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terça-feira, 30 de junho de 2020

A DOR DE CADA UM E O NOSSO PAPEL DE CUIDAR DE CADA UM


A DOR DE CADA UM E O NOSSO PAPEL DE CUIDAR DE CADA UM

Meu pai, Antônio Boeira Sobrinho, me disse umas frases memoráveis oito anos atrás quando estava em um leito na UTI do Hospital Centenário. Estou ruminando sobre elas até hoje. E a cada ano revisito elas e me ponho a pensar e completar de novo o que ele disse, porque a época fiz um resumo tão emocionado que tremia ao escrever. Ele estava em recuperação após mais uma intercorrência provocada por seu quadro crônico de saúde. Essas frases e tudo que eu percebi de novo ali me deixaram com um certo sentimento de realidade que no fundo eu creio que todos nós devemos aprender a ter...pelo nosso bem e pelo bem dos nossos próximos.



Não é um sentimento de realidade agradável e nem confortável, mas meu pai tinha essa capacidade incrível que eu encontrei em poucas pessoas nessa vida de enfrentar o Dragão do Mundo e a Cruz da Existência com serenidade, sabedoria, lucidez e muita firmeza. Eu percebi muitas vezes em nossa íntima amizade, em nosso convívio extremamente franco e sincero que toda essa sabedoria dele encobria um espírito muito furioso e muito enérgico, cuja face suave e sorriso simpático e gracioso escondia ou controlava de forma imperativa. Sob a tranquilidade do meu pai havia um vulcão extremamente febril e em alta temperatura que simplesmente aparecia numa tranquilidade e em gestos contidos, controlados, medidos e precisos. Exatamente como a profissão dele exigia. Meu pai tinha desenvolvido desde menino por força das suas circunstâncias existenciais, familiares e sociais peculiares aquele traço não tão simples de ser Capitão da sua própria alma, como clama aquele poema que consolou e fez a fortaleza de Mandela por 27 anos na prisão. Eu acho mesmo que é dessa luta entre a sua fúria e a sua própria alma que se gerou a precisão dele com as palavras e o fato de que ele era muito lacônico e certeiro em seus atos de fala e tirocínios sobre a verdade das coisas. Talvez eu tenha virado estudante de filosofia por admirar isso nele e me perder espantado pensando nas coisas que ele me dizia e no modo como ele me dizia essas coisas. Isso não tira nada da grande conta que que eu devo a minha mãe nesses e em muitos outros quesitos.       

Ele estava internado pela terceira vez – e não seria ainda a última antes de falecer no Hospital Regina em Novo Hamburgo. Tudo ocorreu após uma cirurgia de implante de prótese no quadril que trouxe algumas complicações em virtude de suas vulnerabilidades circulatórias, respiratórias e cardíacas e alguns descuidos dele mesmo em relação às suas doenças crônicas. E eu digo isso aqui porque eu não gosto de culpar médicos ou instituições hospitalares pelos insucessos com a saúde que são resultados das nossas ações, omissões ou negligências. E digo isso não porque não exista erro médico ou negligência médica nesse mundo, mas porque quando não é o caso, é uma grande injustiça atribuir a responsabilidade a outrem pelos nossos hábitos, vícios, desleixos, descuidos ou escolhas.

Meu pai Antônio me olhou nos olhos e me mirou de cima abaixo, com alguma dificuldade, a partir da cama da UTI e me disse:

"Daniel, me aconteceu uma coisa meu filho. Acho que preciso te dizer.  Eu estava ali deitado na maca doente e aquilo tudo que acontecia a minha volta, os sons que eu ouvia, as luzes e corpos, não me parecia nada reais. Mas de repente olhei para você e eu sentia que o meu filho era real. Porque me vinha a minha vida inteira ali presente através de você. Como se fosse um ponto exterior a mim. A realidade é muito dura, meu filho. A gente gostaria que fosse diferente, mas é assim que é mesmo e a gente sofre muito e isso é de verdade mesmo, meu filho. Isso não é um sonho, ainda que pareça um sonho, porque nos deixa meio desfigurados, estranhos. A realidade é muito mais dura mesmo"

Quando a gente escuta umas frases destas, se fica muito impressionado e pensando por muito tempo nela. Fica tentando entender a mensagem e também o seu sentido mais pessoal e o significado e você se dá conta de que você não pode sofrer mesmo pela outra pessoa, se dá conta que pode sofrer junto, ter empatia e sensibilidade, chorar por ela, pegar na sua mão e lhe fazer um carinho, mas jamais poderá sofrer no lugar dela. E devemos lembrar e nos preparar, como dizia Montaigne, porque um dia vai chegar a nossa vez também. Como me disse um amigo semanas depois disso devemos ser felizes e não nos atacar mesmo por pouca coisa. E assim volto à mensagem do meu irmão: a gente tem a obrigação de ser feliz, simplesmente porque estamos vivos. E se tivermos saúde, temos que agradecer muito por ainda escapar dessa dura realidade. E talvez possamos ser o ponto de ligação entre aqueles que sofrem e a realidade exterior. Talvez possamos ser a ponte entre o sofrimento da vida e a possibilidade de sair dele ou as memórias felizes da vida deles. E quando falo deles aqui, não falo somente do meu pai, mas de qualquer ser humano que encontrarmos em sofrimento ou desalento que podemos confortar, cuidar, amparar e apoiar com atenção e dedicação nesses momentos duros da vida.

Essa mensagem vai para todos os médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, técnicos e técnicas, gestores da saúde pública que em meio a essa Pandemia são os pontos de ligação e conexão com a realidade de milhares de pacientes pelo mundo, aqui no Brasil, aqui no Rio Grande do Sul e aqui na nossa São Leopoldo, em especial no Hospital Centenário e em todas as unidades de saúde, nos locais de testagem e vai também para aqueles que aqui em nossa cidade tem a tarefa de ligar para os pacientes em isolamento ou cuidar deles como hoje já é o caso no anexo do Hospital Centenário, o Monte Alverne, cedido pelas Irmãs Franciscanas e que já está em operação e cuidando da vida de pessoas como os nossos pais, mães, parentes, amigos e conhecidos, colegas ou próximos  e desconhecidos.

Muito Obrigado!

P.S.: Reescrevi essa memória pensando em todos aqueles que não podem ter seus filhos ou próximos juntos e no fato de seus cuidadores estão ocupados em cumprir essa tarefa de serem o ponto de ligação com a vida feliz e a possibilidade de sair desse sofrimento ou de lembrar bons momentos da vida. E também como uma homenagem a todos os familiares que não podem acompanhar seus parentes e seus entes queridos nesses momentos de salvação e redenção ou nos derradeiros e infelizes momentos de despedida.            

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