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quarta-feira, 20 de março de 2019

SOBRE O TAMANHO DA NOSSA VIDA


“Não tente viver para sempre... você não vai conseguir.”

Georg Bernard Shaw*

Não vamos vencer a morte, nem a medicina irá fazê-lo. Ela pode ser atenuada, retardada, mas também é imprevisível e vai continuar assim. Shaw diz ai que você não vai conseguir viver para sempre. Então, a questão é como você encara isso, quando não há mais tempo para desviar desse assunto e quando você parece precisar responder de alguma forma pensando sobre isso um pouco mais?

Você e eu temos uma relação com ela com certeza. Isso é comum para nós todos, mas incomum quando ocorre porque é muito único quando ocorre. Ocorre uma vez só e vai ser de um modo determinado. Determinado por força maior ou aleatoriamente. Por mais que se expliquem suas causas, ela sempre tem um quê de incerteza. Foi assim, mas poderia ter sido de outra maneira. Se fosse diferente, que diferença de fato faria? Nenhuma, só no detalhe ou na causa, pois o resultado ou o fim seria igual.

Temos um lance com essa senhora. Um encontro marcado que não tem data na nossa agenda. A senhora morte age a nossa revelia de certa forma. Apesar de ser num determinado momento muito nossa, completamente própria da gente. Ela deve passar pela gente e dizer hoje não, quem sabe agora, quem sabe depois, deve desistir, mas está ali próxima, quase ao lado. Talvez a gente drible ela como aquele personagem do Ingmar com algumas perguntas ou movimentos certos e precisos no tabuleiro da vida.
Para alguns ela chega de surpresa, abruptamente, repentinamente, para outros parece que tem que ficar esperando, em alguns casos sofrendo e em outros vivendo razoavelmente bem. Outros ainda sofrem quedas e são confrontados por ela através de doenças ou acidentes.

Enfim, você conclui que não sabes a tua hora, nem sabes o teu destino. Tem o fator surpresa e a incerteza. Por mais que fique planejando e construindo o amanhã, construindo a semana que vêm, o mês que vêm, o ano que vêm e alguns anos da vida, até que ela acabe aparecendo por aí. Quando não acaba, alguns planos não dão certo e você precisa se readaptar, reacomodar, fazer mudanças e faz elas. É uma decisão essa de fazer o que é preciso  
Quase todos fazem planos, mas alguns não. É interessante isso. Alguns fazem planos e conseguem realizar eles e outros não. Isso não ocorre porque alguns são melhores e os outros não. Ocorre porque alguns colocam para si esse desafio, fazem escolhas, deliberam e decidem e vão fazendo alguma coisa de acordo com isso. É um erro, ao meu ver, pensar assim que estes são melhores que aqueles. Os planos dependem e às vezes independem dos teus esforços. Pode dar tudo errado, pode ser a sorte, a fortuna ou algum predicado que habilita melhor ao sucesso ou a sobrevivência naquele momento, naquele lugar e naquelas relações com o mundo e as coisas. É bom  lembrar que, para algumas pessoas, a sobrevivência  é um grande sucesso. A sobrevivência para essas pessoas é um sucesso dentro do impossível.

Não sabes nada sobre tua própria sorte, tuas graças e bônus, mas podes colecionar algumas chances a mais. Pode prestar mais atenção aos sinais e tentar tatear no escuro o interruptor que vai iluminar teu quarto e a tua casa, tua sala e tua vida.  Podes te cuidar. Se movimentar com delicadeza e prevenção. Podes prestar mais atenção ao teu mundo e às tuas relações. Ver o lugar das coisas e das pessoas e estar preparado para mudanças na disposição delas e na tua também.

Conheço pessoas que diriam que não adianta nada planejar ou ter boa vontade. Porém, me parece, que pode se sofrer menos assim. Parece que sim, que o caráter  e a natureza da tua intencionalidade ajuda. Não resolve teus problemas todos e não munda a disposição das coisas, mas muda tua intenção e tua forma de compreender esse grande jogo do mundo e os pequenos jogos das pessoas que correm apesar de tua vontade ou teu desejo. Estamos todos tentando sofrer menos. Ainda que alguns façam de tudo para contradizer isso promovendo seu próprio sofrimento e de outros seres humanos.

Na nossa vida isso, esse sentimento do encontro com a morte, pode demorar um pouco para nos pegar de frente, nos pegar de jeito. Às vezes passamos uma vida inteira - ou melhor, boa parte dela - sem sentir isto, até que...a miudinha chega e começa a corroer as bases da tua existência.  Pode começar contigo e pode começar com  outras pessoas. Como o cupim que pode  roer uma cadeira inteira e não chegar na mesa, mas pode roer a mesa e a cadeira juntas. Aquele relógio de areia do tempo te dá a sensação de ter feito a última virada. Você fica então pensando em quanta areia tem e se ela vai escorrer muito rápida para o bojo inferior ou se será mais lenta.

Os sinais são dados no teu corpo e na existência de teus familiares e amigos próximos e você vai aprendendo algo sobre isso. As pessoas começam a desaparecer à tua volta. Você pode se desesperar com isso. Vai descobrindo a finitude e o desparecimento pelos outros e sente a aproximação da morte. Você sempre soube que ela existia, pelo menos desde o primeiro enterro de familiar do qual tem lembrança. Ou aquela noticia no jornal. Mas sempre achava que seria depois. A invisibilidade da morte na existência da gente é uma dádiva, mas isso não faz ela deixar de existir como uma experiência que virá. Entretanto, devemos reconhecer que essa invisibilidade é um bom presente para nossa vida ser melhor aproveitada e considerada. Não saber quando e nem o que virá depois, pode nos fazer levar melhor a vida até esse dia fatídico.  

A vida terá um fim, chamamos este fim de morte e tentamos sempre pensar que não é com a gente, mas é. Esta dama vai te visitar um dia. E nesse dia você não vai conseguir mandar ela embora. Ela somente será retardada, poderá perder o ônibus ao ir te visitar, poderá esquecer teu endereço e mesmo ficar um bom tempo vendo como você tem se ocupado nesta vida. Talvez ela fique como os anjos de Wenders admirando teu esforço e tua paixão, teus enganos e erros e te dando chances a mais.

Podes pensar à vontade em teus planos, sonhos, desejos, filhos, mas você não vai conseguir mesmo viver para sempre, então relaxa, te acalma e vai vivendo. Você é livre para escolher, assim, entre estas duas opções de pensar. Aquela temerária e trágica e a que se alegra com cada dia que nasce. Pode parecer pouca coisa, mas é mais e talvez tenha um gosto da presença – de um sempre de curta duração – do que ainda é. Se você descobre e entende que não vai conseguir vencer a morte, talvez comece a ver que a vida já é uma grande vitória, não só pelos planos que deram certo, mesmo com os que deram errado, com os desvios e acidentes, se sobrevive parcamente ou vive plenamente, está ai no mundo ainda. Então aproveita isso, tente tirar o melhor de si e dar o melhor de si nesse tempo que te resta. O tamanho da nossa vida não é medido pelos anos que vivemos, mas sim pela forma que vivemos. Isso você pode conseguir.

* Prefácio de Georg Bernard Shaw em O Dilema do Médico (1906). Citado por Freud em correspondência (in: GAY, Peter. FREUD: Uma vida para o nosso tempo. 2a. ed. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 426). Estava aqui pensando em Moacir Scliar, liberdade, política e na vida.

P.S.: Reescrito, revisado e estendido. Sobre um original de novembro de 2014.  Nada melhor que um trânsito de Plutão sobre o Sol para tratar disso. E numa novembrada típica do escorpião que há em todos nós. Os experts nesse tipo de mistificação e credulidade, a despeito de terem mais conhecimento do que eu no assunto, me entenderão. Para os demais vou só apontar que é uma semântica e uma sintaxe simbólica que também pode ser vista como uma metáfora ou espelho das nossas vidas. E pode ser um recurso literário também.

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