A história do meu pai começa nos
campos de cima da serra. E para mim isto é uma espécie de marca característica
da personalidade dele. A convivência com o frio, as grandes distâncias, os
campos e a proximidade do céu, me parecem ter forjado o desejo de ampla
liberdade do meu pai. Ainda escuto a voz dele dizendo que prefere o inverno ao
verão e que não tem coisa melhor do que o fogo. Era um ímpeto de sobrevivência
perante o inóspito. E uma combinação de personalidade que o frio permite e me
parece aquele conforto do aconchego após a jornada. E a jornada, como toda
jornada em busca da liberdade, era fria, quente, mas fria, desconfortável e
arriscada. Um desejo tão grande de liberdade que dificilmente pôde algum dia
ser aprisionado por qualquer coisa, pessoa ou atividade. Mas seguia sempre em frente. Sempre me
lembrarei dele decidindo chegar ou decidindo ir embora. Era muito inquieto como
se uma nova estação chamasse sua alma ali adiante em outro lugar. Meu pai era
um ariano na astrologia e talvez nele a marca da iniciativa, da disposição para
a conquista e da coragem para seguir seja quase uma definição de seu ser.
Conheci muito poucos como ele, com este espírito de independência e com uma
liderança sutil sobre todos os demais. E até o fim eu sinto isto. Ele sempre decidia
quando ir e quando chegar. Ele tinha uma noção bem pessoal da sua própria hora.
Meu pai nasceu num lugar perto do
céu se é que se pode chamar algum lugar nesta terra assim. E sempre tive uma
impressão de que as escadas para o céu lá tem menos degraus, do que aqui embaixo, no vale dos sinos. Para ser mais específico, meu pai nasceu em Vacaria. Se bem que o
local em que ele nasceu e em que ele se criou fica um pouco afastado da sede da
cidade. Ele me contou que nasceu em cima de um cavalo ou quase. Que sua mãe –
Dona Ercília – estava grávida e abrigada na fazenda do pai dela e que o pai
dele - o Sabino da Fonseca Boeira - estava acantonado em um engenho trabalhando
na construção de uma rodovia que corta a serra, provavelmente as obras da BR
116. Começaram as dores do parto pela manhã bem cedo. E ele tinha que nascer no
hospital. Assim, minha avó foi sobre um cavalo com o seu pai a guiá-la a pé.
Ocorreu que numa certa curva da estrada dos campos de cima da serra a jovem
dona Ercília teve que apear do cavalo e, então, meu pai nasceu ali mesmo à
beira da estrada. Porque o hospital ou a casa de saúde ficava longe. Era 14 de
abril de 1941, provavelmente às 9 horas da manhã. Na quinta curva, entre a
fazenda do Socorro e a Fazenda. Na enxovia....
Uma vez ele nos levou para este
lugar. Foi uma longa viagem até Vacaria e depois entramos em um ramal à direita
de quem segue após a entrada da cidade, logo após o antigo aeroporto ou campo
de vôo. Antes de chegarmos a fazenda do Tio José Boeira, passamos pelo
cemitério da família. Ali descobrimos eu e minha mãe que a família do pai era
centenária, ou melhor bicentenária. Para quem conhece a estrada que vai de
Vacaria à Bom Jesus imagine que naquela época tudo era de chão batido e que as
cercas de taipas – assim como são feitas na Irlanda e em Portugal (talvez em
mais países) até hoje, dividam os Campos e por aí o gado também. A história de
Vacaria de los Pinhales é algo maravilhosa tanto para castelhanos como para
portugas, para os índios e os negros e para nós aqui de baixo da serra seria
algo meio maravilhoso a imagem de um grande campo, um grande planalto sobre a
serra do mar apinhado de gado. Gado em abundância tal que remonta segundo
alguns historiadores a mais de dois milhões de cabeças nos idos de 1650 a 1800. A história deste gado
provém da destruição das missões jesuíticas e da dispersão do gado por toda a
região serrana. Meu pai dizia que os vacarianos eram tão especializados neste
negócio que há um peral por lá tão escarpado de pedras que o gado quando jogado
lá de cima chegava ao sopé da serra já retalhado e recortado em todas as suas
partes e pronto para o açougue ou o churrasco.
Meu pai sabia parte desta grande história
de Vacaria. E sabia das lendas também. Era um narrador cheio de manhas. As
vezes ele dizia que algo não era assim e mostrava em um pequeno detalhe como a
história fica diferente vendo certo aspecto com mais atenção. A história da descoberta da Nossa Senhora das
Oliveiras também vale uma narrativa maravilhosa. Meu pai tinha uma formação
cristã. O pai dele falava, lia e escrevia em latim e sabia rezar a missa em latim. Quando fiquei
sabendo disto, um tempo depois do desaparecimento do meu avô fiquei pensando
naquele baita bugrão de quase um metro e
noventa cantando e recitando em latim. Meu avô e meu pai tinham uma coisa em comum. Uma força física
incrível, algo hercúlea. Meu pai apesar de poupar e não exibir muito isto às vezes me
surpreendia. Até que um dia em que eu descobri em mim também a mesma força. Fiquei
pensando nisto um bom tempo. Quase não prossigo nos estudos por isto. Mas daí e
me aconteceu algo em que me convenci que a força pode acompanhar sim a
inteligência e que na verdade elas são ótimas companhias e que convém fazê-las
andarem juntas. Qual a relação entre inteligência e capacidade intelectual e
força me era uma questão biográfica quase que hereditária. Todas as indicações
tradicionais iam contra esta combinação. Pois bem, meu pai acabou me provando
que não ao organizar o levantamento de postes de luz sem uso de guindastes e
com cordas e poucas mãos humanas. Ele me provou que a inteligência torna qualquer
força bem dirigida mais eficaz e feliz do que muita força abundante, mas mal dirigida.
Engraçado falar assim, porque nesta narrativa encontramos este traço ou eixo da
experiência do meu pai o uso da força combinado com a inteligência.
E meu pai aprendeu a ler bem cedo
com as tias. E isto levou ele a um universo bem grande de interesses
cognitivos. Foi coroinha, foi moleque e sempre gostava de contar as suas
pequenas aventuras e travessuras de menino. Desde a bola de bolão pintada de branco e
devolvida ao campo dos meninos que não deixavam ele jogar. Até a aventura do
vôo a partir do telhado do Galpão do armazém do seu tio. As aventuras dele
passavam por ter aprendido a dirigir bem cedo - com dez anos – um jipe velho, ter
voado de avião bem jovem com um piloto no aeroclube de Vacaria e por ter uma
fascinação por máquinas, motores, mecânica, elétrica e água. Contou detalhadamente para mim e meu irmão a montagem da radio galena. Isto o levou a
virar o eletricista que ele foi.
Meu pai era um fértil e variado
contador de histórias. Dramas afetivos, dramas familiares, histórias de menino,
histórias do quartel, empreitadas e empreendimentos elétricos, façanhas
técnicas e brincadeiras e jogos. Jogar sinuca com ele era uma aula de paciência
e moderação do humor. Nossa, a calma com que ele batia na bola sempre provava
que a melhor tacada era sempre a mais suave, aquela em que a suavidade era
precisa. Aqui também vemos a relação entre inteligência e força. Isso era algo
tão marcante nele que dificilmente você pegava ele em apuros por aqui ou por
ali. Mas é preciso dizer por outro lado que ele era – apesar da plêiade de
amigos, servidores companheiros e colegas – no fundo um homem solitário. Lembro
dos diversos colaboradores dele. Lembro também das diversas obras que
acompanhei eles executando durante toda a infância e até a adolescência. Prédios residenciais, empresas, pavilhões, mansões, residências, pequenos consertos ou reformas. Entrei em muito lugar como ajudante e era muito curioso. Mais
tarde em 1997, quando voltei de POA, fiquei um bom tempo trabalhando com ele e
o meu irmão, até pelo menos 2001. E daí foi uma bela experiência nossa.
Aprendi muito rapidamente, sobre as experiências de ajudante infanto juvenil do passado. a ser um prático em elétrica que
tem la´seu valor. E meu irmão acabou por fazer um
curso técnico de instalador elétrico no SENAI que lhe deu outra profissão. Lembro das obras e das
tarefas. Dos bonés cheios de pó de tijolo, das instalações minuciosas que
realizamos juntos e das diversas horas que ficávamos fazendo e conversando
sobre a vida. Boa parte das grandes histórias que ele me contou provém deste tempo.
E eu e meu irmão Rafael desfrutamos disto apesar de já ser um professor formado
e em início de carreira e meu irmão ter tido outras experiências, quis a vida
que tivéssemos este tempo juntos, nós três. Ele me elogiava muito por aceitar
trabalhar e não reclamar do trabalho que tínhamos que era pesado. E eu
agradecia muito porque era a forma de incrementar minha renda de professor e
dar conta da vida com minha filha recém nascida Isabella.
Foi na oficina dele bem no início
da minha vida que aprendi a distinguir perfis e características das pessoas.
Nos períodos mais interessantes das empreitadas dele, ele possuía um séquito de
eletricistas e práticos a sua volta. O Chico, o Ivo, o Max, o Sérgio, o Felipe,
o Lindomar, o Tomatinho, o Valmir, o Darci, os Piratas, o Coca, nossa ir
desfiando aqui a quantidade de pessoas e homens que trabalharam com meu pai é
uma lembrança, mas também uma homenagem daquele menino que eu fui e que
aprendia muito com eles. Acho que foi nesta experiência que eu aprendi a me
sentir feliz no trabalho não importa qual seja o trabalho. Em que aprendi que
ruim é não ter trabalho.Mas o trabalho era muito interessante. Para quem não
sabe a atividade de eletricista é uma atividade de alto risco, exige
concentração, atenção e tranqüilidade. Cada um deles era especialista ou expert
em determinada coisa. Aprendi neste tempo a fazer massa com meu avô e a
entender como funcionam os motores. Aquela oficina do meu pai era uma escola
prática de ciências e física. Mas também, uma escola de relacionamentos
sociais. Lá se discutia futebol, política, mulheres bonitas e também problemas
da vida e as soluções que podemos dar a eles. Alguns eram daqueles
trabalhadores eram espíritas. Outros frequentavam a Assembléia de Deus e fez
parte da minha formação as vezes ir junto com eles nos cultos. Meu pai aprovava
este tipo de experiência e o alargamento do meu conhecimento sobre estas
coisas. Ele dizia que todas as religiões precisam ser respeitadas porque as
religiões ajudam de uma forma ou outra pessoas que precisam de um tipo de ajuda
especial. Mas isto aconteceu entre meus 7 anos e os 13 anos, porque depois cai
como uma luva no balcão da loja na rodoviária. E aí eu via meu pai até os 17
anos quando ele passava pela loja para dar um alô, me ajudar nisto ou naquilo e
para conversar e ver como a gente estava. Ele se separou da minha mãe quando eu
tinha 17 anos e foi um bom tempo de afastamento da gente. Montou uma nova
família e tocou a vida dele. Fui ver ele de novo já nos idos de 90 quando tinha
já 24 anos e estava na universidade. Foi o período em que a doença que agora
fulmina ele começou. Teve tuberculose
gravíssima e fez uma pleirostomia – palavra que ele lembrou agora no seu leito
esta semana ainda em frente às enfermeiras com a máscara de oxigênio. Ele era
bom com as palavras tinha um vasto vocabulário e me ensinou cedo a saber o nome
das coisas, ferramentas, bichos, passarinhos e carros também. Nossa, meu pai Antônio
tinha uma memória privilegiada e isso me passou também de certa forma.
Meu pai casou com minha mãe
Verônica Adams e depois montou uma outra família com Elaine Steinhaus. Com
minha mãe éramos três irmãos. Eu, Daniel, minha irmã Rachel e me irmão Rafael –
já falecido. Com Elaine gerou três irmãos ainda. Gabriela, Juliana e Marcelo.
Ele tinha também a fertilidade como característica e uma abraço de pai
simplesmente inesquecível.
Trabalhou a vida inteira e eu não
tenho conhecimento de nenhum período de férias dele. As únicas férias que ele
teve foi nas duas doenças, e nas duas cirurgias. Na cama do hospital ou como
foi agora de abril a setembro no abrigo do lar. E depois no Hospital Regina de meados
de outubro até hoje. Não tenho conhecimento também de nenhuma data em que ele
tenha começado a trabalhar depois das 7:30 da manhã. É uma marca dele. As 7:30
ele já estava à postos ou atendendo alguém. Tinha uma rotina interessante. Como
era autônomo sabia que dependia exclusivamente do seu próprio esforço para
sobreviver. Jamais foi funcionário de alguém ou empregado após o serviço
militar em 1959.
Começou a trabalhar em 1956 com o
Tio Antônio Boeira e passou pelo Sr. Gastão Lüdke pegando algumas empreitadas e
logo após começou a ter as suas oficinas aqui no entorno das quadras da Dom
João Becker, Rua Brasil até a Oswaldo Aranha, entre as Ruas Marques do Herval,
Independência e Primeiro de março. Nunca foi mais longe. Atendia muitas pessoas próximas deste perímetro e era muito conhecido. Era a área dele e
também a minha de certa forma. Lembro de vários endereços, garagens alugadas,
pecinhas nos fundos, salinhas no segundo andar de sobrados e consigo descrever
eles de memória nos mínimos detalhes. Os balcões improvisados as bancadas para
fazer esquemas elétricos e manutenção e consertos de eletro domésticos. Naquele
tempo você consertava rádio, toca discos, ferro elétrico, liquidificador e etc.
Ele tinha por hábito ter o ponto alugado e vários eletricistas se achegavam
para pegar serviços com ele. Creio que as vezes ganhava algo com isto. Mas o
resumo da minha vida com ele diz o seguinte: nunca enriqueceu com isto. E tinha muitos amigos e conhecidos. Os times de futebol que ele tinha nas segundas, quartas, sextas e
sábados eram uma prova disto. Colegas de quartel, amigos de bailes, amigos de
profissão e os contemporâneos dele. Ele tinha um afabilidade cuja única
semelhança eu encontrei no meu irmão. Era difícil chegar com ele em algum lugar
e não ser bem recebido. Meu pai quebrava galhos, fazia meio de campo, tinha um
juízo bem duro sobre o certo e o errado em diversos assuntos e podia muitas
vezes discordar de você com uma singeleza inacreditável. Desarmava qualquer criatura raivosa com um simples olhar ou sorriso. Ele dizia que jamais
batia de frente ou atacava o conjunto das opiniões de alguém. Mas “jogava uma
pedrinha” e muitas vezes a pedrinha dele era capaz de derrubar o castelo de cartas
ou ilusões inteirinho sem muito estrondo. Me deixava pensando nisso muitas
vezes. Porque quando comecei a observar esta tática dele comecei a descobrir
muitas pedrinhas pelo caminho. E funciona. As vezes o nosso papel é fazer
pensar mesmo. E não adianta fazer um grande discurso não. É uma palavrinha só
que basta.
Me ensinou a nunca dever nada para ninguém, ter sempre uns
trocados no bolso – ou seja jamais ficar zerado e a jamais pedir fiado. E hoje,
aos 47 anos eu entendo perfeitamente por que. A pior coisa não é dever, é saber
que não consegue pagar. Sempre haverá um momento em que alguns trocados poderão
resolver muitos problemas. E, por fim, pedir fiado é dar o direito a alguém de
te cobrar de uma coisa que você não conseguiu pagar e se você não consegue
pagar é melhor não ter. Bem, esta é uma breve memória e uma homenagem a este homem
que gostava de carteado, de bilhar e de mulheres também. Neste último assunto
ele só me disse que ninguém precisa saber de nada e assim eu me calo, com a
minha bela imagem dele inspecionando um obra com os braços às costas e num
andamento compassado em que olha para o teto e divisa tudo aquilo que enxerga e
aquilo tudo que só ele enxergava em uma obra. Desde a instalação, aos ângulos,
padrões e simetrias. Ele adorava simetrias e eu também, não porque era perfeito,
mas porque gostava de buscar a perfeição nas coisas. Ele me repetiu algumas
vezes que todo homem devia passar por este mundo e deixar uma marca. Bem, em
mim ele deixou uma marca eterna e creio que em tudo que ele fazia, havia uma
assinatura também, mas que só olhos muito perspicazes eram capazes de encontrar.
Obrigado meu pai – que minha modesta
homenagem sirva para que outros homens e mulheres sejam devidamente
homenageados e reconhecidos.
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