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domingo, 3 de junho de 2012

A MEMÓRIA DA CARNE: FREUD, DUALISMO E IMORTALIDADE DA ALMA - NOTAS AO GILSON

Te confesso que Freud é um intelectual que eu jamais ousaria subestimar. Creio que deves pensar bem mais sobre o que ele diz ali relativamente ao rompimento entre passado e futuro com a morte. Ele não é um Deus, nem suas idéias são sagradas, mas é preciso ler o que ele pensa com excessiva atenção e prudência. Sugiro que pense em que substância ou qual é o lugar depositário da sua memória. Parece-me que Freud considerava o nosso corpo físico como depositário de nossas memórias, mas só me parece. Eu mesmo quero pensar mais sobre isto. Considero, pensando melhor agora, muito mais ousada a perspectiva de Freud que envolve admitir que o corpo e a carne são depositárias da memória. É muito fácil, confortável e consolador seguir a abordagem tradicional que simplesmente desvincula o corpo da alma. A ousadia de Jung talvez tenha sido tentar recolocar a doutrina de Freud de novo submetida ao dualismo cartesiano com este belo otimismo sobre o destino das nossas almas, memórias e lembranças de nossa identidade. Mas veja só então: e quem sofre de Alzheimer amigo? - perde a alma ou perde a conexão com a sua memória? A ligação passado futuro, representada pela nossa memória, pelo nosso feixe de experiências organizadas sob um fio de Ariadne comum, que não sobrevive a morte! Esta é a questão! é por isto que andei usando aqui também a expressão desaparecimento para falar da morte física e espiritual de todos nós. Aos poucos vão se extinguindo nossas conexões, aos poucos esta grande trama de aço vai se transformando em barbantes esfarrapados. Se vivermos até aos 100 anos veremos. Uma entrevista com Niemeyer é ilustrativa também. E tenho ao meu lado diversos exemplos de pessoas cujas memórias nítidas sobre o passado mais remoto ou sobre experiências sentimentais se desvaneceram. A coisa que eu mais respeito em Freud é que ele não tenta colocar esperança onde não é necessário. Muletas que não servem são jogadas fora. E tem um ponto na vida em que você pode decidir exatamente isto: se vai continuar esposando doutrinas confortáveis ou aceitar os indícios que a realidade e a reflexão sobre a vida te apontam. Nós não precisamos de uma outra vida para que nela o valor desta vida ou os danos desta vida sejam reafirmados. A conta acaba já no primeiro desaparecimento. E você pagar ela ou não, é indiferente para a natureza. Me parece assim que diversas doutrinas procuram insistentemente impor supremacia cultural e humana sobre a natureza. Não digo com isto que você é obrigado a abandonar toda a tua perspectiva respeitável de reencarnação, roda de sansara, vida após a morte e etc, mas digo simplesmente: isto é uma doutrina! tens o direito de seguí-la, defendê-la. E é muito respeitável que o faça! Mas porque fazes isto? Freud perguntaria: é por causa da verdade que você precisa fazer isto? Ou é porque você prefere e deseja que assim seja? Bem amigo, há um abismo aqui entre o que podemos saber e que preferiríamos que fosse o caso. Inclusive a possibilidade, muito interessante, de podermos ter uma outra vida mais feliz que esta que temos agora. Parecemos jogadores perdedores que continuam confiando na possibilidade de surgir uma rodada melhor, na possibilidade que na outra mão venham ao acaso e pela sorte cartas melhores para nós. É uma imagem pueril esta para nós. O que você pensa sobre tudo isto amigo?

Um comentário:

  1. Eu ouvia um telejornal enquanto lia esse seu texto. Era uma tomada ao vivo de Brasília. E lá, distante, um repórter anunciava as, já corriqueiras, palhaçadas da CPI. Mas a voz do repórter ecoava nítida em minha sala, e eu experimentei fechar os meus olhos e imaginar aquele reporte sendo a própria televisão e estando em minha sala. Ou seja, o corpo daquele repórter era feito de transistores, capacitores, resistores e chips, sendo um deles, um grande chip de memória que guarda uma série de informações.
    Nessa minha hipotética visão, o que teríamos aqui? Monismo ou Dualismo?

    Se eu considerar que a TV é o repórter, de uma maneira monista, que tudo que representa aquela voz em minha sala vem desse equipamento, e, se esse equipamento vier a queimar, eu nada terei além disso, estarei certo?

    Sim e não.

    Se eu considerar que a TV não é o repórter, de uma maneira dualista, que se trata apenas em um meio pelo qual o repórter esta a utilizar para se fazer ouvir, portando, se esse equipamento vier a queimar, ainda restará o repórter, embora a voz não estará mais presente em minha sala, estarei certo?

    Sim e não.

    Será que só podemos pensar em termos monistas ou dualistas?

    Não é o que penso. Para mim, a TV e o repórter constituem um "sistema" que coexistem e são codependentes para que eu possa ouvir em minha sala. Um fenômeno. Um não é o outro e são ao mesmo tempo.

    Continuando nas hipóteses, digamos que fosso possível transferir toda a memória de uma pessoa antes dela ser acometida pelo Alzheimer para um super computador com uma super memória. O computador passaria a ser a pessoa?

    Creio que não. Somos bem mais que nossas memórias. Mesmo porque, todo aquele que me conhece, tem em si parte de mim.

    [Gilson]

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