Cheguei destruído em casa estes
dias atrás. Foi um daqueles dias de cão em que você chega ao final do dia e não
sabe nem como descansar e nem como desligar. Muito trabalho intenso e agendas
se sobrepondo umas sobre as outras. Como precisava muito me distrair um pouco e
relaxar, fui olhar um filme. Caçada Mortal, com o Liam Nesson. Um filme
razoável de 2014 e com uma trama violenta que, porém, traz um aspecto sensível
e profundamente humano. Há uma sequência de diálogos ótimos entre o
investigador e ex-policial arrependido por ter matado por acidente uma criança
em um tiroteio com bandidos quando estava bêbado. Ele conversa com um menino
negro que vive nas ruas de Nova York e que frequenta a biblioteca da cidade
fazendo pesquisas e passando o tempo e que vai acabar por ser seu parceiro na
investigação que ele realiza. Os dois, bem vistas as coisas, são no fundo dois
miseráveis que resumem a sua dignidade própria e seu senso de responsabilidade
por suas vidas num diálogo reciprocamente repetido assim:
- Não tenha pena de mim.
- Eu não tenho.
Os dois miseráveis resumem sua
dignidade própria e seu senso de responsabilidade por suas vidas num diálogo
reciprocamente repetido assim, creio, porém, que esse diálogo apresenta o tipo
de linha de corte e emancipação que a gente precisa estabelecer sempre na
relação com quem sofre e com quem vive dificuldades. Não se trata de perder a
sensibilidade ou a piedade ou empatia perante o próximo. Mas sim de preservar a
sua dignidade acima de tudo. Se não se quer sucumbir a uma vitimização e a
lamúria típica de relações que são apenas mais um capítulo da humilhação,
submissão, dependência e indignidade doentia entre as pessoas. Todos sofrem,
mas não é digno ter dó ou sentir pena do outro ou de si mesmo, porque isso só
consagra mais ainda a situação desprezível da qual se deveria fazer um esforço
para escapar, seja por disposição psicológica, seja por condução, luta ou
trabalho material.
E nas relações de amizade, afeto
e familiares, isso me parece ser mais do que interessante. É necessário. Sob
pena - maldita pena - de apenas se reproduzir o sofrimento sem vencer ele no
seu primeiro campo de combate que é a consciência.
Respeito, um profundo e
inegociável ou indeclinável respeito. Ter pena não é mesmo a melhor atitude
para com o outro. É trazer a miséria do mundo e sua dinâmica para dentro de uma
relação com o outro. No caso específico, ambos trocam migalhas de afetos, mas
preservam acima de tudo sua dignidade.
Um pouquinho disso ou daquilo.
Nesse caso, pouco importa de que lado se está na condição de coitados. O filme
é exemplar nisso e carrega essa mensagem. Pois apesar da assimetria de condição
material dos dois, há uma simetria de certa miséria em ambos. Eles se encontram
frágeis e tocados pela dor e dificuldade de sobreviver. É, portanto, quando
você sabe que o outro está ferrado, mas não toca no assunto diretamente e
conduz a relação com extremo respeito a ele. Não trata ele como um coitado ou
ela como uma coitada, carente ou miserável.
Eu acho que isso é algo presente
na cultura civilizada inglesa. Pelo menos é o que eu percebo sutilmente nas
relações entre eles. Posso estar errado. Talvez tenha que pensar mais. De
qualquer modo, encontrei um exemplo de simetria que parece ajudar a abordar
essa questão da dignidade e do respeito ao outro.
Falei em respeito acima, mas
parece envolver também a visão de que a integridade do outro deve ser
preservada de modo absoluto. Lembrei de uma parábola do Jesus. O que a mão
direita dá, a mão esquerda não percebe. Na caridade deveria ser assim para não
haver humilhação do próximo. Aqui surge talvez um ditame da impessoalidade ou
anonimato do homem generoso, mas no fundo trata-se mesmo de manter o respeito a
autonomia do outro.
Ambos personagens tem plena consciência de sua
condição miserável. Não se precisa dizer nada um ao outro. Isso faz a simetria.
Veja que, no meu caso, pode
acontecer muitas vezes de dizer que: pareço estar melhor que você, mas não se
engane porque eu também tenho minhas dores e misérias.
Ou quando te digo: não fique
achando que você é a única pessoa que sofre neste mundo ou que é a pessoa que
mais sofre. Todo mundo, de uma forma ou de outra, sofre nesse grande vale de
lágrimas que é o mundo.
Shakespeare usava muito essa
expressão e essa dimensão: somos todos miseráveis e seremos todos atingidos,
mais cedo ou mais tarde, pelas dores do mundo. Expressava ai um fato
inarredável que ninguém escapa das dores desse mundo. É a condição humana.
É a condição humana geral.
Ninguém, ninguém mesmo, escapa dessa condição. Pode dissimular, disfarçar,
negar, esconder, maquiar, negligenciar ou, inclusive, ser na maior parte das
vezes indiferente. Mas não escapa.
Além disso, temos que pensar nos
tipos de sofredores que surgem dessa condição humana. Tem o sofredor ressentido
e tem o sofredor com dignidade. Parece haver uma diferença aí. Nietzsche dizia
que o ressentido é muito indigno, porque jamais enfrenta a sua real condição.
Apenas projeta no outro ou no sistema essa condição. Em virtude disso é alguém
que já entra derrotado e submisso na luta pela vida.
É o famoso homem que usa as
muletas da fé para sobreviver nesse mundo. Precisa de um amparo transcendental
para andar sobre a terra. É um pacifista por covardia. Tem medo de lutar e de
enfrentar de fato sua real condição. Daí para a submissão ou covardia política
e moral é um passo. Por isso, quando se leva mesmo a sério isso, não tem
solução mais ou menos. Também por isso, a revolta, organizar a revolta e a
revolução é um ato de extrema dignidade moral e política, em especial, quando
não é baseada no coitadismo ou na vitimização, no ressentimento ou no desejo de
vingança, mas na mais plena consciência de dignidade e de disposição para
defender ela sobre tudo e sobre todos ou todo e qualquer um que parar a tua
frente.
Nenhum dos dois personagens,
então, se refugiava em sua dor e gostava de dar meia pataca nos assuntos dos
quais tratavam.
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