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segunda-feira, 21 de maio de 2018

SARTRE E SIMONE


Eu admiro muito os dois. Creio que muito se deve a uma fama projetada pela imprensa que transformou os dois em notoriedades. Quando eu era jovem eles tinham uma fama absurda e sou daqueles que viu pela tevê o enterro de Sartre abismado pela grandiosidade da sua despedida em 1980. Já disse antes que talvez Sartre tenha sido o filósofo com maior fama da história. Confesso que Simone quando faleceu parecia ainda estar encoberta pela fama de Sartre. Hoje vejo isso de forma muito diversa.

O casal existencialista, porém, conquistou a fama no pós-guerra e não dá mesmo para se esquecer disso. Expressavam uma espécie de ideal de liberdade em muitos sentidos. Fizeram escola e tiveram milhares de seguidores pelo mundo em diversos aspectos de suas obras e vidas. Isso não aconteceu mesmo sem os méritos próprios de ambos. O casal existencialista tinha um pacto ou acordo que ficou conhecido como uma autorização a liberdade de relações livres de ambos. Para a posteridade ficou a ideia de que eles tinham uma relação essencial e necessária e que as demais relações eram acidentais ou contingentes. Não parece ter sido exatamente assim. Isso gerou alguns rolos consideráveis, mas também constituiu uma família em torno de ambos. Essa "família" era não convencional e grandiosa e envolvia em torno deles, entre amantes e dependentes, muitos que precisavam e que gozavam de novos laços não tradicionais para dar sentido às suas vidas e sobreviver a um mundo pós holocausto, pós bomba atômica e que, no auge da loucura, já ensaiava uma guerra nuclear num mundo bipolar. 

Eles se posicionaram em tantos debates públicos e controvérsias no tempo deles que davam a impressão de não estarem dormindo para nenhuma questão. Hoje quando vemos alguns intelectuais se posicionarem, temos a impressão que fazem isso e que logo voltam ao fundo de suas cavernas para preservar suas imparcialidades isentonas e que vão continuar se omitindo para as regressões terríveis que vivemos. Parece que voltam a dormir para não se perturbarem com engajamentos ou responsabilidades coletivas.

É interessante observar também o paralelo estranho entre eles e a cultura americana do pós guerra. Na América, começam a surgir movimentos culturais indesejáveis também. Logo tem o surto de macartismo nos EUA e se inicia aquela perseguição hodienda a qualquer um que pareça de esquerda na cultura, na política e na sociedade americana e um pouco depois explode a geração beat (On the Road é de 1957, mas seu movimento é do pós guerra) - que é a antecessora dos hippies, mas que naquela época com o jazz também nos subterrâneos da sociedade - que é com os blues e o gospel o pai do rock - tudo que é contracultura ou que expressava alguma forma de rebeldia ainda fazia parte dos subterrâneos da América.

Sartre era razoavelmente suscetível a impulsos e paixões. Tão suscetível aliás quanto a maior parte dos homens das gerações posteriores a ele, ainda que não confessem ou mantenham esse aspecto sob segredo ou sigilo, mas exercia isso com destemor e liberdade. Procurem alguém como ele em sua geração (nasceu em 1905). Picasso ( mais velho porém) talvez, mas quantos homens mais? Salvo alguns atores mais ousados do anos 50 e algumas poucas atrizes, no geral esse é o império da repressão sexual e da imposição da moralidade conservadora.

Como sabemos nos anos 60 tudo isso vai para o espaço com as naves que tomaram a Lua e a liberação ou revolução sexual. As apolos levam não somente o homem a lua diga-se de passagem. Mas também o imaginário de conquista da humanidade. A vontade de poder vai ganhar uma realização explícita. Voltando a Sartre, este tinha uma espécie de liberdade auto-conferida de assédio e sedução e cortejou muitas mulheres. Simone, por sua vez, era bissexual e muito assumida nisso. Não se pode dizer que era tão polígama quanto Sartre, mas fazia pouco caso disso. Ambos pagaram um preço por isso que só não foi tão alto, por que Jean-Paul Sartre recebeu uma herança e logo em seguida estoura nas vendas de livros e com um sucesso estrondoso em filosofia, literatura, teatro e até mesmo em muitos roteiros de cinema, se sustenta tranquilamente ao ponto de dispensar um prêmio Nobel nos anos 60.

No filme Os Amantes do Café Flore se exibe um período importante de ambos, desde o primeiro contato deles na École Normale Superieure (1928) até a partida de Nelson Algren (1952-53-ou 54, tendo em vista que consta, logo após essa ruptura com Nelson, um romance e praticamente um matrimônio com Claude Lanzmann de 1952 a 1959), descontente com os persistentes compromissos de Simone com Sartre, apesar do amor recíproco entre ele e Simone (as Cartas de Amor, já publicadas, se iniciam em 1947 e prosseguem até 1964, mesmo após a ruptura do relacionamento).
Eu gostei muito mais da segunda parte do filme quando o romance com Algren é apresentado de um modo mais intimista e com um roteiro mais estético por assim dizer. Base desse roteiro é o relato dela na obra Os Mandarins. Não é pouca coisa ele ter sido o homem que proporcionou o primeiro orgasmo sexual a ela, mas mesmo assim ela manteve e disputou a supremacia dessa relação necessária com Sartre. Aqui cabe minha digressão sobre atração intelectual e o modo como tal tipo de vínculo tende a ser sempre muito mais forte - para aqueles e certos intelectuais - do que o sexo ou as relações carnais. Disputou, a partir desse momento, porém, Sartre com todas as demais amantes e donas que ele se deixava e procurava ter. Não se tratava de uma relação carnal, mas sim altamente intelectual. Creio que a designação correta é de que eles tinham uma relação fraterna e parte dessa mitologia de casal fazia mais parte de um dispositivo de marketing de ambos que mantinha ambos sob a s luzes do movimento que representavam. Nesse sentido, devemos reconhecer com mais força ainda a contribuição à filosofia, à política e ao feminismo articulado e sustentado pelos dois.    

Talvez esse tenha sido o segredo de Sartre, ele transferia a posse machista para as mulheres e ao fazer isso tornou nelas possível a fêmea alfa. Em todos os casos ele deixava as mulheres terem esse sentido de posse que em Simone também pode ser observado. Pouco importava se elas possuíam ele de fato ou não, se ele se entregava de fato ou não. Já Simone parece o tempo todo ser a enigmática, a esfinge a ser decifrada e mesmo com seu sucesso se manteve como a mulher silenciosa, sob sombra do filósofo. Uma dialética estranha essa, porque não nos damos conta facilmente das diferenças entre os dois que aparentemente se movimentam sempre juntos como um par complementar. Mas quando se olha mais de perto se percebem diferenças não somente de gênero, para além dessas aparências Talvez por isso transmitiam essa imagem de um casamento perfeito ainda que não convencional.

Gosto muito das narrativas auto-biográficas de Simone. É parte relevante da sua obra para um leitor das demais peças que lavrou. Entre romances, peças de teatro, o Segundo Sexo, existem duas memórias cerzidas quase a exaustão de detalhes e na perfeição dos enredos antes escondidos nos bastidores e que são revelados. Leio nelas uma narrativa muito franca e despida de um senso burguês de preservação da verdade aos desconhecidos. Não há auto-censura. Ela escancara. Bota os lençóis da lua de mel na janela da ville. Ambos eram muito despidos de censura e não davam à mínima para a moral convencional. Por isso conviveram tranquilamente com a poligamia de ambos e a bissexualidade de Simone. Os amigos ou amigas que sofriam com isso se afastavam, os amantes que não suportavam isso se afastavam ou reprovavam apenas. A maior parte deveria olhar para eles e exclamar: não há nada a fazer. Eles querem assim e são livres para isso. As obras dela, que comecei a ler no último período, A Força das Coisas - em dois volumes - e Cerimonia do Adeus são notáveis para mim. O que muitos não gostam de fato é da franqueza dela. Ela revela em detalhes tanto os riscos que correram com seus envolvimentos quanto os mal-entendidos, os abusos e os acidentes de percurso. Não vou listar isso aqui. Me parece muito relevante que ela tenha sido a narradora de tudo e de todas aquelas relações do período. Em A força das coisas, dá detalhes de diversas controvérsias de bastidores numa narrativa plena e que me parece muito honesta. Talvez, além de suas outras obras ficcionais ou teóricas, ter esses depoimentos nos ajuda a compreender melhor a ambos, compreender com uma descrição biográfica, sociológica e ideológica o jogo intelectual importante em que eles estavam envolvidos com muitos outros personagens importantes. Os laços políticos e as diferenças são explicitadas.

Por fim, a cada dia que passa me dou mais conta da grandeza de ambos para o seu tempo, tanto pela ousadia quanto pelas ideias que formularam e transacionaram para o resto da humanidade. Meu comentário mais extenso que escrevi no fim da manhã se perdeu num lapso do smartphone, parte dele está aqui. Outra parte deixo para o tempo e a oportunidade de comentar ou debater.

Obrigado ao Renato Janine Ribeiro pela foto de Simone e Sartre nas Dunas de Nida e pela sua abordagem do “casal”. Essa foto e seu contexto é narrada em A Força das Coisas e me lembra o que significativa deve ter sido a grande travessia de ambos no deserto espiritual do século XX.





Nos lembramos também, ao ver essa imagem, o quanto Castor ia muito mais à frente de Sartre, o que para mim hoje parece muito mais evidente, ao ponto de pensar que a proposta do tal acordo era dela e não dele.

P.S.: As Dunas de Nida ficam na Lituânia. O passeio dos dois foi em julho de 1965. A foto é de Antanas Sutkus, fotógrafo que acompanhou os dois e tirou muitas fotos de ambos.

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