A DOR DE CADA UM E O NOSSO PAPEL
DE CUIDAR DE CADA UM
Meu pai, Antônio Boeira Sobrinho,
me disse umas frases memoráveis oito anos atrás quando estava em um leito na
UTI do Hospital Centenário. Estou ruminando sobre elas até hoje. E a cada ano
revisito elas e me ponho a pensar e completar de novo o que ele disse, porque a
época fiz um resumo tão emocionado que tremia ao escrever. Ele estava em
recuperação após mais uma intercorrência provocada por seu quadro crônico de
saúde. Essas frases e tudo que eu percebi de novo ali me deixaram com um certo
sentimento de realidade que no fundo eu creio que todos nós devemos aprender a
ter...pelo nosso bem e pelo bem dos nossos próximos.
Não é um sentimento de realidade
agradável e nem confortável, mas meu pai tinha essa capacidade incrível que eu
encontrei em poucas pessoas nessa vida de enfrentar o Dragão do Mundo e a Cruz da
Existência com serenidade, sabedoria, lucidez e muita firmeza. Eu percebi muitas
vezes em nossa íntima amizade, em nosso convívio extremamente franco e sincero que
toda essa sabedoria dele encobria um espírito muito furioso e muito enérgico,
cuja face suave e sorriso simpático e gracioso escondia ou controlava de forma
imperativa. Sob a tranquilidade do meu pai havia um vulcão extremamente febril
e em alta temperatura que simplesmente aparecia numa tranquilidade e em gestos contidos,
controlados, medidos e precisos. Exatamente como a profissão dele exigia. Meu
pai tinha desenvolvido desde menino por força das suas circunstâncias existenciais,
familiares e sociais peculiares aquele traço não tão simples de ser Capitão da sua
própria alma, como clama aquele poema que consolou e fez a fortaleza de Mandela
por 27 anos na prisão. Eu acho mesmo que é dessa luta entre a sua fúria e a sua
própria alma que se gerou a precisão dele com as palavras e o fato de que ele era
muito lacônico e certeiro em seus atos de fala e tirocínios sobre a verdade das
coisas. Talvez eu tenha virado estudante de filosofia por admirar isso nele e
me perder espantado pensando nas coisas que ele me dizia e no modo como ele me
dizia essas coisas. Isso não tira nada da grande conta que que eu devo a minha
mãe nesses e em muitos outros quesitos.
Ele estava internado pela terceira
vez – e não seria ainda a última antes de falecer no Hospital Regina em Novo
Hamburgo. Tudo ocorreu após uma cirurgia de implante de prótese no quadril que
trouxe algumas complicações em virtude de suas vulnerabilidades circulatórias,
respiratórias e cardíacas e alguns descuidos dele mesmo em relação às suas
doenças crônicas. E eu digo isso aqui porque eu não gosto de culpar médicos ou
instituições hospitalares pelos insucessos com a saúde que são resultados das
nossas ações, omissões ou negligências. E digo isso não porque não exista erro
médico ou negligência médica nesse mundo, mas porque quando não é o caso, é uma
grande injustiça atribuir a responsabilidade a outrem pelos nossos hábitos, vícios,
desleixos, descuidos ou escolhas.
Meu pai Antônio me olhou nos
olhos e me mirou de cima abaixo, com alguma dificuldade, a partir da cama da
UTI e me disse:
"Daniel, me aconteceu uma
coisa meu filho. Acho que preciso te dizer. Eu estava ali deitado na maca doente e aquilo tudo
que acontecia a minha volta, os sons que eu ouvia, as luzes e corpos, não me parecia
nada reais. Mas de repente olhei para você e eu sentia que o meu filho era
real. Porque me vinha a minha vida inteira ali presente através de você. Como
se fosse um ponto exterior a mim. A realidade é muito dura, meu filho. A gente
gostaria que fosse diferente, mas é assim que é mesmo e a gente sofre muito e
isso é de verdade mesmo, meu filho. Isso não é um sonho, ainda que pareça um
sonho, porque nos deixa meio desfigurados, estranhos. A realidade é muito mais
dura mesmo"
Quando a gente escuta umas frases
destas, se fica muito impressionado e pensando por muito tempo nela. Fica
tentando entender a mensagem e também o seu sentido mais pessoal e o significado
e você se dá conta de que você não pode sofrer mesmo pela outra pessoa, se dá
conta que pode sofrer junto, ter empatia e sensibilidade, chorar por ela, pegar
na sua mão e lhe fazer um carinho, mas jamais poderá sofrer no lugar dela. E
devemos lembrar e nos preparar, como dizia Montaigne, porque um dia vai chegar
a nossa vez também. Como me disse um amigo semanas depois disso devemos ser
felizes e não nos atacar mesmo por pouca coisa. E assim volto à mensagem do meu
irmão: a gente tem a obrigação de ser feliz, simplesmente porque estamos vivos.
E se tivermos saúde, temos que agradecer muito por ainda escapar dessa dura realidade.
E talvez possamos ser o ponto de ligação entre aqueles que sofrem e a realidade
exterior. Talvez possamos ser a ponte entre o sofrimento da vida e a
possibilidade de sair dele ou as memórias felizes da vida deles. E quando falo
deles aqui, não falo somente do meu pai, mas de qualquer ser humano que
encontrarmos em sofrimento ou desalento que podemos confortar, cuidar, amparar
e apoiar com atenção e dedicação nesses momentos duros da vida.
Essa mensagem vai para todos os
médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, técnicos e técnicas, gestores da
saúde pública que em meio a essa Pandemia são os pontos de ligação e conexão
com a realidade de milhares de pacientes pelo mundo, aqui no Brasil, aqui no
Rio Grande do Sul e aqui na nossa São Leopoldo, em especial no Hospital Centenário
e em todas as unidades de saúde, nos locais de testagem e vai também para
aqueles que aqui em nossa cidade tem a tarefa de ligar para os pacientes em
isolamento ou cuidar deles como hoje já é o caso no anexo do Hospital
Centenário, o Monte Alverne, cedido pelas Irmãs Franciscanas e que já está em
operação e cuidando da vida de pessoas como os nossos pais, mães, parentes,
amigos e conhecidos, colegas ou próximos
e desconhecidos.
Muito Obrigado!
P.S.: Reescrevi essa memória
pensando em todos aqueles que não podem ter seus filhos ou próximos juntos e no
fato de seus cuidadores estão ocupados em cumprir essa tarefa de serem o ponto
de ligação com a vida feliz e a possibilidade de sair desse sofrimento ou de
lembrar bons momentos da vida. E também como uma homenagem a todos os
familiares que não podem acompanhar seus parentes e seus entes queridos nesses
momentos de salvação e redenção ou nos derradeiros e infelizes momentos de
despedida.
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