Dois anos atrás, após alguns
muitos anos de certa relação de admiração à distância e pequenas incursões em
pequenas obras e peças do existencialismo francês, comecei a ler OS MANDARINS,
o romance de pós guerra de Simone de Beuavoir onde ela narra através alter egos
a vida dos heróis da resistência - ela, Sartre, Camus e Nelson Algren, depois
que a guerra acabou e surgem outros conflitos de caráter mais pessoal na vida
deles. Uma das características mais interessantes colocada na obra é o conflito
e a diferença entre a construída ficção e a realidade que efetivamente se deu.
Simone escreve para episódios que vão ser bem conhecidos posteriormente outros
desfechos, soluções alternativas, não para distorcer a realidade em perspectiva
positiva, mas para mostrar que é plausível, razoável e interessante literária e
biograficamente pensar e entender que possa ser ou seja diferente. E aqui creio
que está um dos trunfos percebidos pelo existencialismo: de que a nossa
liberdade mesmo é permitir com que as coisas sejam diferentes do que são ou que
elas terminem sendo realizações que derrotem as expectativas mais negativas -
como exercício de liberdade e escolha - sobre o que virá e que pensar nesta
dimensão de abertura e mudança da vida é um belo desafio existencial. Vejo nele
então um texto libertador e desafiador à nossa vontade e pensamento.
O existencialismo francês tem
também esta maravilhosa característica para mim: inclui teatro, literatura,
poesia, pintura, música, teoria filosófica e social e seus progenitores Sartre
e Beauvoir, por assim dizer, transitam entre tudo isto. Mas no destino deles
trabalhar é escrever. E ler eles também parece trabalhar para quem se dedicar a
isto. E escrever e ler o que foi escrito por eles e escrever sobre eles acaba
mesmo sendo tanto refletir sobre a vida, fazer a ficção necessária da vida
encobridora e reveladora da vida, quanto construir a teoria ou a crítica que
lhe explique ou corrija os caminhos e os descaminhos da vida. Uma vida em que
reflexão e ação precisam ter encontros, serem cúmplices, amantes e parceiras de
viagem. Com uma espécie de relação pendular entre ficção e crítica, literatura
e teoria vemos em ambos textos que trazem à tona a difícil tarefa de
ultrapassar ou suportar limites existenciais, subjetivos e objetivos. É uma
bela história das múltiplas relações possíveis entre certas personagens
dinâmicas e que em uma dimensão são livres e em outra dimensão parecem ser
prisioneiras de seus limites morais e de compreensão da vida.
Confesso que Sartre é ainda para
mim um ícone cada vez mais fortalecido e uma espécie de grande revelação na
minha inicial disposição a estudar filosofia. Servia como um imã que me
intrigava e atraia muito o interesse na pré-adolescência e adolescência. Ele
morre quando eu tinha 15 anos e biograficamente isso marca meu assombro com o
gigantismo dessa personagem filosófica. E, assim como Camus, com seu mito de
Sísifo, a história de um desgraçado que precisa recomeçar todos os dias a
jornada de levar uma pedra até o cume da montanha, condenado a repetir a rotina
de um esforço que aparentemente é vão e improdutivo. Cuja analogia entre
Prometeu acorrentado tendo seu figado devorado o dia inteiro e sendo
reconstituído durante a noite para ad infinitum ser devorado de novo e
reconstituído de novo. E esta rotina aparentemente torturante da vida
industrial que manda repetir a mesma operação até se esgotar a matéria prima,
ou a encomenda ou o mercado ou o desejo do consumidor por tal coisa. Tema este
que sempre me vem à cabeça associado ao O Trabalho e os Dias, de uma vida
aparentemente interminável dedicada a ganhar cada dia com um grande esforço de
trabalho. E quem já trabalhou fazendo força, arando a terra, carregando peso, subindo
e descendo escada, levando uma pasta cheia de livros para lá e para cá - a
parte braçal do professor e do vendedor de livros que é comum a ambos, sabe o
que significa ganhar o pão com o suor do próprio rosto ou com suas próprias
mãos.
Porém, acho que eu sei algo mais
sobre ambos e outros e minha intuição não me engana que esta mulher era como
que uma orientadora geral de muitos e me admira que as prioridades dela eram
absolutamente articular o pensamento com a vida, sem representação, sem
máscara, sem aquele excesso de interpretação e floreio e sem símbolos ou
retórica. Nada hoje me toca mais do que isso: o pensamento deve ser vivido,
senão não significa nada. E nesta flexão entre pensamento e ação que deveria
estar a liberdade ou o limite da nossa liberdade perante a tortura e a
repetição torturante dos trabalhos e dos dias, da rotina na fábrica e do peso
do mundo que temos a ilusão de carregar em nossas mãos ou em nossos cérebros.
E é por algo realmente
existencial que os sinos dobram meu amigo, que as ideias surgem e os sonhos e
desejos nos revelam. E só por existenciais que há arte e engenho, transformação
e superação. E o trágico ali à sua espreita aguardando seu descuido. Tens medo?
Ouse! Tens confiança? Sede prudente!
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