Powered By Blogger

domingo, 2 de setembro de 2018

SIMONE DE BEAUVOIR – MEMÓRIAS


Por que eu gosto de Simone de Beauvoir? – Uma provocação bem recebida a que vou tentar responder aqui dando um passo à frente.

Você quer saber mesmo? – Preciso perguntar isso para tentar compreender se esta provocação tem importância e relevância real e efetiva para você.

Pois bem, eu gosto muito de ler os textos autobiográficos dela. Mas também comecei a gostar dos seus romances. É interessante que não estou falando aqui de seus ensaios ou do clássico feminista dela, O Segundo Sexo, mas é assim que tem sido comigo. Ela é uma boa memorialista e para a história do existencialismo ou do grupo que circulou em torno de Sartre, ela é uma excelente fonte. Gosto da precisão e do modo como ela narra tanto os episódios de sua vida, quanto as suas descrições do comportamento dos seus contemporâneos. Ela poderia ser caracterizada como piedosa nessas descrições dos demais e impiedosa em relação a si mesmo. O metro que ela usa para si mesmo é diferente do metro para com os demais.

Não sou especialista em literatura, mas por causa dela e de Virginia Woolf tenho dado muito mais atenção às escritoras do século XX. Creio que o estilo literário dominante nos seus textos autobiográficos, quanto em seus romances que misturam muito o elemento da ficção com elementos biográficos, ultrapassa a fronteira da moral tradicional ou convencional. Às vezes a ficção fica melhor e em outras vezes as biografias são melhores. Estou lendo, já faz algum tempo, com vagar e reflexão, o texto dela que me dá o repto dessa resposta, A Força das Coisas, me faz ter todas essas notas aqui. Nessa obra, ela mesma faz a crítica de suas ficções e conta algo mais sobre suas ambivalências em relação às suas obras, tanto as peças de teatro quanto aos seus romances, e gostei muito do que ela faz. Uma característica que fica ressaltada nela é que escreve suas obras meio que como uma resposta ao seu tempo, uma resposta às ideias e obras de outros e ela mesma relativiza e faz a crítica de suas próprias obras. O que eu gostei foi da lucidez e da clareza com que ela explícita suas razões e ideias que nem sempre parecem ficar claras em suas ficções. Semana passada quando li uma certa crítica  ao Murakami também fiquei pensando nisso. A diferença está entre saber ou vislumbrar as intenções dos autores ou buscar traços de gênio e de alta inspiração. Porém esse estilo corre o risco de parecer raso e uma narrativa mais trivial. É isso que talvez aborreça alguns críticos, a semelhança dela ao estilo memorialista.

O ponto favorável, porém, parece ser bem esse: ter certo grau de informação sobre contexto de produção literária e compreensão das intenções da autora. Simone é uma testemunha altamente reflexiva da história e dos fatos do seu tempo. Mas confesso minha insuficiência para avançar muito nesse debate. Em parte, porque não li toda sua obra e de outra parte porque também não li e não tenho domínio do contexto todo e das obras e personagens que são suas contemporâneas e às quais ela faz referências constantes. Nesse sentido, a leitura dela poderia parecer algo para os especialistas no período e nas escolas literárias do entre guerras e pós guerra na França. Fico imaginando o que resta para nós no Brasil que possuímos temos uma boa tradição memorialista – ao meu ver – mas temos raros escritores que tentam fazer este esforço de relacionar a filosofia, a literatura e as autobiografias de seu tempo. Nesse sentido, sinto certo prazer com Simone, pois ela me dá aquilo que eu não conseguiria juntar sozinho de seu tempo, obras e autores.

Eu gosto dela, portanto, por diversos motivos bem curiosos. Gosto das ideias dela e da forma como ela as apresenta com uma certa clareza e finesse, mas sempre indo direto no ponto. Eu não diria que ela é menos filósofa que Sartre, nem menos importante. da mesma forma que quando leio Hannah Arendt, não vejo nela um filósofa menor que Heidegger, ainda que para mim Heidegger seja um verdadeiro gigante ou, como diz Paulo Faria, Heidegger “parece o cara que leu tudo”. No caso dela, porém, podemos estar enganados em muitos sentidos, mas isso não ocorre justamente porque ela é menor, mas sim devido a sua grandeza e excepcionalidade   - com todos os riscos que toda forma de grandeza acarreta. Entre estes riscos, o fato de que aumentam as possibilidades de interpretação, deformação e incompreensão. Penso também nesta condição feminina na filosofia: o fato de que as filósofas tem essa extrema ocultação de suas obras por, aparentemente, tratarem de questões laterais ou de fronteira na filosofia. Uma coisa que parece colocar sempre a mulher ou o feminino na lateral dos combates. Não sei se uma figura ou metáfora cai bem aqui. Penso que não. mas me vem a calhar uma certa semelhança com o que ocorre com a guerra, a meia guerra só é vivida nas laterais da história. A verdadeira guerra ocorre dentro de nós mesmos, em especial daqueles que não estão nas cadeiras do estado maior contemplando o teatro de operações. E a consciência disso às vezes nos suaviza e às vezes nos enfurece. Nenhuma filosofia sobrevive ao engano ou ao sonho. No entanto o pensamento de Simone me parece vivo, presente, ativo, bem acordado por assim dizer.

Posso estar enganado, mas creio que deveríamos olhar com mais atenção para estes fenômenos das mulheres na filosofia do século XX. Na maior latitude possível. O que inclui aqui Rosa de Luxemburgo, Simone Weil, Susan Sontag e também algumas que ficam nas áreas de fronteira entre a literatura e a filosofia, a história, a antropologia e mesmo em ciências exatas e biológicas.

Afinal, são sim obras do pensamento de um tempo, reúnem testemunhos, ideias e também novas formas e concepções de se encarar a vida. Algumas hoje podem parecer triviais, mas no seu tempo não o foram. Simone de Beauvoir foi capaz de narrar com lucidez as suas vivências e o seu tempo e percebe-se nela claramente a relação entre o curso do pensamento e o curso da vida.



Obs.: Na imagem, a obra de Simone de Beauvoir, A Força das Coisas, primeiro volume com o marcador de página que recebi de lembrança direto da China de minha amiga APS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário