Ela era uma mulher muito linda, charmosa e alegre. Pelo menos, era
isso que a minha miopia e sensibilidade enxergava nela. A beleza dela, porém,
para confirmar minha fantasia, provocava suspiros até nas demais mulheres que
andavam por perto ou que a conheciam. Seu charme dobrava todos os metais e
chaves quando ela passava. Ela emanava um certo calor por assim dizer. Sua
alegria – naquele riso desbragado - dava uma bela abalada em todos os amigos e
amigas que chegavam muito perto ou que a conheciam.
Mas ela só possuía um defeito: mentia, mas não mentia para os outros
não, mentia para si mesma, muito mais para si do que para qualquer um que
andasse por perto. Assim, ela se salvava de qualquer acusação e ninguém podia
chamar ela de mentirosa. Seria uma injustiça com ela. A injustiça ficava toda
dessa forma na conta dela mesma. Ela podia falar o que quisesse, mas nas dobras
de certas coisas que dizia revelava seu engano próprio e a injustiça que
cometia consigo mesma. E esta foi, enfim, a impressão mais forte que eu tive
dela quando ela me disse certas coisas e depois disse outras. Eu acreditava
nela, mas duvidava muito que ela acreditava no que dizia. Eu não tinha coragem
de julgar ela uma bela moça contraditória, não conseguia admitir tamanha ambivalência
em uma pessoa só.
Sabe de que forma eu sabia disso? Simplesmente porque eu tinha uma boa
memória e pegava ela indo e vindo com significados diferentes para as mesmas
palavras. Até mesmo alguns dos conectivos, operadores lógicos e partículas da
nossa linguagem elementar mais conhecidas como: sim, não, ou, e, então, possível,
necessário, algum, um, vários, a maioria ou a minoria, muitos ou poucos mudavam
de significado e alteravam o sentido do que ela dizia ao longo do tempo.
E eu sabia disso, então, sabia que ela estava no fundo a mentir sobre
os seus sentimentos e a negar ou afirmar o seu desejo de uma forma tíbia ou
fraca, suscetível à certas variações espontâneas ao longo do tempo. E, então,
eu dobrava a minha vontade de falar e de contestar – intuía o tamanho disso e como
já havia tido a experiência de outros insucessos na vida, ficava ali calado e
admirado. Olhava bem nos olhos dela para ver o modo como ela fazia aquilo, me
admirava com o que via e ficava bem quieto. Não podia dizer nada mais, nem
menos, senão seria envolvido nessa trama, seja por concordar e assentir, seja
por discordar e entrar no jogo de espelhos quebrados que a cercava. E não estava
disposto de acompanhar a transmutação dos significados do que ela dizia ao longo
do tempo. Percebia nisso uma espécie de catarse interna na moça e ficava ali
observando a progressão do espetáculo.
E eu aprendi a ficar assim à certa distância vendo o que acontecia com
os cachorrinhos de estimação que ela possuía. Nenhum deles passava fome, mas eu
sabia que cada um deles só recebia migalhas do que ela realmente tinha ou me
parecia ter para dar.
Um dia ela disse que queria receber muito mais e eu fiquei pensando.
Bem garota, vais ter que dar bem mais, para ter mais. E nunca mais falei disso
com ela, porque eu não podia me envolver mesmo em uma trama destas.
Kerouac já havia me ensinado que a gente não pode se envolver muito
com quem não sabe o que quer ou com quem sabe demais o que quer. Dizia que a
demasia tornava insuficiente qualquer coisa, mesmo que fosse o máximo que você
tivesse para oferecer. E, então, eu fiquei só observando como as coisas iriam
se desenrolar. Como acontecia essa mutação nas convicções dela e que me
deixavam tão espantado ao ver um caso objetivo de um mais que vira menos e de
um menos que vira mais. Era como se eu assistisse o detalhe virar totalidade e
a totalidade se transformar em detalhe durante um certo período de tempo razoavelmente
curto que oscilava de uma semana para outra ou de um mês para outro. Isso foi
feito por mim até que aquela bela imagem se dissipasse no retrovisor da minha
vida e nunca mais falei disso, salvo agora que me coloquei a reescrever essa
anotação de 2013.
Hoje me lembrei disso de novo. Porque acabei de tomar um banho e ler
10 páginas bem saborosas de um livro muito legal. E o Sol e o Mar em sua beleza
sempre me trazem na lembrança a esperança de que tudo podia ser diferente, pelo
menos comigo...sopra a brisa e escuto um som suave...e a música enuncia outra
vez a repetição da mesma trama e do mesmo desfecho. E desta vez comecei a me
vigiar mais celeremente para ver se isso não era contagioso. E saber, enfim, se
agora tal coisa não estava acontecendo comigo de novo, mas desta vez com outras
pessoas ou personagens.
Ao final do dia me olhei no espelho da sala e assisti minha própria imagem
se dissipando e conclui que isso era perigoso. Porém pensei que assim como as
coisas podem vir a ser, assim como as coisas podem acontecer como aconteceram
com ela, comigo e com outras pessoas, talvez um dia elas deixem de acontecer e
essa mentira se dissipe e fique apenas no
lugar de suas mensagem a imagem das pessoas vivendo em paz e no mais pleno
auto entendimento e entendimento com os demais.
Eis que acordo do sonho e eis que o pesadelo se extingue e restam
deles apenas essas mensagens acima, registradas numa folha branca, sem guardar
nenhuma relação com alguém em particular, salvo comigo mesmo que deitei em
palavras o que minhas percepções, minhas ideias e minha imaginação tentavam
dizer sobre essa mulher que era uma mulher muito linda, charmosa e alegre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário