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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

CARTA SOBRE RECONHECIMENTO AO PROFESSOR QUE QUER COLABORAÇÃO

Caro Professor

Gostaria de lhe dar respeitosamente conhecimento da minha compreensão superficial do ponto que discutimos na ocasião da sua apresentação.

Quero fazer isso por boas razões.

A primeira é que realmente gostei do seu livro e que este me desperta o interesse de dialogar com o senhor em continuidade sobre esse e outros pontos, se assim o senhor quiser.

A segunda é que creio que o melhor diálogo filosófico é aquele que podemos fazer por escrito.

E a terceira é talvez fruto da minha exclusiva vaidade e engano, mas para mim é a importância daquilo que eu penso sobre filosofia e da sua relação com a escola à qual eu pertenço por formação e influência. Nessa terceira razão encontra-se um trabalho que eu realizei para o Professor Balthazar Barbosa Filho com o título “O medo racional em Hobbes: uma certa “leitura” da natureza humana na origem do estado” (abril de 1996) o qual, ainda que superficialmente e de um modo inacabado, toca com alguns pontos de convergência em suas lições e em outros trabalhos dos membros do departamento de filosofia.

Um bom conceito não tem obrigações determinadas por preferências. É o uso, aquilo de que o conceito é capaz, que se impõe através dele. É por isso que a categoria de reconhecimento pode substituir contemporaneamente, sem problemas e com vantagens, a categoria de dominação e, também, a categoria de colaboração - ainda que bem determinada. Pois tanto o “dominar” quanto o “colaborar” dependem para serem compreendidos, seja como violentos, seja como livres e ideais, de um reconhecimento prévio de algo. A discussão de fundo é, quero assim mostrar, não sobre palavras mas sobre conceitos com significação aproximada mas diversos nas suas formas e posições de uso.

A categoria da dominação é dada da mesma forma que qualquer outra categoria, isto é, através de um acordo nos juízos. Ora, um acordo nos juízos é provavelmente o objeto por excelência de uma forma original de reconhecimento que deve ser, para qualquer discurso, levada em conta, sob pena desse discurso não ser compreendido, nem surtir os efeitos que ele procura (Austin).

Uma humilde compreensão da dominação permite discriminar o conteúdo violento do fenômeno do seu conteúdo inteligível - desde que não se seja a vítima e se possa reconstituir o processo de uma forma suave de compreensão. Isso quer dizer, então, que toda violência, da banal à outra, tem sempre um juízo subjacente que deve ser procurado.

Este juízo indica outros juízos - mesmo que nós só encontremos neles uma aproximação, eles são indicativos das expressões que sucedem e antecedem no curso do processo. Assim, não será difícil destacar da forma primária de violência uma interpelação do juízo ou, mais ainda, uma obrigação e uma força.

A força, vai se observar, não é simplesmente dirigida aos sujeitos de submissão ou de reconhecimento simplesmente, ela é dirigida intencionalmente a certa ação ou omissão dos sujeitos.

Isso significa que é possível extrair do fenômeno processado o tipo de juízo que é dirigido pelo agente aos sujeitos com a finalidade de obter algo. Seja a obediência a uma ordem, seja o acatamento de uma restrição, seja a autoridade mesma do agente, por parte dos sujeitos através das suas posteriores ações, às quais para demonstrarem acordo nos juízos e obterem efeito precisam de reconhecimento em algum sentido pleno.

Com a categoria da colaboração ou co-participação, creio que o reconhecimento tem anterioridade, principalmente porque, concedendo que o colaborar não tem uma mera expressão no “colaboracionismo”, o colaborar é derivado de uma conjunção entre as expressões “comum” e “labor”. Sendo a primeira referida necessariamente a um juízo e podendo, inclusive, ser parafraseada com “fazer em comum com outros algo” o que faz o juízo envolver pelo menos a admissão de um outro juízo de caráter intencional em que “esse algo parece ser x” para todos é subjacente, o que, ainda assim, envolve um reconhecimento compartilhado de algo. Já a segunda expressão da conjunção envolve não somente um objeto intencional em comum no juízo de alguns, mas também uma atividade objetiva que é recíproca e feita em comum externamente. O “colaborar” é, portanto, uma categoria importante, mas a sua compreensão envolve a compreensão de uma categoria mais fundamental, a saber, a categoria de reconhecimento.

Se o senhor permitir a minha sugestão eu creio que a substituição da categoria “colaborar” por “reconhecimento” na passagem do seu texto especificada indica uma análise interessante e vantajosa do fenômeno do poder de um ponto de vista do filósofo político contemporâneo que corrobora a sua análise, pois se admitimos que:
“Temos, aqui, um processo que estabelece a transição do súdito ao cidadão, daquele que obedece pura e simplesmente para aquele que, em sua obediência, participa dos processos decisórios.” (ROSENFIELD. Lições de Filosofia Política, p.45).

Me parece ser necessária a consequencia de que esta forma de participação, para romper a mera dominação pela força, com consentimento, deve apresentar um sentido no juízo que é reconhecido como racional o que, sendo um reconhecimento livre, é um reconhecimento não mais da mera força do estado ao qual se obedece, mas sim de um juízo no qual esse cidadão pode declarar:
“O estado é a expressão do meu interesse racional e é por mim assim reconhecido.”

Como isto parece ser de consenso, tal adesão racional à regras que provavelmente tem mesmo por objeto “o poder do regramento legal justificado” (Lições, cap. 1), depende do reconhecimento e do cultivo mais elaborado das formas de reconhecimento que é dado pela educação e não da violência ou do medo da força eminente do estado.

Que a lição da razão ( eivada de realidade ) deve, ainda que distante da sua completa realização e sujeita aos acidentes da história, ser motivacional e, por isso mesmo, permitir uma boa esperança aos agentes políticos que a reconhecem.

Uma análise dessa raiz intencional parece, aliás, ser muito fértil na resolução e interpretação de fenômenos políticos de baixa ou de fina estirpe. Se não estou enganado é isto um ponto que o Prof. Brum Torres permite extrair do seu artigo “Actes Foundateurs dans le Domaine Politique”.

O “reconhecimento”, sobre o qual podemos falar em outra ocasião um pouco mais, parece envolver, no que diz respeito aos direitos humanos e no que toca às diferenças sociais duas condições de reconhecimento necessário: aos primeiros o reconhecimento de direitos comuns aos homens em modalidades jurídicas, às segundas as condições de reconhecimento e a interpretação explícita e consistente da realidade e a busca das causas das diferenças sociais, as quais, também, via boa percepção e sensibilidade social (Aristóteles) podem levar à possibilidade da sua supressão.

Aí entra, novamente, a desejada por muitos educação republicana sugerida pelo prof. João Carlos Brum Torres. O pessimismo contrário a estas idéias repousa sobre uma emergência das análises do caráter e da pessoa com certa aversão bem demonstrada à regras, a qual por hábito e interesse de legitimação é a mesma que consegue tornar as suas razões mais veiculadas que o estado.

Devo confessar, finalmente, que não tenho uma formação hegeliana para dirimir, compreender ou interpretar aqui o conceito hegeliano de “reconhecimento”, mas que, se como o senhor afirmou, trata-se do reconhecimento recíproco entre desiguais (o que é necessariamente um evento dialético), por exemplo, o senhor e o escravo, pode ser interessante, para a continuidade da análise da obediência e das suas formas, que se entenda o reconhecimento da autoridade, como uma modalidade de reconhecimento de juízos e, portanto, de interesses por parte tanto dos agentes quanto dos sujeitos políticos e, também, morais.

Dito isso, acrescento também que admitida a tal intransparencia pós-moderna (como diz Habermas em A nova Intransparência), podemos buscar ou apenas desejar superá-la pela razão. A continuidade na compreensão disso me parece ser parte da fortuna da escola à qual nós, quiçá o senhor e os outros professores deste departamento de filosofia estão destinados com certeza, na filosofia civil e política da cidade de Porto Alegre, do estado do Rio Grande do Sul e, também, do Brasil.

Atenciosamente, agradeço o estímulo dado a esta missiva um pouco ingênua pela sua obra.

Daniel Adams Boeira - UFRGS - Porto Alegre, 18/07/96

OS.: Um dia eu escrevi isto que me parece ser um profundo divisor de águas, por mais simples e singelo que pareça. Foi a objeção de um aluno a um mestre, mas abriu-se ali um verdadeiro abismo filosófico que hoje tem muito mais sentido do que tinha então. Na época recebi um comentário de quês esta pequena diferença atravessa séculos de filosofia com sua matriz na Grécia antiga justamente entre a democracia e a tirania. Justamente entre a filosofia e o dogmatismo. E lembro que só hoje consigo compreender a diferença real disto tudo. Pois a diferença conceitual (ou nominal) pode até preceder na ordem de compreensão a diferença real, mas a diferença real é aquela que realmente faz sentido na nossa história e na nossa vida. Talvez só os colegas de escola lembrem exatamente o contexto decisivo deste debate lá na Universidade em 1996. Para mim começou ali o meu divórcio intuitivo de idéias e posições.

A questão de fundo aí é: o que vem antes reconhecimento ou colaboração? E é uma questão que só faz sentido se pensarmos na genese cognitiva do poder.

São Leopoldo – 17 de setembro de 2009.

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