Por que eu gosto de Simone de
Beauvoir? – Uma provocação bem recebida a que vou tentar responder aqui dando
um passo à frente.
Você quer saber mesmo? – Preciso perguntar
isso para tentar compreender se esta provocação tem importância e relevância
real e efetiva para você.
Pois bem, eu gosto muito de ler
os textos autobiográficos dela. Mas também comecei a gostar dos seus romances. É
interessante que não estou falando aqui de seus ensaios ou do clássico
feminista dela, O Segundo Sexo, mas é assim que tem sido comigo. Ela é uma boa
memorialista e para a história do existencialismo ou do grupo que circulou em
torno de Sartre, ela é uma excelente fonte. Gosto da precisão e do modo como
ela narra tanto os episódios de sua vida, quanto as suas descrições do
comportamento dos seus contemporâneos. Ela poderia ser caracterizada como
piedosa nessas descrições dos demais e impiedosa em relação a si mesmo. O metro
que ela usa para si mesmo é diferente do metro para com os demais.
Não sou especialista em literatura,
mas por causa dela e de Virginia Woolf tenho dado muito mais atenção às
escritoras do século XX. Creio que o estilo literário dominante nos seus textos
autobiográficos, quanto em seus romances que misturam muito o elemento da ficção
com elementos biográficos, ultrapassa a fronteira da moral tradicional ou
convencional. Às vezes a ficção fica melhor e em outras vezes as biografias são
melhores. Estou lendo, já faz algum tempo, com vagar e reflexão, o texto dela
que me dá o repto dessa resposta, A Força das Coisas, me faz ter todas essas
notas aqui. Nessa obra, ela mesma faz a crítica de suas ficções e conta algo
mais sobre suas ambivalências em relação às suas obras, tanto as peças de
teatro quanto aos seus romances, e gostei muito do que ela faz. Uma
característica que fica ressaltada nela é que escreve suas obras meio que como
uma resposta ao seu tempo, uma resposta às ideias e obras de outros e ela mesma
relativiza e faz a crítica de suas próprias obras. O que eu gostei foi da
lucidez e da clareza com que ela explícita suas razões e ideias que nem sempre
parecem ficar claras em suas ficções. Semana passada quando li uma certa crítica
ao Murakami também fiquei pensando
nisso. A diferença está entre saber ou vislumbrar as intenções dos autores ou
buscar traços de gênio e de alta inspiração. Porém esse estilo corre o risco de
parecer raso e uma narrativa mais trivial. É isso que talvez aborreça alguns
críticos, a semelhança dela ao estilo memorialista.
O ponto favorável, porém, parece
ser bem esse: ter certo grau de informação sobre contexto de produção literária
e compreensão das intenções da autora. Simone é uma testemunha altamente
reflexiva da história e dos fatos do seu tempo. Mas confesso minha
insuficiência para avançar muito nesse debate. Em parte, porque não li toda sua
obra e de outra parte porque também não li e não tenho domínio do contexto todo
e das obras e personagens que são suas contemporâneas e às quais ela faz referências
constantes. Nesse sentido, a leitura dela poderia parecer algo para os
especialistas no período e nas escolas literárias do entre guerras e pós guerra
na França. Fico imaginando o que resta para nós no Brasil que possuímos temos
uma boa tradição memorialista – ao meu ver – mas temos raros escritores que tentam
fazer este esforço de relacionar a filosofia, a literatura e as autobiografias
de seu tempo. Nesse sentido, sinto certo prazer com Simone, pois ela me dá
aquilo que eu não conseguiria juntar sozinho de seu tempo, obras e autores.
Eu gosto dela, portanto, por
diversos motivos bem curiosos. Gosto das ideias dela e da forma como ela as
apresenta com uma certa clareza e finesse, mas sempre indo direto no ponto. Eu
não diria que ela é menos filósofa que Sartre, nem menos importante. da mesma
forma que quando leio Hannah Arendt, não vejo nela um filósofa menor que
Heidegger, ainda que para mim Heidegger seja um verdadeiro gigante ou, como diz
Paulo Faria, Heidegger “parece o cara que leu tudo”. No caso dela, porém,
podemos estar enganados em muitos sentidos, mas isso não ocorre justamente
porque ela é menor, mas sim devido a sua grandeza e excepcionalidade - com
todos os riscos que toda forma de grandeza acarreta. Entre estes riscos, o fato
de que aumentam as possibilidades de interpretação, deformação e incompreensão.
Penso também nesta condição feminina na filosofia: o fato de que as filósofas
tem essa extrema ocultação de suas obras por, aparentemente, tratarem de
questões laterais ou de fronteira na filosofia. Uma coisa que parece colocar
sempre a mulher ou o feminino na lateral dos combates. Não sei se uma figura ou
metáfora cai bem aqui. Penso que não. mas me vem a calhar uma certa semelhança
com o que ocorre com a guerra, a meia guerra só é vivida nas laterais da
história. A verdadeira guerra ocorre dentro de nós mesmos, em especial daqueles
que não estão nas cadeiras do estado maior contemplando o teatro de operações.
E a consciência disso às vezes nos suaviza e às vezes nos enfurece. Nenhuma
filosofia sobrevive ao engano ou ao sonho. No entanto o pensamento de Simone me
parece vivo, presente, ativo, bem acordado por assim dizer.
Posso estar enganado, mas creio
que deveríamos olhar com mais atenção para estes fenômenos das mulheres na
filosofia do século XX. Na maior latitude possível. O que inclui aqui Rosa de
Luxemburgo, Simone Weil, Susan Sontag e também algumas que ficam nas áreas de
fronteira entre a literatura e a filosofia, a história, a antropologia e mesmo
em ciências exatas e biológicas.
Afinal, são sim obras do
pensamento de um tempo, reúnem testemunhos, ideias e também novas formas e
concepções de se encarar a vida. Algumas hoje podem parecer triviais, mas no
seu tempo não o foram. Simone de Beauvoir foi capaz de narrar com lucidez as
suas vivências e o seu tempo e percebe-se nela claramente a relação entre o
curso do pensamento e o curso da vida.
Obs.: Na imagem, a obra de Simone
de Beauvoir, A Força das Coisas, primeiro volume com o marcador de página que
recebi de lembrança direto da China de minha amiga APS.
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