontros. Não conseguiam se odiar
por muito tempo, por mais que quisessem. Ele queria odiar ela, mas não
conseguia de forma alguma deixar isso tomar conta de si. Ela sabia disso e por
isso mesmo podia reclamar de tudo nele, mesmo do que nem precisava ou não era
necessário. Seus hábitos desleixados e relaxados, suas blagues, tiradas ou
piadas toscas. Mas ela sabia que ele amava ela. E aquele complexo que se
misturava numa miopia afetiva de ambos, uma que tinha a vista dupla e outro que
sempre enxergava mais do que era exibido.
Mas no fim se encontravam de novo
com os cabelos ralos, a música, o cinema e os atores e diretores prediletos, os
livros e os ataques teóricos e críticos dela. Ele jamais conheceu mulher tão
franca, feroz e audaz em todos os sentidos. Ele gostava daquilo. Poderia temer
ela, mas amava muito o que ela fazia com ele e com qualquer coisa em que ela
pusesse seu olhar crítico.
Ele devorava tudo que ela inventava
na cozinha em suas panelas. Mostrava interesse na preparação, mesmo sabendo que
jamais ousaria cozinhar para ela. Fez cara de espanto e lambeu seus dedos e os
meus dedos na primeira vez. Foi um banquete que saciou o estômago e a alma
ardente de André. Alma essa que ele escondia.
Tinha coragem para amar ela, queria cuidar
dela de verdade, mas ela voltava a dizer que “não queria cuidar de homem”. Mas
cuidava tão bem que ele gostaria mesmo de retribuir tudo sempre.
Ela era bonita para ele, ela não
acreditava. Ela tinha cultura e uma sagacidade que fascinava ele. Atacava as
questões com um sarcasmo que lhe tocava muito, pois ele achava normal praguejar
e debochar das coisas como forma de diminuir a importância delas e saber tratar
delas sem exagero ou paixão. Ele achava a boca dela maravilhosa. Sentia-se
engolido por inteiro quando estava com ela, como Jonas na baleia e se sentia
feliz dentro dela. Sentia envolvido passo a passo pela sedução dela. Sabia
contar seus passos. Era pontual com ela. No dia que ela enrolou a echarpe no
corpo e dançou para ele - por mais que nesse dia ele tivesse sido dispensado -
ele soube que nunca mais ninguém dançaria assim para ele. Teve a prova
definitiva do que ela era capaz de fazer para o homem que amava. E ele queria
muito isso.
Chegou em casa e chorou. André era réu confesso, quis gostar mais,
tentou alinhavar uma relação, mas não levou. Ela alegava falta de admiração e
ele olhava para si mesmo e via que essa era uma questão para a qual não haviam
argumentos e se calou. Mas sou homem, pensou, nós não sabemos o que é o amor e
quando o descobrimos não sabemos o que fazer com ele. Quando ele estava assim
instável e desconfiado, inseguro pelo passado e sem esperança no futuro, ele sofria. E sabia que ela sofria
também.
Olhava, agora, a água correndo
pelas paredes e lembrava das torneiras e do chuveiro. Tinha se acostumado com o
pinga pinga do banheiro e a água fria da cozinha, mas não queria deixar assim. Dizia para si
mesmo que amava aquela mulher como nenhuma outra e que qualquer coisa que
fizesse valeria a pena. E fez. Pegou, um dia, dois cálices e encheu eles de
vinho até a metade, havia lavado eles há
pouco com todo cuidado e precisão e a cor do vinho transformava os vidros deles
em espelhos. Ela chegou e sentou e ele olhava para o seu corpo pelos espelhos,
via seus olhos negros vivos e cintilantes lhe atraindo. Não resistiu levou a
mão até a mão dela e pegou de novo para sentir o calor que só a mão dela
lhe transmitia. Ficou ali ouvindo ela
discorrer sobre o seu dia e pensando como gostava de estar com Alice. Brindaram
e sorveram mais uma vez das suas companhias e entraram à noite abraçados na
cama, como se nunca mais fossem se separar. Mas, na manhã seguinte, Alice
foi-se e o deixou sem seu corpo, ficando somente o cheiro de sua alma e dos
seus sexos no quarto, no sofá e no banheiro.
André sabia o que fazer. Ia
esperar a nova maré alta, que a lua trazia e ia lá amar ela de novo. Foi até
sua coleção de CDs e tirou o Blade Runner da prateleira, botou para tocar no
volume máximo e ficou no sofá olhando para o teto e intercalando lembranças e
esperanças dela. Quando o CD acabou ele se levantou e foi tomar um banho. No
banho, então, lembrou da primeira noite. Das suas gargalhadas surpresas com o
que ela fez com ele e da sua infinita alegria por aquela entrega toda. A
cortina da sala balançava da mesma forma como naquela madrugada em que ela
sentou sobre ele no sofá e ele beijou suas pernas. E ele lembrou como era boa
aquela sensação lenta, de estar ali sem pressa tomando uma brisa amena, entre
beijos e mordidas nos lábios, mãos carinhosas e olhares que não precisavam de
legendas nos filmes.
Ele fecha os olhos e lembra dela,
sente o cheiro de ambos, o perfume quase mágico e a gargalhada nervosa de Alice
na cozinha. Ela ria por quase tudo, para tudo, ria para ele e ria dele também.
Dizia bobagens para ver ele se perturbar ou responder e ele não respondeu.
Ficou mudo, deu de ombros quase sempre, mas quando a olhava nos olhos ela
desconfiava mais de si mesma do que dele e ele sentia aquele prazer. Boba.
Ele estava à vontade demais no
seu mundo, pensava, e ela por alguns momentos parecia plena de tanto gostar, e
ele sofreu por não ter uma resposta, mesmo sem nunca ter lhe perguntado nada.
Ele lembra do cheiro da cama, dos travesseiros com que dormia quando a
visitava, sentia no corpo igual o corpo dela. Era como se o ultimo abraço fosse
ainda presente e tinha então vontade de chorar e chorava sozinho de alegria.
Cada lágrima que caia só provava mais o seu amor.
André sorriu por todo futuro que
poderia vir, mas que não dependeria só de sua vontade ou de seus próprios
caprichos, pois havia essa mulher, Alice, com suas vontades e suas desvontades,
seu querer, bem querer e mal querer de cada dia. Uma instabilidade nada
convidativa, mas que lhe era sedutora como um desafio absoluto a assumir o seu
desejo. Ele aceitava aquilo conformado por julgar que tudo passava, a vida
passava, mas que aquilo tinha acontecido de fato e que ele e ela sabiam.
Ele sorriu mais uma vez, talvez a
última, porque apesar das dúvidas sobre o reencontro e das dúvidas dos reencontros,
ele sabia pela primeira vez em sua vida, que aquela era a mulher para amar, que
ela era a mulher que ele queria amar e que a amava sempre e cada vez mais. De
tal modo, que nenhuma de suas diversas tentativas de lhe escapar aos lábios, ao
corpo e às palavras, davam certo, ao contrário davam sempre errado. Passou a
aceitar, perdoar e amar sem culpa. Como um personagem convertido e se preparou
para se entregar definitivamente a esse enredo sem mais nada entre ele e ela.
Assim, por partes, nos textos e em certos lugares ele voltava para ela, e eles,
enfim, tinham sucesso. Ele sabia que ia acabar nos braços dela mais uma vez.
Tinha sensações de que isso seria tão necessário aos dois que já respirava
fundo, suspirava e se entregava ao sono tranquilo da espera.
Em sonho ou na realidade, os
sinais eram para ele os mesmos. Tinha dúvidas, mas os sinais não eram mais
fantasias. Assim, nas palavras de um texto ou no sexo, ele iria acabar sempre
mais uma vez envolvido por ela. André riu, colocou, então, um ponto final no
texto que escrevia e com paciência e fervor desmedido, voltou para sua vida
normal e ordinária, preservando em si a loucura de uma paixão e o sabor na boca
do amor que para muito poucos é dado viver.
(Era Impublicável, de 17 de dezembro
de 2017.)
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