O
INDIVÍDUO AUTOSSUFICIENTE E AS ILUSÕES SERVIS
A
modernidade é marcada pela afirmação do individualismo. Muitos filósofos
plantaram nesse campo ideias de autonomia, independência, autodeterminação e
autossuficiência. Seria desonesto intelectualmente dizer que é tudo a mesma
coisa. As distinções entre esses termos e conceitos perante a nossa existência
são razoavelmente reconhecidas semanticamente ou conceitualmente e também no
jogo de linguagem da nossa vida comum. Ainda que possamos nos atrapalhar com
elas.
Basta se deter um pouco para perceber as diferenças reais e o status de
cada um desses conceitos nas nossas vidas ou quando são atribuídos a nós
mesmos. Isso, entretanto, por mais claro que possa ser visto, não escapa ao
espírito geral do individualismo moderno.
A
razão disso não é intelectual, isto é, não é por conta de falta de reflexão que
esses conceitos ficam embaralhados e parecem estar entrelaçados na cabeça do
indivíduo. O que ocorre de fato, ao meu ver, é que o laço que une esses
conceitos na cabeça do individuo envolve duas questões aparentemente
dissociadas, mas que tem relações fundamentais com esse projeto de homem ou
mulher modernos. Um dos temas envolve a liberdade e correlatamente a liberdade
de escolha.
O outro tema envolve a construção de um projeto de vida e a
liberdade de poder fazer essa escolha de projeto com mais ou menos
independência do meio, das suas relações e daquilo que, inclusive, contra a
nossa vontade e desejo, o destino e a história nos impõem.
A
ideia de liberdade e de projeto individual envolve uma opção pela escolha
solitária de um destino e de uma vida. Mas tem um dia em que você descobre que
não faz mais mesmo certas coisas sozinho. É limite do indivíduo autossuficiente
que é descoberto aí.
O
limite de Nietzsche sempre é atingido na vida real. Nem Zaratustra e nem o
Super Homem são reais, por mais sábios e poderosos que sejam. Ambos dependem e
muito de que o agricultor plante os alimentos, que o lixeiro recolha o lixo e
que, de certa forma, a humanidade inteira faça algumas coisas para que ele
possa eventualmente não fazer nada ou ficar só pensando.
Ele
tem, ecce homo, este limite individual que foi bem demonstrado em sua própria
vida. Quando olhamos mais de perto a vida dele sempre percebemos que foi
dependente de outras pessoas.
A
mãe, a irmã, as mulheres, os amigos, o pai morto como uma sombra que paira em
sua mente, as enfermeiras e médicos dos sanatórios, pois é que seu corpo não
sobrevive sozinho e sua mente não funciona sem certos cuidados de outros.
No
final, ele repousou a sete palmos com a ajuda dos outros também. E com todos
nós vai ocorrer a mesma coisa, para além da terra redonda e desse mundo que dá
suas voltas, para além do tempo que passa e da vida que segue. E para além
também da nossa mortalidade porque atinge todos os demais. A morte é um dos fins
mais justos. É como a divina providência para todos aqueles que viveram
desiguais durante todas as suas vidas. Existem mortes diferentes sim. Algumas
com mais sofrimento e outras com menos. Algumas de surpresa e outras esperadas.
Algumas mortes cruéis e outras tranquilas.
Parece estranho falar disso, mas é
um mistério insondável relacionar a boa vida a boa morte. Às vezes é tudo ao
contrário. A vida ruim sobrevém a boa morte. E a vida boa sobrevém a morte
ruim. O que aparece aqui é uma espécie de motivo para reduzir a preocupação,
pois se ao perverso é possível a boa morte e ao bondoso a morte dolorosa, então
não há porque se preocupar com isso. E cada indivíduo há de ter o seu desfecho,
ainda que talvez mal possa saber como será, como é e como foi.
Nosso
mundo ocidental vive este tipo de mitologia do indivíduo, do caminhante
solitário e do herói por si mesmo, mas isso tem aqui um claro limite. Isso pode
ser o caso em muitos momentos, mas não é mesmo o caso o tempo todo e na vida
inteira.
Esta
ilusão do indivíduo acaba servindo na maior parte das vezes para tornar a vida
mais difícil ainda. Então, como é possível e porque criar esta pretensão de
prescindir dos outros e a julgar os outros desimportantes?
É um erro brutal que
deve ser combatido e criticado pelo bem de cada um e de todos. Pois se não há
final garantido até lá vamos continuar sim dependendo uns dos outros.
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