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domingo, 28 de abril de 2019

NÃO TENHA PENA DE MIM

Cheguei destruído em casa estes dias atrás. Foi um daqueles dias de cão em que você chega ao final do dia e não sabe nem como descansar e nem como desligar. Muito trabalho intenso e agendas se sobrepondo umas sobre as outras. Como precisava muito me distrair um pouco e relaxar, fui olhar um filme. Caçada Mortal, com o Liam Nesson. Um filme razoável de 2014 e com uma trama violenta que, porém, traz um aspecto sensível e profundamente humano. Há uma sequência de diálogos ótimos entre o investigador e ex-policial arrependido por ter matado por acidente uma criança em um tiroteio com bandidos quando estava bêbado. Ele conversa com um menino negro que vive nas ruas de Nova York e que frequenta a biblioteca da cidade fazendo pesquisas e passando o tempo e que vai acabar por ser seu parceiro na investigação que ele realiza. Os dois, bem vistas as coisas, são no fundo dois miseráveis que resumem a sua dignidade própria e seu senso de responsabilidade por suas vidas num diálogo reciprocamente repetido assim:

- Não tenha pena de mim.

- Eu não tenho.

Os dois miseráveis resumem sua dignidade própria e seu senso de responsabilidade por suas vidas num diálogo reciprocamente repetido assim, creio, porém, que esse diálogo apresenta o tipo de linha de corte e emancipação que a gente precisa estabelecer sempre na relação com quem sofre e com quem vive dificuldades. Não se trata de perder a sensibilidade ou a piedade ou empatia perante o próximo. Mas sim de preservar a sua dignidade acima de tudo. Se não se quer sucumbir a uma vitimização e a lamúria típica de relações que são apenas mais um capítulo da humilhação, submissão, dependência e indignidade doentia entre as pessoas. Todos sofrem, mas não é digno ter dó ou sentir pena do outro ou de si mesmo, porque isso só consagra mais ainda a situação desprezível da qual se deveria fazer um esforço para escapar, seja por disposição psicológica, seja por condução, luta ou trabalho material.

E nas relações de amizade, afeto e familiares, isso me parece ser mais do que interessante. É necessário. Sob pena - maldita pena - de apenas se reproduzir o sofrimento sem vencer ele no seu primeiro campo de combate que é a consciência.

Respeito, um profundo e inegociável ou indeclinável respeito. Ter pena não é mesmo a melhor atitude para com o outro. É trazer a miséria do mundo e sua dinâmica para dentro de uma relação com o outro. No caso específico, ambos trocam migalhas de afetos, mas preservam acima de tudo sua dignidade.

Um pouquinho disso ou daquilo. Nesse caso, pouco importa de que lado se está na condição de coitados. O filme é exemplar nisso e carrega essa mensagem. Pois apesar da assimetria de condição material dos dois, há uma simetria de certa miséria em ambos. Eles se encontram frágeis e tocados pela dor e dificuldade de sobreviver. É, portanto, quando você sabe que o outro está ferrado, mas não toca no assunto diretamente e conduz a relação com extremo respeito a ele. Não trata ele como um coitado ou ela como uma coitada, carente ou miserável.

Eu acho que isso é algo presente na cultura civilizada inglesa. Pelo menos é o que eu percebo sutilmente nas relações entre eles. Posso estar errado. Talvez tenha que pensar mais. De qualquer modo, encontrei um exemplo de simetria que parece ajudar a abordar essa questão da dignidade e do respeito ao outro.

Falei em respeito acima, mas parece envolver também a visão de que a integridade do outro deve ser preservada de modo absoluto. Lembrei de uma parábola do Jesus. O que a mão direita dá, a mão esquerda não percebe. Na caridade deveria ser assim para não haver humilhação do próximo. Aqui surge talvez um ditame da impessoalidade ou anonimato do homem generoso, mas no fundo trata-se mesmo de manter o respeito a autonomia do outro.

Ambos personagens tem plena consciência de sua condição miserável. Não se precisa dizer nada um ao outro. Isso faz a simetria.

Veja que, no meu caso, pode acontecer muitas vezes de dizer que: pareço estar melhor que você, mas não se engane porque eu também tenho minhas dores e misérias.
Ou quando te digo: não fique achando que você é a única pessoa que sofre neste mundo ou que é a pessoa que mais sofre. Todo mundo, de uma forma ou de outra, sofre nesse grande vale de lágrimas que é o mundo.

Shakespeare usava muito essa expressão e essa dimensão: somos todos miseráveis e seremos todos atingidos, mais cedo ou mais tarde, pelas dores do mundo. Expressava ai um fato inarredável que ninguém escapa das dores desse mundo. É a condição humana.

É a condição humana geral. Ninguém, ninguém mesmo, escapa dessa condição. Pode dissimular, disfarçar, negar, esconder, maquiar, negligenciar ou, inclusive, ser na maior parte das vezes indiferente. Mas não escapa.

Além disso, temos que pensar nos tipos de sofredores que surgem dessa condição humana. Tem o sofredor ressentido e tem o sofredor com dignidade. Parece haver uma diferença aí. Nietzsche dizia que o ressentido é muito indigno, porque jamais enfrenta a sua real condição. Apenas projeta no outro ou no sistema essa condição. Em virtude disso é alguém que já entra derrotado e submisso na luta pela vida.

É o famoso homem que usa as muletas da fé para sobreviver nesse mundo. Precisa de um amparo transcendental para andar sobre a terra. É um pacifista por covardia. Tem medo de lutar e de enfrentar de fato sua real condição. Daí para a submissão ou covardia política e moral é um passo. Por isso, quando se leva mesmo a sério isso, não tem solução mais ou menos. Também por isso, a revolta, organizar a revolta e a revolução é um ato de extrema dignidade moral e política, em especial, quando não é baseada no coitadismo ou na vitimização, no ressentimento ou no desejo de vingança, mas na mais plena consciência de dignidade e de disposição para defender ela sobre tudo e sobre todos ou todo e qualquer um que parar a tua frente.

Nenhum dos dois personagens, então, se refugiava em sua dor e gostava de dar meia pataca nos assuntos dos quais tratavam.

NÃO TENHA PENA

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