O SUJEITO EM KANT: RELATÓRIO
DE PESQUISA
DANIEL ADAMS BOEIRA (Bolsista de Iniciação Científica)
Prof. Dr. Valério Rohden In Memorian (Orientador - Filosofia)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
CNPq - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E
TECNOLÓGICO
PORTO ALEGRE, ABRIL
DE 1994
(Primeira Edição Digital – ABRIL DE 2013)
In memorian de meu pai
Antônio Boeira Sobrinho
“...
esta forma de expressão é recomendável a quem quer que não tenha alcançado
concluir o todo, mas ainda assim tenha algumas observações interessantes a fazer...”
NOVALIS.
Fragmento, 299.
PREFÁCIO
O trabalho que apresento aqui e
agora, O SUJEITO EM KANT, via rede
social, tanto no meu perfil do FACEBOOK quanto no meu BLOG, foi realizado entre
outubro de 1992 e abril de 1994, quando foi concluído e enviado ao CNPq como
Relatório de Pesquisa de um bolsista de Iniciação Científica, com o aval do
orientador do projeto, Professor Valério Rohden, o qual preencheu toda a
papelada e finalmente me autorizou a envia-la à Brasília. Portanto, este
trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico e orientado pelo grande professor Valério Rohden.
Este trabalho deverá ser cotejado
também futuramente com meu Trabalho de Graduação: A Estética, A Introdução da Lógica e a Dedução Metafísica como
Preâmbulos da Dedução Transcendental B, de dezembro de 1993. Pois este
trabalho é seu par e seu antecedente mais próximo, além, do resumo ao V Salão
de Iniciação Científica: “Autoconsciência
Transcendental em Kant: Para uma Análise da Crítica de Adorno ao Primado do
Sujeito em Relação ao Objeto”.
Minha formação filosófica não
teria sido concluída sem esta Bolsa de Iniciação Científica. E isso significa
que nem o Bacharelado e nem a minha Licenciatura em filosofia teriam sido
possíveis sem este trabalho. Hoje um jovem estudante de filosofia pode optar
por buscar uma Bolsa de Iniciação à Docência, junto ao programa PIBID-CAPES,
mas nos idos dos anos 80 e 90 o único incentivo à formação disponíveis eram as
Bolsas de Iniciação Científica do CNPq ou da Fapergs. E eu fui bolsista das
duas instituições e tenho gratidão eterna a elas por isto, pois me permitiram
ter dedicação exclusiva aos estudos, me propiciaram um envolvimento integral
com os afazeres acadêmicos o que envolveu na época, ser bolsista também na
Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanas – BSCSH-UFRGS, da qual
carrego extraordinárias lembranças e muitas experiências, bem como me permitiram
também ser um dos dirigentes do DCE, Presidente da Casa do Estudante da
Agronomia e Veterinária – CEFAV-UFRGS, por onde passaram vários estudantes de
filosofia e que ainda passam lá e também mergulhar de forma decisiva nos meus
estudos. O ano de 1993 – até hoje – me parece meu anno mirabilis e custo muito a entender como eu consegui fazer tudo
aquilo que lá aconteceu e se desenvolveu.
Aqui neste prefácio pretendo
narrar a caminhada que levou até ele. Creio ser importante isto como relato
parcial não somente de minha trajetória, mas também, talvez de um certo
capítulo da nossa formação comum e do desenvolvimento de um vasto grupo de
alunos que na UFRGS entre 1987
a 1997 se envolveram com os estudos de filosofia, alguns
mesmo de outros cursos da UFRGS e que acabaram compartilhando diversas
atividades, debates e leituras – para dilatar um pouco o período.
Dividiria este prefácio em três
partes. Uma primeira parte dedicada a narrar as influências digamos assim
Frankfurteanas, Marxistas e Hermenêuticas e que fecham a formatação da primeira
proposta do projeto de pesquisa. Uma segunda parte para narrar as fortes
influências Kantianas e Analíticas que ao longo do curso me fizeram guinar e
privilegiar em meu trabalho mais para uma leitura kantiana do conceito de
sujeito do que tanto uma leitura adorniana. E, por fim, uma terceira parte para
detalhar em que condições o trabalho foi revisado, melhorado e alguns detalhes
que creio deveriam ser destacados antes da sua leitura e, além disso, também
como ele foi reavaliado por mim, no sentido de abrir caminhos e direções para a
continuidade desta investigação e quiçá uma nova e final edição a partir
dele.
A história que leva até a sua
realização merece algumas notas de reconhecimento e reconstrução aqui porque começa
no meu primeiro ano do curso de filosofia da UFRGS em 1989. E creio que é muito
importante contá-la, não tanto por vaidade, mas sim para rememorar como as
coisas aconteceram, acontecem e podem acontecer com qualquer aluno de filosofia
ou outro curso universitário que desejar tomar meu pequeno exemplo para ser
melhor, ir mais longe e continuar neste processo de formação e civilização pela
educação universitária. As matrículas nas mesmas disciplinas nos ajudaram muito
ao longo do curso, porque o curso era praticamente todo construído e formatado
para evitar, assim nos aparecia a formação de grupos de alunos, e nós
contrariamos isto. A prática que nos conduziu juntos e coletivamente até a
formatura fazendo matrícula combinada e optando pelos mesmos professores e
disciplinas, nos levou a um fortalecimento individual e também a um certa
competição bem positiva sobre nossa aprendizagem e capacidade de leitura dos
textos, anotações das aulas e também de expressão e resposta às questões
apresentadas. Começamos a discutir cotidianamente no café, no Bar do Antonio do
Campus do Vale e a formar um grupo de convivência e compartilhamento de
estudos, experiências, livros, textos, artigos, dicionários e tudo que você
possa imaginar como objeto de troca, debate e também competição. Neste grupo
estabelecemos contatos regulares com os demais alunos do curso que eram ou
formandos, ou pós-graduandos e também com colegas de outros cursos. Logo também
tinhamos contatos regulares com os professores fora da sala de aula, no café e
alguns professores como o Paulo Faria, João Carlos Brum Torres e também Ernildo
Stein passaram a privar com nós momentos de estudo, debate e grupos de estudo
fora da Universidade.
Aconteceu que uma parte deste
grupo, no primeiro semestre, se matriculou em disciplina apresentada pelo
professor visitante Hans-Georg Flickinger. E foi desta forma que eu e outros
colegas que estávamos matriculados em cadeiras ou disciplinas comuns travamos
nosso primeiro e instigante contato com a tradição alemã, a escola de Frankfurt
e, para mim, um recontato também com a tradição marxista. Hans-Georg era um
professor de filosofia alemão casado com a professora de filosofia gaúcha
Muriel Maia. Ele havia obtido sua formação em filosofia nos anos 60 e tinha
sido aluno tanto de Hans Georg Gadamer (sim o grande mestre de Verdade e
Método), como de Adorno (o grande mestre da Escola de Frankfurt). Pois a este
professor coube o curso de Introdução à Filosofia e ele possuía um Monitor da
disciplina o Clóvis Argenta para nos auxiliar e nos fornecer dicas. A primeira
dica do Clóvis, entre diversas outras ao longo do semestre, foi fundamental
creio para todos nós, porque a acatamos e se transformou num dos nossos maiores
trunfos na formação: aprender a anotar bem as aulas, em cadernos caprichados,
com desenhos dos esquemas e com observações próprias destacadas. O curso era
ministrado na sala 217, às terças e quintas-feiras as 17:30 horas e seguia
geralmente até as 19 horas. Olhando para os cadernos de aula mais uma vez, devo
dizer que a Introdução a filosofia dele dava uma revisada panorâmica e
histórica em toda a história da filosofia e que em cada aula um aspecto, área
ou clássico da filosofia era apresentado. Neste curso tivemos nosso primeiro
contato súbito e preciso com Gadamer, Habermas, Heidegger, teorias de sistemas,
Niklas Luhman, teoria do conhecimento, Imre Lakatos, Paul Feyrabend, Thomas
Kuhn, Gerd Bornheim, Ernst Nagel, Gotlob Frege, Max Weber, Ernst Bloch, Erwin
Goffman, o Positivismo de Comte e o Neopositivismo, questões de método,
história oral, liberalismo político, liberalismo jurídico e uma panorâmica do
Idealismo alemão assombrosa para mim na época, entre diversos outros temas e
capítulos importantes da história da filosofia e também da relação da história
da filosofia com a história da arte, neste ramo chamado de estética o qual
aliás era a área de especialização da professora Muriel Maia.
Para nós – aquele grupo
heterogêneo de alunos que estavam ali - os três pontos de convergência e
atração eram mesmo: a tradição alemã, a filosofia marxista e também a Escola de
Frankfurt. Eles se destacavam e muito entre todos os conteúdos, na minha
opinião, porque vivíamos naqueles tempos ainda a redemocratização do Brasil. Em
1989 ocorria a primeira eleição para presidente após a ditadura militar que
também havia solapado da faculdade de filosofia da UFRGS, no processo chamado
Expurgos da UFRGS, de alguns de seus principais professores e de alguns
daqueles jovens que passaram pelo vergonhoso processo para a história do ensino
superior brasileiro daquela Comissão Especial de
Investigação Sumária da UFRGS (1964). Estes jovens combinavam nos anos
60 alguma forma de engajamento político e alta reflexão filosófica. Também
temos que considerar que isso atraia nossa curiosidade para entender talvez o
que teria acontecido com certa tradição marxista de reflexão e crítica da
sociedade e da história, da crítica da economia política à crítica ao
pensamento, da crítica à dissociação entre teoria e práxis, acrítica também de
uma assim entendida razão instrumental. Bem, visto desta forma, poderia se
dizer que havia uma espécie de clima propício a esta disposição dos alunos e
foi o que se percebeu ao longo do processo de formação nossa.
Ao mesmo tempo todo o percurso da
filosofia alemã que levava do idealismo alemão até a fenomenologia,
hermenêutica, filosofia analítica, positivismo e também a Escola de Frankfurt
gerava na nossa aprendizagem uma interrogação permanente sobre que caminho
tomar. Isso perpassava a nossa relação de calouros com os colegas mais velhos e
sempre rondava um que de desafio sobre a qual escola pertenceríamos: Se
seríamos Analíticos ou Dialéticos? E era uma provocação permanente que envolvia
também, como chegou afirmar um colega mais experiente nosso se seríamos
filósofos profissionais ou se prosseguiríamos na tradição de engajamento
político de alguns de nossos mestres. Creio – vendo hoje à distância que haviam
motivos muito claros para isto na própria formação cultural gaúcha e na própria
história do departamento de filosofia e em especial daqueles que haviam sofrido
o exílio nos tempos da ditadura militar de sua escola. Aliás, o retorno deles
aos seus lugares nos anos 80 foi provavelmente um grande alento e quando nossa
turma se formou praticamente todos os professores de filosofia exilados estavam
de volta a ativa na filosofia da UFRGS, com exceção apenas, mas não menos
importante, diga-se de passagem, dos memoráveis Ernani Maria Fiori e Gerd
Bornheim. Ao logo deste prefácio não poderei tratar um pouco destes mestres que
retornaram para a UFRGS, com a anistia e
que acabaram por dar corda aos nossos interesses como grupo de pesquisa e
agitação filosófica e aos meus próprios interesses formativos, mas deixo os
registros aqui disto.
Na tradição marxista, o professor
Hans Georg, nos colocou diretamente em contato com os textos do jovem Marx,
naquilo que ele chamava de marxismo humanista. Confesso que para mim aquilo
respondia a uma interrogação que havia feito a
mim mesmo num curso de formação marxista do ano de 1984 em que a partir
da leitura de determinada passagem de O Capital produzi uma interrogação que
fez o instrutor de então me enviar diretamente para a filosofia, dizendo, que a
minha pergunta colocava a reflexão mais em baixo na filosofia e não tanto na
crítica da economia política, pois eu arranhava então a questão de se saber
como o homem haveria de ter cognição do processo de produção do capital se ele
estava submetido mais na produção do que na reflexão sobre isto. E esta
interrogação partia de um trecho do capital que é memorável quando Marx trata
da relação entre tempo, produção de mercadorias e o valor da s mercadorias em
sua relação com a remuneração pelo trabalho. Eu me interrogava sobre o tempo
que o homem teria com esta vida para pensar no seu processo de produção. E
pensava, diretamente em mim mesmo que, para estar naquele curso, saia correndo
do meu trabalho de sábados naquele velho balcão de rodoviária, pegava um ônibus
para Sapucaia do Sul, descia ali numa parada, logo depois da estrada velha do
matinho de Sapucaia e me encontrava apertado com meus colegas de seminário de
formação política daquilo que viria a ser uma corrente de esquerda do PT. Eu
sabia, por mim mesmo, que o tempo para a reflexão era muito escasso para um
jovem trabalhador. Mas encontrava então uma solução: quem sabe tentar viver
deste esforço de reflexão e tentar sobreviver fazendo este tipo de trabalho?
E foi assim, na gênese do meu
interesse em filosofia a partir da leitura de Marx que surgiu meu contato com o
andamento do curso e o encontro então com os Grundrisse de Marx e a Escola de
Frankfurt. As aulas de Hans Georg sobre Marx também apresentavam a relação
entre Marx e Freud – e assim a Psicanálise, que creio que encanta qualquer
estudante sério de filosofia, pois pensar na relação entre a situação histórica
e econômica com a formação política do sujeito me parece muito interessante.
Digamos que havia ai uma tensão entre interioridade subjetiva e história
objetiva que atraia a nossa reflexão e que nos pareceu estar muito presente na
Escola de Frankfurt em especial na Dialética do Esclarecimento ou do Iluminismo
– como queira.
E foi a partir dali que – em meio
a diversas outras descobertas, neste Curso de Introdução à Filosofia do
Professor Hans Georg Flickinger, que merecem uma memória exclusiva dedicada a
isto e que não cabe aqui – entramos em contato com a Escola de Frankfurt e
surgiu entre nós a disposição de constituir um grupo de estudos sobre ela.
Sabíamos também que não havia como estudar a Escola de Frankfurt e a teoria
crítica sem voltarmos de alguma forma ás suas origens em Kant, em sua filosofia
prática e sua filosofia teórica.
Assim, o projeto do Grupo de
Pesquisa foi formatado a partir de algumas orientações do professor e do
monitor e seguiu-se então a busca de um professor que realizasse a orientação
dos estudos e a tutoria junto ao CNPq. Esta busca durou menos de um ano. E
assim este novo grupo de pesquisa que representava um novo interesse dos alunos
da filosofia da UFRGS de então e que inaugurava também uma espécie de debate e
interpretação de filosofia comparada tanto entre Kant e a teoria crítica,
quanto entre as conexões entre filosofia prática e filosofia teórica. Ao
encontrar a disposição do Professor Valério Rohden o projeto acabou sendo
adaptado também às áreas e temáticas de interesse do mesmo, ficando assim
formatado junto ao CNPq: Título - A crítica da razão prática de Kant e a Escola
de Frankfurt. A Descrição do projeto: Projeto de pesquisa em Filosofia
coordenado pelo Prof. Dr. Valério Rohden que consistiu em um estudo comparativo
do idealismo transcendental e da ética kantiana com base nas obras de Kant
Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Fundamentação da Metafísica
dos Costumes e sua influência sobre os pensadores da Escola de Frankfurt, com ênfase
em Jürgen
Habermas. Deste autor foi estuda principalmente a obra
Consciência Moral e Agir Comunicativo . Realizou-se ainda um estudo comparativo
com o pensamento de Theodor Adorno, através da leitura de obras como Dialética
do Esclarecimento e Dialética Negativa , bem como uma ampla bibliografia
envolvendo outros pensadores como Hegel, Benjamin e Karl-Otto Apel. (Processo
CNPq 106607/90-1). Assim, ficou o professor Valério
Rohden como Coordenador e como bolsistas de iniciação científica os alunos Janio
Alves - Leonardo Sartori Porto (Pós-Graduação) - Denise Reif Kroeff - Clovis
Alberto Argenta - Sílvio César Camargo –
Daniel Adams Boeira. Ingressei no Grupo ao final de 1992, em substituição a um
aluno que estava formado já e então tive um ano para realizar o presente
trabalho.
Algumas disciplinas do curso
contribuíram decisivamente para uma espécie de guinada kantiana e analítica ao
longo do curso. Ao mesmo tempo ao longo de todo curso de 1989 a 1993 houveram um
número elevado de oportunidades de estudos, seminários, colóquios, encontros e
palestras com professores visitantes e com grandes filósofos do nosso tempo.
Jürgen Habermas, Cornelius Castoriadis, Karl Otto Apel, Ernst Tugendhat, e
diferentes formas de intercâmbios também com pensadores da América Latina e do
Brasil sobre os temas apresentados pelo professor Hans Georg. Já no segundo
semestre de 1989, a
disciplina Filosofia Geral ministrada por Carlos Roberto Cirne Lima acabou por
me jogar numa espécie de confronto com a tradição hegeliana do qual só me curei
a partir do início do século XXI. Ainda no segundo semestre de 1989, a História da
Filosofia Contemporânea com Ernildo Stein me levou a uma grande admiração e uma
espécie de encantamento com Heidegger do qual não me curei e nem pretendo me curar.
E a leitura de Heidegger de Kant: Kant e
o problema da Metafísica me fascinou e me levou a encarar Kant como uma
tarefa permanente de reflexão.
A partir de então e de uma
disciplina de Teoria do Conhecimento com Paulo Faria do primeiro semestre de
1990, se passou a freqüentar um grupo de estudos kantianos no qual com
registros de atas e apresentações dos alunos, nos coube coletivamente ler passo
a passo a Crítica da Razão Pura e apresentá-la em debates com os colegas. Ainda
em 1990, iniciamos um Seminário de Introdução à Paz Perpétua de Kant, com o professor Marco Aurélio de Ávila
Zingano, em que se abordava também a relação entre ética e política em Kant. E assim aconteceu
sucessivamente que a partir de 1991 e 1992 com as disciplinas do curso que vinham
digamos assim construindo uma abordagem mais kantiana e analítica da filosofia
e deixando um pouco a parte os debates de natureza mais política. E também a
gente se sentia mais seguro ao tratar de temas que eram conexos ao que sai
estudando. O professor Valério Rohden ministrou um curso extraordinário sobre a
Crítica da Faculdade de Julgar e
aquilo abria uma dimensão muito interessante de estudo e leitura da filosofia
kantiana em toda as suas três críticas.
Em 1993, no Seminário de
Filosofia Moderna e Contemporânea o professor João Carlos Brum Torres nos fazia
mastigar e ler Kant de forma altamente desafiadora. Cada aula era uma espécie
de tour de force contra o texto e
contra nossa compreensão trivial do texto. No primeiro semestre de 1993, também
no curso Filosofia da História I, com o professor José Pinheiro Pertille,
estudamos a filosofia da História de Kant
e isto nos abria para diversas discussões sobre tanto o iluminismo
quanto o papel da razão na história. Em setembro de 1993 a partir do Curso de
Balthazar Barbosa Filho, Filosofia Geral II, “O Ocaso do Ocidente” acabamos
andando na direção de reflexões e algumas observações sobre os paradoxos da
racionalidade moderna. E no Seminário de Filosofia Geral com o professor João
Carlos Brum Torres prosseguimos na investigação iniciada sobre a Filosofia
Transcendental em Kant a partir da leitura de Allison da Crítica da Razão Pura
e a cada dia, digamos assim, nosso séquito kantiano ficava mais convicto da
direção dos seus estudos. Em outubro de 1993 já estava envolvido e ocupado com
a apresentação do nosso trabalho no V Salão de Iniciação Cientifica da UFRGS,
do qual também fazíamos parte da comissão organizadora, sob o títu1o “Autoconsciência Transcendental em Kant:
Para uma Análise da Crítica de Adorno ao Primado do Sujeito em Relação ao
Objeto”.
Por fim, é preciso dizer que
vistas as coisas a esta distância de quase 20 anos eu observo que o predomínio
de estudos dos clássicos, dos modernos e também da filosofia da lógica e da
filosofia analítica foi ao longo do tempo ficando predominante na formação da
casa e diria que houve mesmo uma guinada nesta direção dos anos 80 aos anos 90
na filosofia. Mas também recomendaria que cada um lesse por si mesmo a produção
da pós-graduação em filosofia destes últimos 20 anos, há um predomínio, porém
encontramos ali um esteio sólido de investigações de Kant, Hegel, Wittgenstein,
Descartes, Aristóteles, compartilhado com temas de raro tratamento ainda nos
cursos de pós-graduação do Brasil. Assim, eu diria que minha guinada analítica
e kantiana, nem por isso me afasta de uma compreensão aberta para a leitura de
autores de certa forma marginais nesta linha clássica e dominante. E isto vale
tanto para Adorno, quanto para Foucault, Sartre, Nietzsche, Kierkeegard,
Schopenhauer e muitos outros.
O texto que apresento agora O Sujeito em Kant, foi produto deste
itinerário e dos vestígios diários que estas incursões deixaram em mim ao longo
destes momentos e com as motivações e balanços que as leituras promoviam ao
longo do curso. Não publico ele porque é excelente ou bom, simplesmente porque
representa também para mim sempre um reencontro com meus próprios pensamentos e
quem sabe um desafio ao pensamento de outros leitores. Já faz algum tempo que
decidi que devo revisar, revisitar e fazer memória de todos os meus encontros
filosóficos desde aquela manhã de domingo em 1973 em que encontrei a Apologia
de Sócrates, passando pelo encontro com a Aufklaerung de Kant em 1981, as
leituras repetidas e sempre amigáveis de Marx desde os anos de 1979 e anos 80,
as noites com Nietzsche, sob os olhos espantados, as leituras de Michel
Foucault e, além disso, tudo aquilo que me caiu entre as mãos a partir do
início do curso de filosofia em 1989, as diversas incursões à maravilhosa,
prestimosa e adorável Biblioteca do Instituto Goethe, as leituras de clássicos,
românticos, poetas, modernos e revolucionários de todos os tipos e formas.
O texto de o Sujeito em Kant, em 28 páginas datilografado, foi digitalizado e
revisado, sofreu poucas alterações de linguagem com o objetivo de facilitar a
legibilidade, mas não sofreu nenhuma alteração de conteúdo ou de argumento.
Mesmo aquilo que aos meus olhos hoje é puro efeito retórico ou mal feito ou
desprovido de uma melhor compreensão ficou exatamente como estava. A
Introdução, talvez a pior parte do texto, em minha opinião, mereceria um relato
melhor e argumentos melhores, mas se encontra igual.
O capítulo Kant e Adorno que possui sérias fragilidades na falta de mais
fontes e de uma exposição mais didática e técnica da teoria de Adorno – que
Musse examinou com detalhe em sua Dissertação e em outras obras suas e que nos
dias de hoje já foi batido e rebatido por muitos autores em dissertações e
teses pelo Brasil, inclusive, por ex-membros do grupo de pesquisa como Silvio
Cesar Camargo – mereceria séria revisão e certos reparos e argumentações mais
adequadas.
Sinto também uma falta danada de
uma apreciação mais canônica – por assim dizer – sobre o Iluminismo em Kant e a
Filosofia da História em Kant, bem como, de uma leitura bem mais profunda de
Adorno. Tanto a Dialética Negativa
quanto a Dialética do Esclarecimento, me
parecem merecer bem mais do que ganham em meu trabalho. Por fim, o capítulo
final Kant: o sujeito, confesso, é
aquele que menos me desagrada neste trabalho, ainda que contenha aqui e ali
algumas imprecisões e também insuficiências fiquei pensando sobre o que me
levou a fazê-lo assim e, ainda, que memórias não justifiquem o que passou, ter
elas em vista é mais esclarecedor do que apagá-las e saltar por sobre elas
fazendo de conta que são páginas viradas. Pois não são e talvez em filosofia
nunca exista mesmo algo como uma página virada, posto que uma vez feito,
permanece e conhecido ou desconhecido está ali a nos lembrar de onde viemos e
como chegamos aqui.
As notas me aborreceram tanto que
cheguei a um ponto de pensar em extirpá-las todas e refazê-las todas, mas
depois me acalmei e conclui que não me faltará a hora para dar os devidos
reparos a certas coisas. Na esperança de que isso aconteça preservo a verdade e
agreguei apenas alguns P.S. Post-Scriptum, ao sabor da minha disposição nestes
três dias.
A bibliografia ao final está
relativamente incompleta, pois faltam ali fontes fundamentais para os estudos
sobre o tema e que foram usadas por todos os alunos do grupo de pesquisa, bem
como, alguns dicionários que foram fundamentais nas pesquisas e seleções de
definições.
Espero que a coletânea aqui e
publicação deste relatório ajude alguém na filosofia e talvez em outra parte a
fazer melhor e a reler melhor, senão os textos de Kant, Adorno e outros, pelo
menos sua própria experiência de formação ou estimule a ter uma formação. Hoje
sou um professor com 20 anos de magistério e que tenta muito sinceramente dar
exemplos e postar sinais ao longo da estrada para que o caminho dos que vierem
após a gente seja melhor e mais profícuo, preciso e rigoroso. Portanto, que não
tomem isso como um exemplo, se não o for, mas tomem como um sinal apenas.
Pensar por si tem este risco. E a emancipação ou a libertação de uma razão
instrumental não se dá sem correr riscos e sem uma boa luta e uma decidida
exposição.
São Leopoldo, 14 de abril de
2013.
0 - INTRODUÇÃO
“Os limites da minha
linguagem
significa os limites do
meu mundo.”
WITTGENSTEIN
O
início desta investigação sobre a crítica de Adorno à tese de Kant sobre o
primado do sujeito em relação ao objeto foi marcado por um conjunto de dúvidas
relativamente à relevância do tema e, também, quanto ao sentido que deve ser
atribuído à crítica de Adorno.
A
relevância do tema pode ser explicitada pelo fato de não encontrar-se ainda
encerrado o debate filosófico relativo à validade da critica de Adorno, bem
como, relativo ao que em epistemologia sobrevive sob os conceitos de sujeito e
objeto.
Por
um lado, a validade de Adorno não é muito sustentável sob um paradigma lógico-semântico
em filosofia; que é a forma sob a qual algo de Kant sobrevive na filosofia
analítica. Por outro lado, a crítica de Adorno continua razoavelmente desconhecida
e ignorada dentro da “Kant Forschung”.
Os
filósofos atuais que ainda defendem uma filosofia da consciência como paradigma
fundacional do conhecimento, quando kantianos, não se ocupam com aquilo que
Adorno designa por “resto não submetido às categorias a priori”. Somando-se ao
que já foi enunciado, o fato de Adorno tratar a tese de Kant à luz da sua
“metacrítica”, em que importa o conteúdo concreto e social de uma teoria;
temos, para a filosofia hoje, tomando-se à nossa epígrafe wittgensteiniana da
relação entre “mundo” e “linguagem”, uma ampliação dos horizontes filosóficos
e, com isso, do mundo dos filósofos que o mais das vezes colocam-se numa posição
ou âmbito demarcado pelo seu jargão e pela sua coleção de problemas legados
pela tradição.
Assim,
a relevância do tema repousa na possibilidade de tratar-se sob outra luz a tese
de um autor extremamente importante para a tradição o que, rigorosamente, é possível,
pela amplitude da crítica de Adorno que envolve, na obra Dialética Negativa
(1966), sob fogo cerrado e constante o Idealismo Alemão (de Kant, Fichte,
Schelling e Hegel), a Fenomenologia (Husserl e Heidegger) e, ainda, o Neo-positivismo,
em um campo de batalha bastante amplo e através de uma atitude “contra tudo e
contra todos” que preserva e afirma o caráter crítico. Trata-se, de certa
forma, de uma reconstrução histórica do fazer filosófico dos seus antecedentes
cujo modelo remonta já ao Aristóteles do Livro 1 da Metafísica. (P.S., no qual
ele passa a arrolar todas as doutrinas e concepções que a seu juízo são
relevantes na história da filosofia, desde os físicos até então. No caso de
Adorno, no combate a tese idealista ou positivista, ele arrola seus
antecedentes).
Posto
isto, deve ser possível encontrar uma conexão não trivial entre a relevância do
tema e o sentido mesmo da crítica de Adorno. Ainda que a validade desta crítica
não venha a ser estabelecida ou refutada aqui, o que por si só demandaria um
trabalho em outro registro, isto é, num registro mais rígido e além do
meramente descritivo - esta traz à tona uma posição filosófica clássica e, também,
incontornável, aquela de Kant.
Este
trabalho parte de uma hipótese geral, a saber, que para interpretar a “validade”
ou o “sentido” da crítica de Adorno à Kant, no que diz respeito ao primado do
sujeito em relação ao objeto, dentro de uma perspectiva epistemológica que
busca uma justificação do conhecimento humano, devemos elucidar, basicamente,
dois pontos relativos aos dois autores.
O
primeiro deveria apresentar as objeções de Adorno — seja resumindo-as ou
enumerando-as - em seu caráter tanto geral quanto específico. Desse modo seriam
postos aos olhos do investigador os argumentos ou afirmações de Adorno contra a
concepção de Kant. Nesta etapa seria desnecessária uma consulta à Kant, pois é
meramente elencado aquilo que Adorno expressa. Uma investigação limitada a isso
jamais poderia chegar a um juízo categórico a respeito da validade das críticas
adornianas, pois desconheceria o próprio objeto da crítica ou, pelo menos, o
reconheceria só enquanto mediado pelo crítico.
O
segundo ponto, que responde a este desafio incluído no primeiro, porém, nos
dirige a Kant e seus argumentos que sustentam a sua tese do primado do sujeito
em relação ao objeto de um ponto de vista epistemológico. Consultando Kant se
descobre que o acusado “primado” tem um caráter próprio, não é temporal, como
alguns entendem, e o seu sujeito aparece como antecedente em relação ao objeto
de um ponto de vista lógico-transcendental. Descobre-se mais, que o mesmo
“sujeito” também não é “fenomenológico”, quanto menos, ainda, psicológico.
Nisto
reside parte daquilo que designamos de um “impasse” na análise da critica de
Adorno, pois esta colocaria o “primado do sujeito”, com a acusação do seu
caráter ideológico, em um âmbito histórico-temporal. Ou bem isso reside em uma
incompreensão de Adorno a respeito do Sujeito Lógico de Kant, que pressupõe a
distinção entre a estética e a lógica transcendental. Ou, então, Adorno
apresenta em sua crítica algo mais que uma mera incompreensão de Kant,
colocando a sua tese num registro não habitual ou trivial da história da
filosofia.
Assim,
este “impasse” nos dirige para uma retomada da tese de Kant em que pese o seu
caráter epistemológico, como fundamento de uma teoria do conhecimento, na
Crítica da Razão Pura (1787), na Dedução Transcendental dos Conceitos Puros do
Entendimento, em que se encontra o núcleo da sua concepção de “sujeito” como
“autoconsciência” em seu caráter transcendental (puro e a priori).
Quanto
ao caráter burguês deste “sujeito”, ainda que possa ser requerido aqui um
tratamento particular desta acusação, não será aqui tocado. Admite-se, que tal
crítica, porém, torna muito conflituoso o andamento da investigação e que,
também, faz do intérprete um ambíguo filósofo; na medida em que vai contra toda
uma prática filosófica que o faz diferenciar, para fins de análise e
interpretação de uma dada teoria, o que nela é conteúdo histórico determinado
contingentemente, daquilo que lhe é puramente teórico e pretensamente isento de
compromissos empíricos no interesse de um resultado universal e necessário.
Aceitar, isto é, admitir isto é também a
admissão de uma divisão entre a filosofia e um conjunto bastante heterogêneo de
justificações post facto.
Sabemos
que a filosofia tem data histórica, que o pensamento não é dissociado da sua realidade
social, mas reiteramos a pretensão da filosofia em constituir através de uma
reflexão rigorosa a ruptura com o contingente dado na realidade concreta para,
na eterna busca da verdade, resgatar o que há de certo e permanente nos
domínios do pensamento.
Dito
isto, este relatório limita-se a apresentar a posição de Kant relativa a um
“primado do sujeito” que vem precedida de uma comparação, ainda que provisória,
entre Adorno e Kant, Constituindo-se, em resumo, na apresentação de alguns
pontos que julgamos relevantes para uma análise, ainda a ser realizada em
definitivo, da crítica de Adorno a Kant. Ficando, assim, esboçado aqui o
primeiro capítulo de um exame que envolverá, também, uma investigação relativa
ao valor e à inserção da crítica de Adorno na discussão filosófica atual entre
uma “filosofia da consciência” e uma “filosofia da linguagem”.
1 — Kant e Adorno
“Muitos batem
com o martelo na parede, aqui e além, na convicção de que acertam sempre na
cabeça do prego.”
GOETHE
“...nele se
exprimem pensamentos e este valor será tanto maior quanto melhor os pensamentos
forem expressões. Quanto mais se acertar na cabeça do prego.”
WlTTGENSTEIN
O conflito
entre Adorno e Kant poderia ser traduzido de um modo aproximativo, basicamente,
através de uma metáfora que explicitasse a diferença entre duas modalidades de
compreensão da tarefa filosófica. Kant ao constituir com seu Sujeito
Transcendental e a priori o objeto transcendental com as categorias puras do
entendimento, na Critica da Razão Pura, visa, intencionalmente, atingir uma
forma de completude. Adorno ao postular o ensaio como um modelo e ao defender
os seus direitos de cidadania digamos assim, no seu Ensaio como Forma, está,
também, intencionalmente, a defender a incompletude nos domínios da investigação
filosófica. (nota 1)
Os dois,
entretanto, encontram a filosofia em momentos históricos diferentes. As tarefas
filosóficas de Kant e Adorno acabam distanciando um do outro e colocam um
desafio ao intérprete que, ostensivamente, terá que bater em pregos diferentes
em superfícies desiguais. Portanto, não há como traçar entre eles identidades e
as poucas semelhanças são a comunidade da língua e uma diferenciada compreensão
da filosofia como atividade crítica que deveria atingir a sua plenitude ou
finalidade na emancipação do homem pelo uso de uma razão ou racionalidade
autônoma.
Esta última
semelhança coloca Kant e Adorno dentro de uma tradição comum, mas, ao mesmo
tempo, os afasta, posicionando-os, respectivamente, na origem e, por assim
dizer, na crise desta tradição. (ROHDEN. 1981, p.l70)
Esta tradição,
conhecida sob o nome de Iluminismo, ao tempo de Kant (Século XVIII) estava articulada
com um “projeto” que visava o esclarecimento e a libertação do homem de
diversas formas de dominação e de sua menoridade (Kant. Was ist Aufklärung?).
Quando Adorno examina, ao seu tempo, o
Iluminismo (Século XX) encontra um projeto transformado em outra forma de dominação
e, por isso, vai criticá-lo e tentar, além disso, depura-lo daquilo que na sua
gênese foi concebido de modo a trair a sua intenção original e positiva. Nesse
exame destaca, precisamente, entre outros aspectos, certa concepção da relação
entre sujeito e objeto que, apesar de ter sido concebida como solução para
alguns problemas epistemológicos, comporta, após uma tica, alguns problemas
inconfessadamente ideológicos.
Nisso reside,
também, o maior problema de uma interpretação da crítica de Adorno a Kant, pois
em Kant não há uma compreensão, nem uma intenção de colocar o seu sujeito fora
dos domínios da sua lógica transcendental em que este está cumprindo uma
finalidade pura e abstrata. Portanto, como analisar o caráter ideológico de uma
concepção filosófica destinada a resolver, num sentido restrito, um problema
epistemológico?
Adorno não
desconhece o caráter da concepção de Kant e, to pouco, pode ser acusado de uma
incompreensão da filosofia kantiana. Isso pode muito bem ser verificado nas Lições
Introdutórias a filosofia publicadas sob o titulo “Terminologia Filosófica”(2).
O fato que Adorno coloca esta concepção
de sujeito e da sua relação com o objeto à luz de uma filosofia profundamente
influenciada pela obra de Marx, ou seja, de uma filosofia que vai fazer um
diagnóstico da sociedade capitalista e da suas formas econômicas, descobrindo,
sob à aparência de um “progresso”, a supressão do indivíduo ou a sua submissão
ao capital. Assim, encontramos a filosofia de Adorno ocupada com as implicações
ideológicas de uma solução ao problema da relação sujeito/objeto.
É nesse quadro
que a crítica de Adorno a Kant deve ser examinada. Para Adorno, Kant havia
estabelecido um “primado do sujeito” na Crítica da Razão Pura que acabou
redundando no s numa espécie de domínio do sujeito sobre os objetos (leia-se,
também, sobre a natureza), mas, além disso, um primado que acabou, à luz da
“metacrítica” de Adorno, resultando isto no estabelecimento da dominação dos
sujeitos por outro tipo de “sujeito”.
Aí, a dominação
da natureza (dos objetos) pelas categorias do sujeito atingiu o seu triunfo na
exploração do homem sobre o homem. Isso é aquilo que Adorno e Horkheimer, na
Dialética do Esclarecimento, designaram por “razão instrumental”.
Aquilo que
originalmente era um projeto “emancipacionista” de “tirar o homem de sua
menoridade” de fazê-lo ter “coragem” a usar o seu “próprio entendimento” o sapere aude (Kant. Textos Seletos, p.
100) transformou-se em dominação e, assim, uma teoria do conhecimento que
procurava justificar filosoficamente o nosso conhecimento, contra o ceticismo
por um lado e contra o dogmatismo por outro, estando associada ao “projeto do
iluminismo”, transformou-se no fundamento formal de uma “práxis” dominadora, não
somente de objetos (constituídos a priori), mas também do próprio sujeito
empírico e social.
Este “sujeito
empírico” encontrando-se desprovido da consciência relativa à capacidade
constitutiva da sua subjetividade é, então, um sujeito “reificado” ou
“coisificado”, em suma, um “objeto” para outro sujeito de posse da sua
consciência e das suas categorias ou, pode-se dizer, de posse dos seus
instrumentos racionais de dominação dos objetos.
A gênese, e
também o desenvolvimento desta posição de Adorno, contra o sujeito
transcendental, se apresenta e percorre a quase totalidade das suas obras. Como
um leitmotiv permanente. Desde sua talvez
primeira conferência, proferida em 1931, em Frankfurt, intitulada “A Atualidade
da Filosofia”; passando, entre outras obras, por “Dialética do Esclarecimento”
(em conjunto com Horkheimer, 1947), “Minima Moralia” (1947), sobre Husserl
“Metacrítica da Teoria do Conhecimento” (1956), na polêmica com Karl Raimund Popper
“Sobre o Positivismo na Sociologia Alemã” (1962) até a “Dialética Negativa”
(1966) e, especificamente, no ensaio sobre o tema Sujeito/objeto intitulado
“Sobre Sujeito e Objeto” (1969) o “mote” é o mesmo. Nesse sentido nos é sugestiva
uma observação de JAY de que:
“Apesar de Adorno ter enfatizado a
relação dialética entre a história e a filosofia, seu próprio pensamento permaneceu,
de modo surpreendente, constante ao longo de toda sua vida madura.”
(JAY,
Martin. As Idéias de Adorno, p.54)(3)
No Prólogo da Dialética Negativa, Adorno já expressa
algo que concorda com o que foi dito até então:
“Desde que o autor se atreveu a confiar em seus próprios impulsos
mentais, sentiu corno pr6pria a tarefa de quebrar com a força do sujeito o
engano de uma subjetividade constitutiva.” (Dialética Negativa, p.8)
O leitmotiv é
deste modo bastante específico, a saber, “a subjetividade constitutiva” e,
isso, tem uma relação a ser apresentada com a crítica ao “primado do sujeito” e
a sua caracterização, (4)
O objeto da
crítica de Adorno é encontrado, na sua articulação própria dentro da teoria do
conhecimento, na Crítica da Razão Pura de Kant, Aliás, o foco de Adorno é,
nesse caso, bem delimitado. A crítica é dirigida à Dedução Transcendental
presente na segunda edição da obra (1787).
Retomando, então,
para a “metáfora” do início: as tarefas filosóficas de Kant e Adorno apresentam-se,
assim, em lados opostos da “subjetividade constitutiva”. O primeiro postulando
a completude desta “constituição” e o segundo negando isso; postulando, então,
a incompletude de tal “constituição”, voltando-se então para uma defesa daquilo
que há no objeto que não pode ser encontrado já no sujeito na sua constituição
a priori (5).
Mas nisso, pode
ser elucidativo também que se destaque ainda uma propriedade bem particular de
cada um dos dois: Kant produz a sua reflexão num âmbito lógico-formal (ainda que
deva ser caracterizado rigorosamente como “transcendental”); enquanto Adorno
produz a sua reflexão num âmbito mais empírico ou, também, social. Isso obriga-nos
a tratar cada um dos dois no seu ambiente próprio relativamente à questão da
relação sujeito/objeto. Ficando, assim, apontado aqui que, em muitos momentos a
crítica de Adorno ultrapassa os domínios do pensamento “puro” de Kant,
colocando por assim dizer a tese de Kant conectada com algo que nela não estava
pressuposto. (6)
II — Kant: o Sujeito
“Aquilo que este homem
não compreende,
este homem não possui.”
Goethe
De certo modo,
bem vistas todas as questões, ao se tentar realizar uma exposição da concepção
de “sujeito” em Kant, envolve-se, consequentemente, em uma exposição de quase
toda a crítica de Kant (7).
Porém, esta
exposição poderia ser resumida a algumas passagens da Crítica da Razão Pura.
Estas são, basicamente, as seguintes:
a) Dedução Transcendental dos
Conceitos Puros do Entendimento;
b) Refutação do Idealismo;
c) Dos paralogismos da razão
pura;
d) Da anfibologia dos conceitos
de reflexão através da confusão entre uso empírico do entendimento com o uso
transcendental.
Como a nossa
tarefa envolve, também, a concepção do “objeto” em Kant, bem como, o locus em que este é concebido com um
primado do sujeito sobre o objeto, no sentido, a ser bem precisado, da sua
constituição pelo sujeito; a nossa reconstituição da concepção de “sujeito” em
Kant pode centrar-se sobre aquela concepção presente e explicita na Dedução Transcendental
dos Conceitos Puros do Entendimento e fazer um uso complementar, para isto, de
outras elucidações que, aqui e ali, ao longo da crítica, permitem uma
reconstrução consistente deste Sujeito (8).
Para
compreendermos a Dedução Transcendental, temos que compreender o que Kant quer
expressar com “Transcendental” e com o nome de “Dedução”. Isso pode ser feito
recorrendo-se as definições de Kant presentes na Crítica da Razão Pura (9).
Para o termo
“transcendental”, a despeito da existência de diversas definições ao longo da
obra o que, inclusive, constitui-se em objeto de exame e discussão, optamos por
duas definições presentes, respectivamente, na primeira e na segunda edição da
Crítica. Que encontramos duas destas definições nas duas introduções das duas
Edições da Crítica da Razão Pura (1781 e 1787 - nota 10).
Na primeira Edição
da Crítica da Razão Pura (1781) temos:
“Chamo transcendental a todo conhecimento que não se ocupa só de
objetos, senão de nossos conceitos a priori sobre objetos em geral...“ A 11
(11)
E, na segunda Edição
da Crítica da Razão Pura (1787), a definição da introdução é a seguinte:
“Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não
tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a
priori.. B 25
Assim, as duas
definições de transcendental apontam para uma das tarefas da Crítica da Razão
Pura que é objeto de exposição e prova na Dedução transcendental, à saber, que “o
nosso modo de conhecimento de objetos, deve ser possível a priori” (B 25) e que
essa possibilidade estaria conectada a uma certa prova da existência ( válida e
real) de “nossos conceitos a priori sobre objetos em geral” (A lI).
Ao mesmo
tempo, e agora vem a baila a caracterização da dedução, deveria ser demonstrado
que esses “conceitos” são os que utilizamos ao pensar ou ao conhecer os
objetos, o que implica, por sua vez, que os mesmos estejam, por assim dizer, em
nós (n,b, “nosso modo” e sejam “nossos conceitos.”- em outras palavras os
conceitos de nosso uso). (12)
À caracterização
desta “prova” ou “dedução” soma-se, ainda, um detalhe muito importante para a
filosofia transcendental,
“...dentre os
vários conceitos que constituem o muito mesclado tecido do conhecimento humano há
alguns determinados ao uso puro a priori (inteiramente independente de toda a
experiência),” B 117
Assim a dedução transcendental
deveria ser realizada, pois:
“...para a
legitimidade de tal uso não são suficientes provas da experiência, mas se necessita
saber como estes conceitos podem se referir a objetos que não provém de nenhuma
experiência.” B 117
Com isso, fica
mais claro o caráter da dedução transcendental que em outra passagem Kant
ancora na distinção jurídica sobre “o que de direito (quid juris) da que concerne aos fatos (quid facti)” (B 116), Sendo que - os juristas “chamam dedução a
primeira prova, que deve demonstrar a faculdade ou também o direito” (B 116),
Não se poderia
negar, por exemplo, que usamos conceitos de diferentes modalidades e que isso é
um fato, mas na filosofia transcendental a questão basicamente saber sobre o
quê, afinal, repousa esse uso de conceitos (p11) e, também, de onde provém a
sua eficiência e fecundidade, bem como, o direito ou a possibilidade do seu
uso. Segundo as citações podemos abordar isso em duas questões intimamente
conectadas: Qual faculdade tem os conceitos como instrumentos? Como eles se
estabeleceram em sua jurisdição?
Desse modo,
saber que a faculdade dos conceitos, o entendimento, pode ajudar - através de
uma caracterização das atividades desta faculdade - à saber como foi
estabelecido “em nós” o direito e a legitimidade do uso de conceitos. Para isso
Kant escreveu a dedução transcendental e com isso, deslocou o foco das
respostas aos problemas epistemológicos para o âmbito (ou jurisdição) do
sujeito e não mais das propriedades dos objetos entendidas como determinações
inerentes aos objetos (como coisa-em-si), mas sim ao postular que as
propriedades dos objetos só são cognoscíveis na medida em que estiverem já a
priori no sujeito delineadas ou dispostas. Tais propriedades do sujeito passam,
então, a serem chamadas não mais de categorias (lembra-te da tradição que vinha
desde Aristóteles), mas sim de conceitos puros do entendimento. O exame da
legitimidade é, ainda, caracterizado de outra maneira por Kant:
“...denomino dedução transcendental de conceitos a explicação da
maneira como estes podem referir-se a priori a objetos, e acrescente-se –
distingo-a da dedução empírica que indica a maneira como um conceito foi
adquirido mediante experiência e reflexão sobre a mesma, e diz portanto
respeito não a legitimidade, mas ao fato pelo qual a posse surgiu.” B117
Devemos,
portanto, endereçar agora a nossa atenção para o que viria a ser um conceito e,
mais especificamente, o que pode ser entendido como um conceito puro o qual
teria uma legitimidade dada pela dedução em seu “referir-se a priori”. (13)
Os conceitos
cumprem um papel importante para o pensamento e o conhecimento, pois através do
seu uso que nós classificamos os objetos, ou seja, através deles que nós
diferenciamos os objetos quanto às suas propriedades que os colocam em classes,
espécies, etc. Os conceitos empíricos, são facilmente exemplificáveis, já os
conceitos puros requerem a abstração e a reflexão, bem como, a comparação, (14)
Todo conhecimento
procura dar conta de uma característica ou propriedade universal de um objeto,
para isso se utilizam conceitos. Encontrar uma nota comum ou uma característica
compartilhada entre dois ou mais objetos ser capaz de colocá-los sob um
conceito. A classificação de um conhecimento de que o Objeto x e o Objeto y
encontram-se sob o conceito A. No caso de conceitos empíricos, o conceito de
“cavalo” classifica tanto este cavalo que temos figurado em um quadro ra
parede, quanto aquele que venceu o Último Grande Prêmio da Independência no
jockei, sob uma mesma família ou classe. Podemos, por exemplo, contar as
cadeiras desta sala e dizer “temos quarenta cadeiras aqui e todas elas
enquadram-se perfeitamente sob o conceito de cadeira que nós possuímos” ou que
“todas elas são cada uma, um exemplar particular de cadeira”.
É nesse
sentido que a caracterização de um conceito empírico, presente na “lógica” de
Kant, nos afirma que “O conceito empírico origina— se dos sentidos pela
comparação dos objetos da experiência e recebe mediante o entendimento
unicamente a forma da universalidade.” (A 141) Note-se, os “sentidos”
apresentam um objeto particular que , então, classificado pelo “entendimento”
em uma certa forma universal, mas se assim temos que investigar a origem desta
forma universal, observando que, segundo Kant, no dos sentidos que esta forma
provam, Por isso, podemos nos dirigir para algo semelhante a tal “forma” e
examinar o que seria um “conceito puro”.
A definição na
“Lógica” a seguinte:
“Um conceito puro é um conceito que não é tirado da experiência, mas se
origina quanto ao conteúdo também do entendimento” Â140
Soma-se, então, uma “forma” e o
“conteúdo”. Isso poderia significar que o “conceito puro” possui um grau de
universalidade absoluta ou, no sentido de não ser tirado da experiência, ser o mais
abstrato possível.
Na passagem que antecede a “dedução”, Kant nos dá uma
exp1icação destes conceitos. Cito:
“São conceitos de um objeto em geral mediante os quais a sua intuição é
considerada determinada no tocante a uma das funções lógicas de juízos,” B 128
Nesta passagem
devemos observar, para compreender a relação entre o conteúdo e a forma de um
objeto em geral como um “transcendental ou, como um “conceito puro”, também, a
semântica própria utilizada por Kant, no que diz respeito à expressão intuição,
Sabemos que intuição e conceito são representações de caráter distinto e que
sem um certo entrelaçamento entre as duas, o conhecimento a priori não seria
possível, nem condição de possibilidade do conhecimento empírico, Isso é reiterado
em diversas passagens da Crítica da Razão Pura, Mas, ainda não é claro o papel
da sensibilidade no estabelecimento da filosofia transcendental.
O significado
da “intuição” estabelecido na Estética Transcendental que trata da
sensibilidade (a parceira do entendimento) e desse tipo de “representação” que
lhe pertence, A definição de “sensibilidade” como “a receptividade da nossa
mente para receber representações” (75) aponta que a “intuição não pode ser senão
sensível, isto , contém somente o modo como somos. afetados por objetos” (idem).
Assim, a sensibilidade trata da forma da recepção de representações, através de
intuições, o que ainda pode ser mais qualificado, pois, assim como há uma
distinção entre conceitos empíricos e conceitos puros, há, também, mediante um
processo de distinção quase correlato, uma distinção entre intuições puras e
empíricas.
Se
compreendemos bem a definição de transcendental, exibida atrás, então podemos dizer
que a “Estética” trata tanto da recepção de representações, como daquilo que
subjaz a isso no âmbito da sensibilidade pura, à saber do modo ou da forma de
recepção de representações e, também, por consequência, dos seus conceitos ou
princípios de caráter a priori.
Assim, a
“recepção de representações” vai ser decomposta em uma forma de recepção (que
também será uma representação) e aquilo que propriamente recebido através desta
forma, como matéria da representação ou, melhor, como a representação empírica
mesma de um dado objeto da experiência sensível.
Temos, desse
modo, duas maneiras de receber representações de uma dado objeto Estas maneiras
podem também ser designadas de “instrumentos” de nossa sensibilidade. As intuições
empíricas seriam dadas através de uma experiência particular, mediante sensação
(B 34) como que “um efeito sobre a capacidade de representação” (idem), o seu
objeto seria “indeterminado” e receberá o nome de “fenômeno” (ibidem).
Kant toma, então,
este “fenômeno” e discrimina nele dois aspectos. O primeiro é a sua matéria “aquilo
que corresponde nele à sensação”, e: o segundo é a sua forma “aquilo que faz
com que o múltiplo do fenômeno possa ser ordenado em certas relações” (B 34).
Quanto à isso,
vem à tona o conceito de “intuição pura” que seria responsável pela forma pura
da sensibilidade em geral e que deve ser apresentado como princípio a priori,
relativamente ao fato deste “ordenar em certas relações” não poder ser dado
pela experiência e ser , antes disso, uma condição de possibilidade da mesma,
seja quanto a sua inteligibilidade, seja quanto a sua efetividade para um
sujeito de percepção. Segundo Kant, há duas e somente duas modalidades de “intuições
puras”, a saber, urna espacial vinculada ao sentido externo e a outra temporal
vinculada ao sentido interno.
Cada uma
destas é responsável por uma parte daquela ordenação, na medida em que,
temporalmente, conseguimos distinguir uma experiência de outra e, portanto,
situá-las como: anteriores, contíguas ou posteriores umas às outras; e, na medida,
em que, espacialmente, podemos situar, também, dar um lugar a experiência e ao
seu objeto, percebido como fenômeno, como estando próximo ou afastado, a
direita ou a esquerda, acima ou abaixo, etc.
Espaço e
tempo, vistos do ponto de vista de uma forma da sensibilidade, são, ainda, ”formas
puras da intuição sensível” e, com isso, “tornam possíveis proposições sintéticas
a priori”. (B 56), deste modo, são também condições para que se pense em um
“objeto em geral”, para o que os conceitos puros seriam responsáveis pela
possibilidade de determinar a intuição “no tocante a uma das formas dos juízos”
(B 128, já citado),
Posto isto, a
possibilidade de determinar um objeto estaria vinculada àquilo que designamos
por certo entrelaçamento de intuições e conceitos, pois determinar um objeto
seria apresentá-lo em certo juízo com aquilo que lhe é próprio o que, de um
ponto de vista transcendental, dependeria do estabelecimento desta
possibilidade através de uma “referência a priori”. Na medida em que esta
conteria a sua distinção estabelecida já em certa capacidade de organização da
experiência que não seria dada na mesma. O “objeto em geral” seria, então, o núcleo
da possibilidade de um objeto empírico. Pois, se for possível ordenar os
conceitos nele que tem um caráter puro, no objeto empírico, contingente e
diverso, tudo fica mais fácil.
O
importante aí, é o significado daquilo que Kant designa por “objeto em geral”
que, no caso, teria uma intuição constituída a priori, portanto pura, ou seja,
independente da experiência sensível no sentido empírico
Podemos
considerar o “objeto em geral” como, justamente, um conceito vazio, mas que
assaz frti1 para o nosso conhecimento de objetos particulares, empíricos. Ao
ser constituído de modo a priori este “objeto em geral” apresenta-nos as condições
sob as quais os objetos podem ser pensados, representados e conhecidos.
Pensados no sentido transcendental com a “a prioridade”, representados na sua
idealidade subjetivamente e conhecidos na sua determinação empírica como intuição
empírica através das formas puras da sensibilidade espaço e tempo.
Ao mesmo
tempo, tal conceito traz junto de si outros conceitos, isto é, ao pensar em um
“objeto em geral”, passa-se a pensar também naquilo de que ele seria composto.
Passa-se a pensar no seu modo de
composição, e também em todas as propriedades que podem ser atribuídas a ele, sem
que o mesmo perca sua generalidade”. Esta “generalidade” é a qual lhe dá a
propriedade de constituir um “universo de aplicabilidade dos conceitos puros”,
o que Kant designa por domínio da experiência ou, também, pela experiência possíve1
que compreenderia a totalidade dos objetos sensivelmente intuíveis.
Assim, com o
“objeto em geral” Kant apresenta um “objeto a priori” que tem certa forma lógica
(ser aplicável a todos os objetos), e certo conteúdo (dado pelo “entendimento”),
a saber, a totalidade dos conceitos puros e suas determinações transcendentais.
A questão é então:
como provar que esse “conteúdo” se origina no entendimento, conforme a Lógica
(A 140) já citada atrás?
Para responder
a isso, Kant vai dar certa atenção ao que denominamos antes de “composição” e
“modo de composição” de um “objeto em geral”. Esta “atenção” abre o início da
Dedução Transcendental com um conceito substituto daquilo que chamamos aqui de
“composição”, a saber, a “ligação” (§l5, B 129):
Se o “objeto
em geral” deve ser entendido como resultado de uma constituição a priori, uma
atividade do sujeito, em que é realizada certa composição ou, nos termos de
Kant deve ser bem compreendido como tendo sob si um múltiplo ou diverso de
representações em geral, a unificação, a “ligação” desse múltiplo em geral que
resultará no “objeto em geral”, deverá ter também um caráter a priori e
transcendental, visto que é aquilo que é unificado no dado pelos sentidos na
experiência,
Daí Kant afirmar, então, que essa
“ligação”:
“,..jamais pode nos advir dos sentidos e, por conseguinte, tampouco
estar ao mesmo tempo/ contida na forma, pura da intuição sensível; pois tal
ligação uma ato da espontaneidade da capacidade de representação... “ B 129-130
Isto é, se
pensarmos de um ponto de vista lógico-transcendental, que é aquele do qual Kant
fala aqui, a ligação de uma dada multiplicidade de representações de um dado
objeto em geral (produzido subjetivamente) não é dada pela nossa sensibilidade.
Isto é, seja ela dada através de uma
intuição empírica (que não constitui um objeto em geral), seja ela dada através
de uma intuição pura (que mesmo constituindo um objeto em geral, não pode ser
de origem na experiência).
Assim, a
conclusão que esta ligação não sendo de origem sensível, não tendo a sua origem
na sensibilidade só pode ter a sua origem através do exercício de uma atividade
do entendimento que Kant qualifica como sendo uma atividade espontânea da nossa
capacidade de representação (B 130).
“...não podemos nos representar nada ligado no objeto sem o termos nós
mesmos ligado antes, sendo dentre todas as representações a ligação a única que
não pode ser dada por objetos, mas constituída unicamente pelo próprio sujeito
por ser um ato de sua espontaneidade.” B 130
Disso é importante
destacar a condição de que “não podemos ligar nada no objeto”. No sentido que
ser “ligado no objeto” significa ter a unidade das representações pertinentes a
um dado objeto, a sua origem, num ato do sujeito, pois se esta ligação fosse
inerente ao objeto em si (ou coisa em si) não poderia ser jamais conhecida por
nós. Pois o objeto considerado de um ponto de vista transcendental, só pode
possuir as propriedades que nós nele colocamos. As diferentes representações
ou, melhor, as diversas representações a serem unificadas sob o ato espontâneo
de ligar, só podem efetivamente serem ligadas (pensadas e representadas por nós)
se tiverem em nós a sua possibilidade já estabelecida. Isto é, in fine, o que Kant designa por
faculdade. A faculdade teria em si as condições sob as quais os objetos podem
ser intuídos e pensados. Por isto, Kant fala sempre em duas faculdades, o
entendimento e a sensibilidade que seriam responsáveis, respectivamente, pelos
conceitos e as intuições através das quais os objetos são cognoscíveis. Mas o
estabelecimento desta “possibilidade” é, também, o estabelecimento de outras
possibilidades. Isto é, aquilo em que repousa a tese idealista kantiana que,
por sua vez, nos ajudará a compreender um pouco mais ainda o primado do sujeito
aí na dedução, (15)
Ao final da
dedução transcendental, Kant nos dá um “Conceito Sumário desta Dedução” (B 168-169),
em que fica claro a relação entre as duas “possibilidades” e o seu vínculo a
uma tese relativa ao primado do sujeito que, ao mesmo tempo, nos ajuda a
introduzir o que nós designamos de núcleo da concepção de sujeito em Kant
presente no §16 da dedução (B 131-136). Vejamos então o texto deste conceito
sumário:
“É a apresentação dos conceitos
puros do entendimento (e com eles de todo o conhecimento teórico a priori) como
princípios da possibilidade da experiência, desta porém como determinação dos
fenômenos no espaço e no tempo em geral - por
fim desta determinação a partir do princípio da unidade sintética
originária da apercepção enquanto a forma do entendimento com referência a
espaço e tempo, como formas originárias da sensibilidade,’ B 168-169
A primeira possibilidade está
expressa, naquilo que Kant designa “todo o conhecimento teórico a priori”, na
medida em que este “a priori” estaria a significar a possibilidade dos
conhecimentos a posteriori ou, também, de todos os conhecimentos empíricos. Assim,
a possibilidade do conhecimento seria, então, estabelecida por certa espécie de
conhecimento anterior (como condição) à experiência. Aí, contata-se agora, fica
claro o sentido da expressão “possibilidade” que traz em si as condições
formais (subjetivas) da experiência objetiva. Essa “possibilidade” é a
possibilidade do conhecimento, mas é também, em Kant, a possibilidade mesma da
experiência e, por consequência, a possibilidade dos objetos da experiência.
“As condições de possibilidade da
experiência como tal são, ao mesmo tempo, condições de possibilidade dos
objetos da experiência.”(nota 16)
A importância
da “unidade” de diversas representações sob uma representação comum é relativa
a possibilidade de ser expressa, na proposição, a diversidade do objeto. Se podemos,
ora, reunir a priori algumas representações - constituído um objeto em geral –
então, podemos conhecer os objetos empíricos através de um processo de síntese
que é, por sua vez, baseado naquela síntese transcendental.
Deste modo, as
condições de possibilidade expressas em uma “ligação” de caráter a priori,
seriam condições de possibilidade da experiência em geral, pois toda experiência
pode ser compreendida como possuindo certa diversidade sob si, para o sujeito,
de representações; e, também, seriam condições de possibilidade da experiência
de objetos, pois tal “experiência” é, no mínimo, entendida como a relação entre
o objeto e uma propriedade deste.
Assim a
possibilidade da constituição de um objeto a priori (o objeto em geral), traz
em si a possibilidade de uma experiência particular de um objeto empírico, bem
como, permite que esta experiência, enquanto experiência de um sujeito, tenha a
possibilidade de ser pensada.
O conceito de
“ligação” que descrevemos operando até aqui traria à tona, portanto, a
possibilidade de se estabelecer uma clara resposta à própria questão da verdade
como adequação. Na medida em que o acordo dentro de uma teoria da representação,
entre as representações do sujeito e as propriedades do objeto, não seria de
modo algum problemático, na medida em que nada há para ser conhecido,
representado ou pensado no objeto que não esteja já na constituição da
totalidade das categorias do sujeito. A consequência é: aquilo que não é
encontrável no sujeito - como conceito ou como intuição pura -, não é
cognoscível no objeto e, também, não está nos domínios da experiência do
sujeito.
Esta “ação do
entendimento,,,com o nome geral de síntese,,.” (B 130), traz consigo, portanto,
duas coisas relativas ao sujeito e ao objeto que, em uma dada teoria do
conhecimento, devem ser resolvidas a saber qual a origem e, tamb6m, quais os
limites do conhecimento humano, A origem seria estabelecida no sujeito, e os
limites seriam circunscritos pelo alcance das categorias e intuições das
respectivas faculdades, mostrando-se, então um domínio designado por Kant de
“experiência possível”.
Assim, a
possibilidade do nosso conhecimento (representada pela possibilidade dos
objetos da experiência) teria o seu fundamento em certo tipo de relação
estabelecida de modo a priori entre as duas faculdades. (17)
Como estas
“possibilidades” são estabelecidas de modo a priori (independente da
experiência) no sujeito que o portador das duas faculdades, então, este sujeito
teria um “primado” em relação ao objeto, na medida em que o mesmo só se
encontraria na experiência dado ao conhecimento, na mediatização dos conceitos
puros do entendimento que seriam responsáveis pela possibilidade de sua
representação discursiva e na mediatização das intuições puras enquanto formas
da sensibilidade, através das quais o objeto se apresentaria ao sujeito e seria
conhecidos.
HEINRICH
(1988), numa análise da identidade do sujeito na dedução, nos apresenta o que
foi desenvolvido até aqui (excluindo-se, devemos anotar, o nosso tratamento de
“objeto em geral”, “conceito” e “ligação”).
Vejamos:
“A Dedução transcendental é uma
dedução das categorias. “Deduzir” categorias significa apresentar os
fundamentos da onde se deriva o uso de conceitos como predicados de proposições
a priori e mostrar em razão de sua origem, que é justa a presunção de
conhecimentos vinculada a estas proposições; A dedução de Kant mostra isto
partindo da autoconsciência, e como as categorias, em relação a possibilidade
da autoconsciência, podem ser entendidas como condições para isso, nessa medida
(a dedução mostra) que a experiência possível,” (18)
Como o ponto
de partida é a “autoconsciência”, expressa pela “unidade sintética originária
da apercepção” $16, E 131), e essa “autoconsciência” deve ser entendida como
sendo pertencente ao sujeito que aquele que através de um “ato espontâneo do
entendimento” (do seu ou “nosso” entendimento) produz uma “ligação” a priori de
todas as representaç6es (conceitos e intuições), então a possibilidade da
experiência, dos objetos da experiência tem a sua “origem” subjetivamente
estabelecida. Isso é o núcleo da tese “Idealista Transcendental” de Kant.
Se é deste
modo, então, se quisermos buscar em Kant o núcleo da sua concepção de sujeito,
temos que nos dirigir para o lugar em esta “unidade sintética originária da
apercepção” é devidamente apresentada, pois será neste locus encontrada a tese do “primado do sujeito”. (19)
No §16 da Dedução Transcendental,
Kant afirma:
“O eu penso tem que poder acompanhar
todas as minhas representações; pois do contrário, seria representado em mim
algo / que não poderia «e modo algum ser pensado, o que equivale a dizer que a
representação seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada.” B
131-132
Esse “eu
penso” acompanha as representações de um sujeito, na medida em que cada uma
delas e, também, todas elas quando unificadas sob uma consciência podem e
“devem poder” serem acompanhadas pelo “eu penso” que faria, então, uma
referência destas ao sujeito que as representa, seja de um modo particular,
seja de um modo universal. Assim, acompanhadas pelo “eu penso” as
representaç6ea, sejam elas quais forem, tem um sujeito a qual se referir
ligadas, como representações suas (minhas, na passagem - e “nossas” mais
atrás). Isso funciona, também, como uma regra ou princípio para o “pensamento”,
da sua possibilidade. (20)
Temos aí uma
espécie de dependência, bem entendida, das representações, como instrumentos de
conhecimento, e, portanto, de todo o conhecimento, relativamente ao sujeito.
Nesse sentido, um “primado do sujeito” estaria expresso em Kant como tese. Mas
como já observamos antes este “primado” para constituir um conhecimento exige,
ainda, uma relação com um determinado objeto, pois quando, transcendentalmente,
relacionado a um “objeto em geral” o “primado” & somente da ordem do
pensamento e no traduz—se por nenhum conhecimento dentro do âmbito da
experiência possível. Nesse sentido, Kant exemplifica isso lapidarmente na “lógica”.Vejamos:
“Todo o nosso conhecimento envolve uma dupla relação: primeiro, uma
relação com o objeto; segundo, uma relação com o sujeito. Sob o primeiro
aspecto, ele: relaciona-se com a representação; sob o segundo, com a
consciência, a condição universal de todo o conhecimento em geral. (A rigor, a
consciência uma representação de que uma outra representação está em mim.)” KANT.
Lógica. A 40
Assim, essa
“dupla relação” de todo o nosso conhecimento relativamente ao seu “sujeito” (nós)
e ao seu “objeto” estaria mediada por certo número de representações com
fundamento subjetivo. Estas representações podem, segundo a citação anterior e
o que até então foi apresentado, serem discriminadas em três tipos de representações.
intuitivas, representações conceituais e, ainda, aquela representação que
unificam as anteriores, a representação de consciência. Se explorarmos isso um
pouco mais, iremos acabar concluindo que a representação de consciência, distingue-se
justamente, por envolver sempre uma outra representação como seu ‘objeto’, num
sentido próprio, meramente formal, pois só tem algum conteúdo quando tem uma
outra representação sendo acompanhada por ela.
O
“eu penso” que estaria acompanhando uma outra representação (intuitiva ou
conceitual dependente, também, da “presença” de uma representação na
consciência para ter algum conteúdo. Segue-se disso, que o sujeito sem o
objeto, a consciência sem a representação, não constitui conhecimento (21).
Nesse sentido,
o sujeito transcendental kantiano deve ser entendido nos domínios em que é colocado
no seu principal papel: na lógica transcendental. Isto é, o sujeito, aparece
ali aonde o domínio da lógica, dos princípios formais do pensamento em geral são
constituídos como “condição de possibilidade da experiência”, na medida em que
apresentam a legitimidade de nossos conhecimentos corno tendo a sua origem a
priori ou seja, numa “referência a priori a um objeto em geral”.
Para que essa “referencia a priori” seja
constituída é preciso que as representações estejam presentes, seja na forma de
“conceitos” seja na forma de “intuições puras”.
Essa
“necessidade das representações” está conectada, no texto de Kant, ao que ele
designa de “pressuposição de alguma unidade sintética qualquer” (B 133) que
seria, no contexto da dedução, o pré-requisito para que seja possível a
“identidade da consciência, isto é, a unidade analítica da apercepção” (idem).
Temos que interpretar isto, pois que definitivamente encontraremos certa conexão
entre o sujeito e o objeto que torna necessário ao sujeito, a identidade da
consciência do Sujeito, uma “unidade sintética qualquer” que ,
significativamente, possui um certo entrelaçamento de representações que
estando “ligadas” numa consciência constituem uma certa “unidade sintética” do
diverso que pode ser conceitual ou intuitivo e conceitual (22)
NOTAS
1. Kant é, talvez, o iniciador de
um processo de constituição dos “limites” ou “domínios’ da razão. É importante
observar que esse processo em Kant tem por objetivo a constituição dos limites
tanto da metafísica quanto dos domínios da nossa experiência sensível. Assim, o
que importa saber é do que a razão é capaz, qual é o seu alcance resolutivo num
ou outro desses domínios, ou seja, até que ponto ela é eficaz, Mas o projeto de
traçar tais “limites” não iniciou e não parou em Kant. Devemos também
a David Hume uma expressão do que podemos atribuir como a paternidade desta atividade
dentro da filosofia moderna. Para a filosofia antiga temos em Parmênides o seu
mais enfático representante e na filosofia medieval encontramos Guilherme de
Ockam como bastião.
Após Kant, temos, provavelmente
em Wittgenstein um dos que seguem tal objetivo. Na sua introdução ao “Tractatus
Logico-Philosophicus” (1921) temos que nesta obra compete traçar os limites da
linguagem e do pensamento dentro dos quais são possíveis proposições com
sentido e passíveis de serem verdadeiras ou falsas, Af 1W, institui o domínio
do “sentido”, enquanto Kant instituiu o domínio da experiência possível e o
domínio da metafísica, Kant ainda preserva o sentido das expressões
metafísicas, tirando destas, porém, a possibilidade de serem reputadas ou
decididas como verdadeiras ou falsas, Para Wittgenstein, porém, tanto a
metafísica quanto a filosofia são destituídas de sentido e a lógica, por seu
lado, não diz nada, sobrando o “sentido” para um domínio restrito, aquele dos
enunciados descritivos sobre os estados de coisas (empíricos).
O detalhe que para ambos, dentro
de um certo domínio, tanto a completude — resolução de problemas quanto a
totalidade das expressões são garantidas, Em Kant a Metafísica ganha ou
conquista seus limites, mas a razão permanece ilimitada, pois “Com efeito,
todos os conceitos, ou melhor, todas as perguntas que a razão pura nos apresenta
situam-se não na experiência, mas sim tão somente na razão e, em virtude disso,
tem que poder ser resolvidas e concebidas segundo a sua validade ou nulidade”
(CRP, B 791, apud LOPARIC. 1988, p.68); em Wittgenstein o “pensamento” ganha os
seus limites através da limitação da linguagem e, assim, a “razão” foi sendo
restringida a um domínio.
Mas, em 1931, quando Kurt Gödel,
um jovem estudante de matemática, prova a incompletude de um sistema dedutivo na
aritmética: há uma f6rrnula bem formada aritmética que é verdadeira, mas que
não é nem demonstrável nem refutável, Assim não e possível estabelecer a
validade ou nulidade desta fórmula, o que importa na admissão de que nem todas
as questões que a razão concebe são passíveis de serem decididas, Assim imposto
um limite a, até então preservada, pretensão do espírito humano de esgotar em
um sistema dedutivo os seus problemas.
Ainda que para Kant trata-se dos
limites da metafísica e não dos limites de um sistema aritmético, temos aí um
“paradoxo da racionalidade” em que a razão humana defronta—se, a medida que
persegue em seu próprio exame, com uma limitação progressiva da sua capacidade
(veja-se LOPARICK, 1988, p74.).
Nesse sentido, não somente a
concepção do “Ensaio como Forma”, mas também a crítica de Adorno ao primado do
sujeito é tributário deste processo cada vez mais agravado de limitação dos poderes
da razão.
Talvez esse seja o major “paradoxo
da racionalidade” do espírito humano, o fato de quão mais racional ele se torna
(no exame de si mesma), mais consciente das suas limitações ela se descobre. E,
isso tudo, altera a compreensão da tarefa da filosofia, pois vai-se, paulatinamente,
explorar as limitações da razão, produzindo-se outras orientações e concepções
de filosofia. Uma ética e uma estética confrontadas com isso são radicalmente
alteradas, mas, entretanto, quando os limites tinham a sua proveniência destas áreas
eram reputados como “desafios da razão” e não como “fronteiras”.
2. ADORNO, T.W, Terminologia
Filosófica, v,I eII, Madrid: Taurus, 1983, Este texto, constituído em 1962 de
lições de introdução à filosofia, nos mostra o filósofo Adorno, fazendo uma
revisão da terminologia que demonstra amplo domínio e profundo discernimento
dos conceitos filosóficos de outros autores e da tradição, ao contrário da opinião limitada de alguns. Bem
como, pode ser útil na complementação de uma análise da sua crítica a Kant, na
medida em que expõe a sua interpretação e reconstrução de conceitos e teorias deste
autor.
5. Mas, ainda assim, o enfoque de
Adorno preserva o sujeito como termo fundacional junto do objeto de uma
“epistemologia”, Melhor ainda, a preservação importa no reconhecimento daquilo que
não se encontra no equipamento categorial do sujeito, ou seja, aquilo que deve
ser encontrado no objeto e na constelação conceitual que o acompanha (D,N.,
p,165). De qualquer modo, isso pode ser visto como um índice de uma preservação
do projeto iluminista, Aliás, em “O Discurso Filosófico da modernidade”
Habermas (1990), procura mostrar que o embate com a “subjetividade
constitutiva” ou o “primado do sujeito” dominante na filosofia contemporânea e
propõe, como alternativa, a sua teoria comunicativa. Sobre Adorno e Horkheimer,
nesse quadro, consultar pp.109-129 da mesma obra, especialmente como análise da
relação entre iluminismo e mito em ambos e em “Dialética do Esclarecimento”
conectada a “Dialética Negativa” de Adorno (p.128).
6, Por exemplo, não estava
pressuposta em Kant, uma conexão entre a sua teoria do conhecimento e toda a
cultura moderna. O terreno do seu conflito era “metafísico” e “epistêmico”.
Para se orientar com uma posição sobre isso, ver Habermas (op. cít, p.30)
“,,,sem que Kant tivesse apreendido a modernidade como tal,” (P.S. Ressalve-se
aqui, para todos os efeitos, que por outro lado o que Habermas chama de
modernidade ali não é um conceito compartilhado por Kant e nem precisa ser. É
um conceito desenvolvido a partir de uma interpretação histórica e política dos
acontecimentos da modernidade. Salvo o processo iluminista e quiçá o próprio
movimento crítico, Kant não se afiliava a nenhuma forma de modernidade.
Portanto, é um anacronismo tratar de um Kant da modernidade, na modernidade ou
fora dela.)
7, Utilizamos, especialmente, a 2ª
Edição da “Crítica da Razão Pura” (1787), na tradução de Valério Rohden e Udo Baldur
Moosburguer para o português.
Quando usamos a 1ª Edição da “Crítica da Razão Pura” (1781),
trata-se da tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
Todas as citações referem-se, como de praxe, a 1ª Edição A e 2ª Edição B, seguida da paginação original o que é inserido
na margem das duas traduções, Quanto ao tom irônico da primeira frase, parece
ser evidente o seu fácil assentimento
8. O que segue é, também objeto
de exposição em MUSSE (1991) pp. 127-169, Salvo algumas alterações, foi por nós
apresentado no V Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em outubro de 1993,
sob o títu1o “Autoconsciência Transcendental em Kant: Para uma Análise da Crítica
de Adorno ao Primado do Sujeito em Relação ao Objeto”. (P.S. O destaque do
trabalho tanto do ponto de vista da iniciação científica quanto ad formação em
filosofia que ensejou a participação do aluno no Salão de Iniciação, foi motivo
de entrevista também na Rádio da Universidade no Programa Ciência em Cena.)
9. O nosso guia quase como um
cânone para a escolha das definições nesta exposição tem sido TORETTI (1967).
10. Conf, TORRETTI (1967) p,53,
Em nosso trabalho de graduação do bacharelado em filosofia da UFRGS, tratamos
de examinar mais detidamente estas definições de transcendental o que, em parte
também é apresentado e interpretado aqui, ainda que com mais brevidade. (P.S.
Este trabalho tem como seu par este trabalho de graduação concluído em Dezembro
de 1993.)
12. “existência” neste contexto
pode parecer ambígua, mas com o exame das “possibilidades” fica mais claro o
seu uso. Para “validade” e “realidade”, ver a distinção exposta por ALLISON
(1992) pp. 217-272 entre “validade objetiva” e “realidade objetiva”. Note-se que
o pensar e o conhecer são, na filosofia transcendental, reunidos na conexão
entre os princípios do pensamento (lógica) e os princípios ou condições de
possibilidade do conhecimento (epistemologia) enquanto estes últimos seriam
tanto condições de possibilidade da experiência quanto condições de
possibilidade dos objetos da experiência. No último sentido podemos falar,
talvez, de “existência”. Sobre isso, ver KANT Progressos da Metafísica (1985)
p.44-45, em que trata-se da “realidade objetiva” de um conceito puro, através
da sua apresentação, Estar “em nós” sugere tanto o fundamento subjetivo ou
lugar subjetivo deste conceito, quanto o seu fundamento intersubjetivo ou lugar
intersubjetivo no ser humano finito provido de razão e entendimento, Isso vai
contra as acusações de solipsismo endereçadas à filosofia de Kant pelo realismo
ingênuo.
13, “referir-se a priori” é
importante em dois sentidos: 1., quando relativo a uma intuição pura que é sensíve1,
mas que pode ser elemento a priori para, por exemplo, a construção de um
conceito de número; e, 2., quando constitui-se por um juízo sintético a priori que
seria a regra sob a qual as intuições podem ser apresentadas. Grosso modo, os.
exemplos de regras são os princípios da matemática pura, da geometria pura ou
da física teórica. Da pergunta pela sua “possibilidade” parte Kant. Ver “Prolegômenos...”,_(1987)
A 48.
14. Conf, “Lógica” (1992) A 145.
15. Conf. “Prolegômenos...”
(1987). A 85.
16. KANT, citado em TUGENDHAT
(1992) p.88. Onde, também, encontra-se a discussão sobre a “filosofia da consciência”
versus a “filosofia da linguagem”. Cito: “a questão sobre a consciência assim
como a questão ontológica sobre “o ser enquanto ser”, passa a ser uma questão
sobre a compreensão de sentenças.” (p, 111) Mudando-se, deste modo, por
subordinação, dos paradigmas da consciência e da ontologia ao paradigma lógico-semântico.
17. Bem entendido, entre o
entendimento e a sensibilidade, através dos seus instrumentos puros (intuições
e conceitos a priori) num juízo sintético a priori que possibilitaria o
conhecimento, Além disso, apontamos a exclusão aqui, para fins de simplificação,
de dois pontos importantes em Kant para a efetivação da mediação entre as duas
faculdades, a saber, aquilo que é pertinente ao seu caráter ativo do
“esquematismo” (B 176-187) e a questão relativa à terceira faculdade, a
“imaginação” abandonada, segundo Heidegger, na eliminação de duas passagens da 1ª
para a 2ª edição da Crítica da Razão
Pura.
18, HEINRICH. (1988) p.74. As
referidas, por Heinrich, “proposições a priori” podem ser entendidas como
expressões em que o objeto em geral estaria constituído discursivamente (com
conceitos) e em que a “ligação” ou a unificação de um diverso de representações
(com intuições puras) poderia figurar.
19. Adorno, aliás, não faz outra
coisa, dirigindo contra a passagem, a seguir citada do §16 da Dedução
Transcendental os seus argumentos principais. Em Dialética Negativa ,
pp. 185-187, em “Sobre o sujeito e objeto”, pp, 200-202 (trad., Ruschel). Para
a seguir postular a “primazia do Objeto”.
20. HEINRICH (1988) apresenta um
tratamento clássico do “eu penso” no texto já citado, e BECKENKAMP (1987)
discute largamente o mesmo tema servindo em linhas gerais para o que foi
desenvolvido aqui.
21. Retornando a nossa primeira e
larga nota, talvez seja mais interessante agora traçar-se, brevemente, um
paralelo com a versão de “sujeito” em Wittgenstein (1993); pp. 245— 247, em que
o “Sujeito” não existindo (5.631) deixa de ser objeto de conhecimento, pois está
fora do mundo”, como seu limite (5.632). Em Kant, essa posição é mais clara e
dirige-se também contra uma faceta da então concepção de “natureza humana” da
época moderna. No § 25 da Dedução Transcendental não há autoconhecimento do “eu
penso”, pois este não possui uma auto-intuição ou uma intuição intelectual. Na
“Refutação do Idealismo” (B 274-287) o argumento volta-se contra Descartes e,
na passagem intitulada “Dos Paralogismos Da Razão Pura (B 399-428), contra a
Psicologia raciona1 e as acusações de que ele (Kant), defende um idealismo
absoluto ou empírico. Ver, também, no prefácio da 2ª Edição nota B XXXIX. O paralelo entre Kant e
Wittgenstein e traçado, também, e de forma mais extensa em ALLISON (1992)
pp.441-445.
22. O que deve seguir-se desta
apresentação é que para examinar a crítica de Adorno a Kant, devemos retirar o
“sujeito lógico” de Kant, num registro estranho, do seu “habitat” conceitual
para colocá-lo à luz tanto de Freud quanto de Marx, através de Adorno, num
horizonte contemporâneo de critica e discussão de uma filosofia da consciência
ou do sujeito. Para isso, consultar-se WELLMER (1984)pp.334-339. Do ponto de
vista da influência marxista, pode-se consultar TERTULIAN (1984) que apresenta,
também, a relação com LUKÁCS que, aliás, é mais desenvolvida e debatida também em
MUSSE (199l) pp.8-125.
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