“Não tente viver para sempre... você não vai conseguir.”
Georg Bernard Shaw*
Não vamos vencer a morte, nem a medicina irá fazê-lo. Ela
pode ser atenuada, retardada, mas também é imprevisível e vai continuar assim.
Shaw diz ai que você não vai conseguir viver para sempre. Então, a questão é
como você encara isso, quando não há mais tempo para desviar desse assunto e
quando você parece precisar responder de alguma forma pensando sobre isso um
pouco mais?
Você e eu temos uma relação com ela com certeza. Isso é
comum para nós todos, mas incomum quando ocorre porque é muito único quando
ocorre. Ocorre uma vez só e vai ser de um modo determinado. Determinado por
força maior ou aleatoriamente. Por mais que se expliquem suas causas, ela
sempre tem um quê de incerteza. Foi assim, mas poderia ter sido de outra
maneira. Se fosse diferente, que diferença de fato faria? Nenhuma, só no
detalhe ou na causa, pois o resultado ou o fim seria igual.
Temos um lance com essa senhora. Um encontro marcado que não
tem data na nossa agenda. A senhora morte age a nossa revelia de certa forma.
Apesar de ser num determinado momento muito nossa, completamente própria da
gente. Ela deve passar pela gente e dizer hoje não, quem sabe agora, quem sabe
depois, deve desistir, mas está ali próxima, quase ao lado. Talvez a gente
drible ela como aquele personagem do Ingmar com algumas perguntas ou movimentos
certos e precisos no tabuleiro da vida.
Para alguns ela chega de surpresa, abruptamente,
repentinamente, para outros parece que tem que ficar esperando, em alguns casos
sofrendo e em outros vivendo razoavelmente bem. Outros ainda sofrem quedas e
são confrontados por ela através de doenças ou acidentes.
Enfim, você conclui que não sabes a tua hora, nem sabes o
teu destino. Tem o fator surpresa e a incerteza. Por mais que fique planejando
e construindo o amanhã, construindo a semana que vêm, o mês que vêm, o ano que
vêm e alguns anos da vida, até que ela acabe aparecendo por aí. Quando não
acaba, alguns planos não dão certo e você precisa se readaptar, reacomodar,
fazer mudanças e faz elas. É uma decisão essa de fazer o que é preciso
Quase todos fazem planos, mas alguns não. É interessante
isso. Alguns fazem planos e conseguem realizar eles e outros não. Isso não
ocorre porque alguns são melhores e os outros não. Ocorre porque alguns colocam
para si esse desafio, fazem escolhas, deliberam e decidem e vão fazendo alguma
coisa de acordo com isso. É um erro, ao meu ver, pensar assim que estes são
melhores que aqueles. Os planos dependem e às vezes independem dos teus
esforços. Pode dar tudo errado, pode ser a sorte, a fortuna ou algum predicado
que habilita melhor ao sucesso ou a sobrevivência naquele momento, naquele
lugar e naquelas relações com o mundo e as coisas. É bom lembrar que, para algumas pessoas, a
sobrevivência é um grande sucesso. A
sobrevivência para essas pessoas é um sucesso dentro do impossível.
Não sabes nada sobre tua própria sorte, tuas graças e bônus,
mas podes colecionar algumas chances a mais. Pode prestar mais atenção aos
sinais e tentar tatear no escuro o interruptor que vai iluminar teu quarto e a
tua casa, tua sala e tua vida. Podes te
cuidar. Se movimentar com delicadeza e prevenção. Podes prestar mais atenção ao
teu mundo e às tuas relações. Ver o lugar das coisas e das pessoas e estar
preparado para mudanças na disposição delas e na tua também.
Conheço pessoas que diriam que não adianta nada planejar ou
ter boa vontade. Porém, me parece, que pode se sofrer menos assim. Parece que
sim, que o caráter e a natureza da tua
intencionalidade ajuda. Não resolve teus problemas todos e não munda a
disposição das coisas, mas muda tua intenção e tua forma de compreender esse
grande jogo do mundo e os pequenos jogos das pessoas que correm apesar de tua
vontade ou teu desejo. Estamos todos tentando sofrer menos. Ainda que alguns
façam de tudo para contradizer isso promovendo seu próprio sofrimento e de
outros seres humanos.
Na nossa vida isso, esse sentimento do encontro com a morte,
pode demorar um pouco para nos pegar de frente, nos pegar de jeito. Às vezes
passamos uma vida inteira - ou melhor, boa parte dela - sem sentir isto, até
que...a miudinha chega e começa a corroer as bases da tua existência. Pode começar contigo e pode começar com outras pessoas. Como o cupim que pode roer uma cadeira inteira e não chegar na
mesa, mas pode roer a mesa e a cadeira juntas. Aquele relógio de areia do tempo
te dá a sensação de ter feito a última virada. Você fica então pensando em
quanta areia tem e se ela vai escorrer muito rápida para o bojo inferior ou se
será mais lenta.
Os sinais são dados no teu corpo e na existência de teus
familiares e amigos próximos e você vai aprendendo algo sobre isso. As pessoas
começam a desaparecer à tua volta. Você pode se desesperar com isso. Vai
descobrindo a finitude e o desparecimento pelos outros e sente a aproximação da
morte. Você sempre soube que ela existia, pelo menos desde o primeiro enterro
de familiar do qual tem lembrança. Ou aquela noticia no jornal. Mas sempre
achava que seria depois. A invisibilidade da morte na existência da gente é uma
dádiva, mas isso não faz ela deixar de existir como uma experiência que virá.
Entretanto, devemos reconhecer que essa invisibilidade é um bom presente para
nossa vida ser melhor aproveitada e considerada. Não saber quando e nem o que
virá depois, pode nos fazer levar melhor a vida até esse dia fatídico.
A vida terá um fim, chamamos este fim de morte e tentamos
sempre pensar que não é com a gente, mas é. Esta dama vai te visitar um dia. E
nesse dia você não vai conseguir mandar ela embora. Ela somente será retardada,
poderá perder o ônibus ao ir te visitar, poderá esquecer teu endereço e mesmo
ficar um bom tempo vendo como você tem se ocupado nesta vida. Talvez ela fique
como os anjos de Wenders admirando teu esforço e tua paixão, teus enganos e
erros e te dando chances a mais.
Podes pensar à vontade em teus planos, sonhos, desejos,
filhos, mas você não vai conseguir mesmo viver para sempre, então relaxa, te
acalma e vai vivendo. Você é livre para escolher, assim, entre estas duas
opções de pensar. Aquela temerária e trágica e a que se alegra com cada dia que
nasce. Pode parecer pouca coisa, mas é mais e talvez tenha um gosto da presença
– de um sempre de curta duração – do que ainda é. Se você descobre e entende
que não vai conseguir vencer a morte, talvez comece a ver que a vida já é uma
grande vitória, não só pelos planos que deram certo, mesmo com os que deram
errado, com os desvios e acidentes, se sobrevive parcamente ou vive plenamente,
está ai no mundo ainda. Então aproveita isso, tente tirar o melhor de si e dar
o melhor de si nesse tempo que te resta. O tamanho da nossa vida não é medido
pelos anos que vivemos, mas sim pela forma que vivemos. Isso você pode
conseguir.
* Prefácio de Georg Bernard Shaw em O Dilema do Médico
(1906). Citado por Freud em correspondência (in: GAY, Peter. FREUD: Uma vida
para o nosso tempo. 2a. ed. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras,
2012. p. 426). Estava aqui pensando em Moacir Scliar, liberdade, política e na
vida.
P.S.: Reescrito, revisado e estendido. Sobre um original de
novembro de 2014. Nada melhor que um
trânsito de Plutão sobre o Sol para tratar disso. E numa novembrada típica do
escorpião que há em todos nós. Os experts nesse tipo de mistificação e
credulidade, a despeito de terem mais conhecimento do que eu no assunto, me
entenderão. Para os demais vou só apontar que é uma semântica e uma sintaxe
simbólica que também pode ser vista como uma metáfora ou espelho das nossas
vidas. E pode ser um recurso literário também.
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