Eu admiro muito os dois. Creio
que muito se deve a uma fama projetada pela imprensa que transformou os dois em
notoriedades. Quando eu era jovem eles tinham uma fama absurda e sou daqueles
que viu pela tevê o enterro de Sartre abismado pela grandiosidade da sua
despedida em 1980. Já disse antes que talvez Sartre tenha sido o filósofo com
maior fama da história. Confesso que Simone quando faleceu parecia ainda estar
encoberta pela fama de Sartre. Hoje vejo isso de forma muito diversa.
O casal existencialista, porém,
conquistou a fama no pós-guerra e não dá mesmo para se esquecer disso.
Expressavam uma espécie de ideal de liberdade em muitos sentidos. Fizeram
escola e tiveram milhares de seguidores pelo mundo em diversos aspectos de suas
obras e vidas. Isso não aconteceu mesmo sem os méritos próprios de ambos. O
casal existencialista tinha um pacto ou acordo que ficou conhecido como uma
autorização a liberdade de relações livres de ambos. Para a posteridade ficou a
ideia de que eles tinham uma relação essencial e necessária e que as demais
relações eram acidentais ou contingentes. Não parece ter sido exatamente assim.
Isso gerou alguns rolos consideráveis, mas também constituiu uma família em
torno de ambos. Essa "família" era não convencional e grandiosa e
envolvia em torno deles, entre amantes e dependentes, muitos que precisavam e
que gozavam de novos laços não tradicionais para dar sentido às suas vidas e
sobreviver a um mundo pós holocausto, pós bomba atômica e que, no auge da
loucura, já ensaiava uma guerra nuclear num mundo bipolar.
Eles se posicionaram
em tantos debates públicos e controvérsias no tempo deles que davam a impressão
de não estarem dormindo para nenhuma questão. Hoje quando vemos alguns
intelectuais se posicionarem, temos a impressão que fazem isso e que logo
voltam ao fundo de suas cavernas para preservar suas imparcialidades isentonas
e que vão continuar se omitindo para as regressões terríveis que vivemos.
Parece que voltam a dormir para não se perturbarem com engajamentos ou
responsabilidades coletivas.
É interessante observar também o
paralelo estranho entre eles e a cultura americana do pós guerra. Na América,
começam a surgir movimentos culturais indesejáveis também. Logo tem o surto de
macartismo nos EUA e se inicia aquela perseguição hodienda a qualquer um que
pareça de esquerda na cultura, na política e na sociedade americana e um pouco
depois explode a geração beat (On the Road é de 1957, mas seu movimento é do
pós guerra) - que é a antecessora dos hippies, mas que naquela época com o jazz
também nos subterrâneos da sociedade - que é com os blues e o gospel o pai do
rock - tudo que é contracultura ou que expressava alguma forma de rebeldia
ainda fazia parte dos subterrâneos da América.
Sartre era razoavelmente suscetível
a impulsos e paixões. Tão suscetível aliás quanto a maior parte dos homens das
gerações posteriores a ele, ainda que não confessem ou mantenham esse aspecto
sob segredo ou sigilo, mas exercia isso com destemor e liberdade. Procurem
alguém como ele em sua geração (nasceu em 1905). Picasso ( mais velho porém)
talvez, mas quantos homens mais? Salvo alguns atores mais ousados do anos 50 e
algumas poucas atrizes, no geral esse é o império da repressão sexual e da
imposição da moralidade conservadora.
Como sabemos nos anos 60 tudo
isso vai para o espaço com as naves que tomaram a Lua e a liberação ou
revolução sexual. As apolos levam não somente o homem a lua diga-se de
passagem. Mas também o imaginário de conquista da humanidade. A vontade de
poder vai ganhar uma realização explícita. Voltando a Sartre, este tinha uma
espécie de liberdade auto-conferida de assédio e sedução e cortejou muitas
mulheres. Simone, por sua vez, era bissexual e muito assumida nisso. Não se
pode dizer que era tão polígama quanto Sartre, mas fazia pouco caso disso.
Ambos pagaram um preço por isso que só não foi tão alto, por que Jean-Paul
Sartre recebeu uma herança e logo em seguida estoura nas vendas de livros e com
um sucesso estrondoso em filosofia, literatura, teatro e até mesmo em muitos
roteiros de cinema, se sustenta tranquilamente ao ponto de dispensar um prêmio
Nobel nos anos 60.
No filme Os Amantes do Café Flore
se exibe um período importante de ambos, desde o primeiro contato deles na
École Normale Superieure (1928) até a partida de Nelson Algren (1952-53-ou 54,
tendo em vista que consta, logo após essa ruptura com Nelson, um romance e
praticamente um matrimônio com Claude Lanzmann de 1952 a 1959), descontente com
os persistentes compromissos de Simone com Sartre, apesar do amor recíproco
entre ele e Simone (as Cartas de Amor, já publicadas, se iniciam em 1947 e
prosseguem até 1964, mesmo após a ruptura do relacionamento).
Eu gostei muito mais da segunda
parte do filme quando o romance com Algren é apresentado de um modo mais
intimista e com um roteiro mais estético por assim dizer. Base desse roteiro é
o relato dela na obra Os Mandarins. Não é pouca coisa ele ter sido o homem que
proporcionou o primeiro orgasmo sexual a ela, mas mesmo assim ela manteve e
disputou a supremacia dessa relação necessária com Sartre. Aqui cabe minha
digressão sobre atração intelectual e o modo como tal tipo de vínculo tende a
ser sempre muito mais forte - para aqueles e certos intelectuais - do que o
sexo ou as relações carnais. Disputou, a partir desse momento, porém, Sartre com
todas as demais amantes e donas que ele se deixava e procurava ter. Não se tratava de uma relação carnal, mas sim altamente intelectual. Creio que a designação correta é de que eles tinham uma relação fraterna e parte dessa mitologia de casal fazia mais parte de um dispositivo de marketing de ambos que mantinha ambos sob a s luzes do movimento que representavam. Nesse sentido, devemos reconhecer com mais força ainda a contribuição à filosofia, à política e ao feminismo articulado e sustentado pelos dois.
Talvez esse tenha sido o segredo
de Sartre, ele transferia a posse machista para as mulheres e ao fazer isso
tornou nelas possível a fêmea alfa. Em todos os casos ele deixava as mulheres
terem esse sentido de posse que em Simone também pode ser observado. Pouco
importava se elas possuíam ele de fato ou não, se ele se entregava de fato ou
não. Já Simone parece o tempo todo ser a enigmática, a esfinge a ser decifrada
e mesmo com seu sucesso se manteve como a mulher silenciosa, sob sombra do
filósofo. Uma dialética estranha essa, porque não nos damos conta facilmente
das diferenças entre os dois que aparentemente se movimentam sempre juntos como
um par complementar. Mas quando se olha mais de perto se percebem diferenças
não somente de gênero, para além dessas aparências Talvez por isso transmitiam
essa imagem de um casamento perfeito ainda que não convencional.
Gosto muito das narrativas auto-biográficas
de Simone. É parte relevante da sua obra para um leitor das demais peças que
lavrou. Entre romances, peças de teatro, o Segundo Sexo, existem duas memórias
cerzidas quase a exaustão de detalhes e na perfeição dos enredos antes
escondidos nos bastidores e que são revelados. Leio nelas uma narrativa muito
franca e despida de um senso burguês de preservação da verdade aos
desconhecidos. Não há auto-censura. Ela escancara. Bota os lençóis da lua de
mel na janela da ville. Ambos eram muito despidos de censura e não davam à
mínima para a moral convencional. Por isso conviveram tranquilamente com a
poligamia de ambos e a bissexualidade de Simone. Os amigos ou amigas que
sofriam com isso se afastavam, os amantes que não suportavam isso se afastavam
ou reprovavam apenas. A maior parte deveria olhar para eles e exclamar: não há
nada a fazer. Eles querem assim e são livres para isso. As obras dela, que
comecei a ler no último período, A Força das Coisas - em dois volumes - e
Cerimonia do Adeus são notáveis para mim. O que muitos não gostam de fato é da
franqueza dela. Ela revela em detalhes tanto os riscos que correram com seus
envolvimentos quanto os mal-entendidos, os abusos e os acidentes de percurso.
Não vou listar isso aqui. Me parece muito relevante que ela tenha sido a
narradora de tudo e de todas aquelas relações do período. Em A força das
coisas, dá detalhes de diversas controvérsias de bastidores numa narrativa plena
e que me parece muito honesta. Talvez, além de suas outras obras ficcionais ou
teóricas, ter esses depoimentos nos ajuda a compreender melhor a ambos,
compreender com uma descrição biográfica, sociológica e ideológica o jogo
intelectual importante em que eles estavam envolvidos com muitos outros
personagens importantes. Os laços políticos e as diferenças são explicitadas.
Por fim, a cada dia que passa me
dou mais conta da grandeza de ambos para o seu tempo, tanto pela ousadia quanto
pelas ideias que formularam e transacionaram para o resto da humanidade. Meu
comentário mais extenso que escrevi no fim da manhã se perdeu num lapso do
smartphone, parte dele está aqui. Outra parte deixo para o tempo e a
oportunidade de comentar ou debater.
Obrigado ao Renato Janine Ribeiro
pela foto de Simone e Sartre nas Dunas de Nida e pela sua abordagem do “casal”.
Essa foto e seu contexto é narrada em A Força das Coisas e me lembra o que
significativa deve ter sido a grande travessia de ambos no deserto espiritual
do século XX.
Nos lembramos também, ao ver essa
imagem, o quanto Castor ia muito mais à frente de Sartre, o que para mim hoje
parece muito mais evidente, ao ponto de pensar que a proposta do tal acordo era
dela e não dele.
P.S.: As Dunas de Nida ficam na
Lituânia. O passeio dos dois foi em julho de 1965. A foto é de Antanas Sutkus,
fotógrafo que acompanhou os dois e tirou muitas fotos de ambos.
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