A ideia de entrelaçar passado e
futuro quando é erguida, pode aparecer como um efeito retórico de valorização
do encontro em um tempo presente de potenciais e possibilidades virtuais de um
futuro ainda não realizado. Mas este encontro não se realiza no relógio ou numa
ampulheta. Ele se dá na palavra, nos discursos e naquelas expressões e
argumentos que atingem performativamente seus objetivos. Em ideais expressos ou
em cursos de ação propostos no discurso temos um efeito retórico.
Assim se deu
com a democracia, onde a liberdade, a igualdade e a dignidade passam a ser não
somente valores ou ideais, mas ditames práticos e regras nas relações entre os
desiguais numa sociedade que quer superar o passado e lançar-se ao futuro, abrindo
novas possibilidades para todos.
O ato de fala fundacional desse
processo constrói um novo tempo em que o passado e o futuro se encontram
virando uma página da história. Torna fato ou lei, a expressão de um ideal ou
de uma proposta de ação que é levada a cabo motivadamente, conscientemente ou
não. Nesses momentos, nem sempre se realiza plenamente o que é expresso, mas se
inicia ali algo que leva naquela direção proposta, antes inédita ou somente
vislumbrada. Por isso, é preciso atualizar essas possibilidades.
Alguém poderia objetar que isso é
só um elemento retórico ou o suporte da dominação modernizada.
Em parte sim,
pode ser só um efeito retórico, mas a medida da retórica na história não pode
ser subestimada por que muitos fatos históricos e de dimensão superior tiveram
como fagulha inicial apenas algumas palavras, alguns discursos e argumentos postos
no centro das relações políticas e sociais humanas. Em muitos casos, eram reapresentações
de velhas palavras em um contexto mais favorável. Em outros, elas chegavam na
hora certa, em meio de argumentos já reconhecidos e coroavam um ato de fala em
que os efeitos pareciam estar prenhes na consciência da audiência de uma assembleia.
Vejo Clístenes – como narra
Vernant e muitos outros - erguendo mais uma vez na sua voz a ideia de igualdade,
que já tinha sido esboçada por Solon, mas dessa vez consolidando na assembleia um
novo valor que se transforma em modelo de todas as democracias posteriores. Ele
defendeu que o princípio da igualdade é direito de todos, e que a participação
ativa de todos os cidadãos na vida pública deve ser favorecida. Para aqueles
que consideram isso idealismo, que nada de prático resultou desse idealismo
posto em palavras e na lei, é bom
lembrar que foi a partir disso que Atenas passou a se transformar na
maior potência econômica grega.
Vejo ainda e também, o Abade Syeies
declarando na Assembléia que os Estados Gerais estão reunidos e deflagrando a
verdadeira revolução que não consiste apenas na tomada da bastilha, mas sim na
abertura das deliberações contra a monarquia decadente. Mas também vejo atos de
fala em que simplesmente uma sentença declarativa é expressa mais uma vez e
nesta oportunidade causa mais efeitos do que quando foi expressa em outras tentativas
de causar os mesmos efeitos. Isso vale, também, creio eu para outros ensaios.
Poderíamos listar aqui muitos
outros, nessa senda de construção histórica sob um mesmo espírito. Quantos dos
leitores atuais deles, já não ouviram odes que não surtiram os efeitos
desejados? No atual caso e talvez em muitos outros exemplos para os quais
devemos estar abertos e atentos, procura-se ressignificar ou revalorizar a
palavra e o sentido da proposição de tal modo que seus efeitos sejam benfazejos
e renovados. Ser capaz de acolher de novo a palavra pode nos libertar do
bloqueio histórico em que vivemos. O ato retórico pode ser o invólucro de
intenções, mas também pode ser a revelação e a expressão de uma consciência que
deixa de ser individual e passa a ser compartilhada e querida, desejada ou estimada
por mais pessoas do que o seu autor.
Hannah Arendt problematizou este
tema da ruptura ou do reencontro com o passado por um presente que ainda se
quer manifesto, mas não realizado, por que ainda não tem ou não possui o
estatuto completo de sua realização, mas que procura alcançar persistentemente este
efeito que deixa, então, de ser apenas retórico e produz a mudança. No mundo
atual ocorre uma desvalorização da palavra e do discurso, mas isso é um grande
erro, pois é através delas que a história e a roda do mundo podem girar na
direção do futuro e não retrocedendo 20 anos em 2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário