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sexta-feira, 18 de maio de 2018

DEMOCRACIA, PASSADO E FUTURO, EFEITOS RETÓRICOS E A BOA LUTA DA PALAVRA


A ideia de entrelaçar passado e futuro quando é erguida, pode aparecer como um efeito retórico de valorização do encontro em um tempo presente de potenciais e possibilidades virtuais de um futuro ainda não realizado. Mas este encontro não se realiza no relógio ou numa ampulheta. Ele se dá na palavra, nos discursos e naquelas expressões e argumentos que atingem performativamente seus objetivos. Em ideais expressos ou em cursos de ação propostos no discurso temos um efeito retórico. 

Assim se deu com a democracia, onde a liberdade, a igualdade e a dignidade passam a ser não somente valores ou ideais, mas ditames práticos e regras nas relações entre os desiguais numa sociedade que quer superar o passado e lançar-se ao futuro, abrindo novas possibilidades para todos.

O ato de fala fundacional desse processo constrói um novo tempo em que o passado e o futuro se encontram virando uma página da história. Torna fato ou lei, a expressão de um ideal ou de uma proposta de ação que é levada a cabo motivadamente, conscientemente ou não. Nesses momentos, nem sempre se realiza plenamente o que é expresso, mas se inicia ali algo que leva naquela direção proposta, antes inédita ou somente vislumbrada. Por isso, é preciso atualizar essas possibilidades.

Alguém poderia objetar que isso é só um elemento retórico ou o suporte da dominação modernizada. 

Em parte sim, pode ser só um efeito retórico, mas a medida da retórica na história não pode ser subestimada por que muitos fatos históricos e de dimensão superior tiveram como fagulha inicial apenas algumas palavras, alguns discursos e argumentos postos no centro das relações políticas e sociais humanas. Em muitos casos, eram reapresentações de velhas palavras em um contexto mais favorável. Em outros, elas chegavam na hora certa, em meio de argumentos já reconhecidos e coroavam um ato de fala em que os efeitos pareciam estar prenhes na consciência da audiência de uma assembleia.   

Vejo Clístenes – como narra Vernant e muitos outros - erguendo mais uma vez na sua voz a ideia de igualdade, que já tinha sido esboçada por Solon, mas dessa vez consolidando na assembleia um novo valor que se transforma em modelo de todas as democracias posteriores. Ele defendeu que o princípio da igualdade é direito de todos, e que a participação ativa de todos os cidadãos na vida pública deve ser favorecida. Para aqueles que consideram isso idealismo, que nada de prático resultou desse idealismo posto em palavras e na lei, é bom  lembrar que foi a partir disso que Atenas passou a se transformar na maior potência econômica grega.

Vejo ainda e também, o Abade Syeies declarando na Assembléia que os Estados Gerais estão reunidos e deflagrando a verdadeira revolução que não consiste apenas na tomada da bastilha, mas sim na abertura das deliberações contra a monarquia decadente. Mas também vejo atos de fala em que simplesmente uma sentença declarativa é expressa mais uma vez e nesta oportunidade causa mais efeitos do que quando foi expressa em outras tentativas de causar os mesmos efeitos. Isso vale, também, creio eu para outros ensaios.

Poderíamos listar aqui muitos outros, nessa senda de construção histórica sob um mesmo espírito. Quantos dos leitores atuais deles, já não ouviram odes que não surtiram os efeitos desejados? No atual caso e talvez em muitos outros exemplos para os quais devemos estar abertos e atentos, procura-se ressignificar ou revalorizar a palavra e o sentido da proposição de tal modo que seus efeitos sejam benfazejos e renovados. Ser capaz de acolher de novo a palavra pode nos libertar do bloqueio histórico em que vivemos. O ato retórico pode ser o invólucro de intenções, mas também pode ser a revelação e a expressão de uma consciência que deixa de ser individual e passa a ser compartilhada e querida, desejada ou estimada por mais pessoas do que o seu autor. 

Hannah Arendt problematizou este tema da ruptura ou do reencontro com o passado por um presente que ainda se quer manifesto, mas não realizado, por que ainda não tem ou não possui o estatuto completo de sua realização, mas que procura alcançar persistentemente este efeito que deixa, então, de ser apenas retórico e produz a mudança. No mundo atual ocorre uma desvalorização da palavra e do discurso, mas isso é um grande erro, pois é através delas que a história e a roda do mundo podem girar na direção do futuro e não retrocedendo 20 anos em 2.

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