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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A MULHER QUE MENTIA PARA SI MESMA

Ela era uma mulher muito linda, charmosa e alegre. Pelo menos, era isso que a minha miopia e sensibilidade enxergava nela. A beleza dela, porém, para confirmar minha fantasia, provocava suspiros até nas demais mulheres que andavam por perto ou que a conheciam. Seu charme dobrava todos os metais e chaves quando ela passava. Ela emanava um certo calor por assim dizer. Sua alegria – naquele riso desbragado - dava uma bela abalada em todos os amigos e amigas que chegavam muito perto ou que a conheciam.

Mas ela só possuía um defeito: mentia, mas não mentia para os outros não, mentia para si mesma, muito mais para si do que para qualquer um que andasse por perto. Assim, ela se salvava de qualquer acusação e ninguém podia chamar ela de mentirosa. Seria uma injustiça com ela. A injustiça ficava toda dessa forma na conta dela mesma. Ela podia falar o que quisesse, mas nas dobras de certas coisas que dizia revelava seu engano próprio e a injustiça que cometia consigo mesma. E esta foi, enfim, a impressão mais forte que eu tive dela quando ela me disse certas coisas e depois disse outras. Eu acreditava nela, mas duvidava muito que ela acreditava no que dizia. Eu não tinha coragem de julgar ela uma bela moça contraditória, não conseguia admitir tamanha ambivalência em uma pessoa só.
Sabe de que forma eu sabia disso? Simplesmente porque eu tinha uma boa memória e pegava ela indo e vindo com significados diferentes para as mesmas palavras. Até mesmo alguns dos conectivos, operadores lógicos e partículas da nossa linguagem elementar mais conhecidas como: sim, não, ou, e, então, possível, necessário, algum, um, vários, a maioria ou a minoria, muitos ou poucos mudavam de significado e alteravam o sentido do que ela dizia ao longo do tempo.    

E eu sabia disso, então, sabia que ela estava no fundo a mentir sobre os seus sentimentos e a negar ou afirmar o seu desejo de uma forma tíbia ou fraca, suscetível à certas variações espontâneas ao longo do tempo. E, então, eu dobrava a minha vontade de falar e de contestar – intuía o tamanho disso e como já havia tido a experiência de outros insucessos na vida, ficava ali calado e admirado. Olhava bem nos olhos dela para ver o modo como ela fazia aquilo, me admirava com o que via e ficava bem quieto. Não podia dizer nada mais, nem menos, senão seria envolvido nessa trama, seja por concordar e assentir, seja por discordar e entrar no jogo de espelhos quebrados que a cercava. E não estava disposto de acompanhar a transmutação dos significados do que ela dizia ao longo do tempo. Percebia nisso uma espécie de catarse interna na moça e ficava ali observando a progressão do espetáculo.  

E eu aprendi a ficar assim à certa distância vendo o que acontecia com os cachorrinhos de estimação que ela possuía. Nenhum deles passava fome, mas eu sabia que cada um deles só recebia migalhas do que ela realmente tinha ou me parecia ter para dar.

Um dia ela disse que queria receber muito mais e eu fiquei pensando. Bem garota, vais ter que dar bem mais, para ter mais. E nunca mais falei disso com ela, porque eu não podia me envolver mesmo em uma trama destas.

Kerouac já havia me ensinado que a gente não pode se envolver muito com quem não sabe o que quer ou com quem sabe demais o que quer. Dizia que a demasia tornava insuficiente qualquer coisa, mesmo que fosse o máximo que você tivesse para oferecer. E, então, eu fiquei só observando como as coisas iriam se desenrolar. Como acontecia essa mutação nas convicções dela e que me deixavam tão espantado ao ver um caso objetivo de um mais que vira menos e de um menos que vira mais. Era como se eu assistisse o detalhe virar totalidade e a totalidade se transformar em detalhe durante um certo período de tempo razoavelmente curto que oscilava de uma semana para outra ou de um mês para outro. Isso foi feito por mim até que aquela bela imagem se dissipasse no retrovisor da minha vida e nunca mais falei disso, salvo agora que me coloquei a reescrever essa anotação de 2013.

Hoje me lembrei disso de novo. Porque acabei de tomar um banho e ler 10 páginas bem saborosas de um livro muito legal. E o Sol e o Mar em sua beleza sempre me trazem na lembrança a esperança de que tudo podia ser diferente, pelo menos comigo...sopra a brisa e escuto um som suave...e a música enuncia outra vez a repetição da mesma trama e do mesmo desfecho. E desta vez comecei a me vigiar mais celeremente para ver se isso não era contagioso. E saber, enfim, se agora tal coisa não estava acontecendo comigo de novo, mas desta vez com outras pessoas ou personagens.

Ao final do dia me olhei no espelho da sala e assisti minha própria imagem se dissipando e conclui que isso era perigoso. Porém pensei que assim como as coisas podem vir a ser, assim como as coisas podem acontecer como aconteceram com ela, comigo e com outras pessoas, talvez um dia elas deixem de acontecer e essa mentira se dissipe e fique apenas no  lugar de suas mensagem a imagem das pessoas vivendo em paz e no mais pleno auto entendimento e entendimento com os demais.

Eis que acordo do sonho e eis que o pesadelo se extingue e restam deles apenas essas mensagens acima, registradas numa folha branca, sem guardar nenhuma relação com alguém em particular, salvo comigo mesmo que deitei em palavras o que minhas percepções, minhas ideias e minha imaginação tentavam dizer sobre essa mulher que era uma mulher muito linda, charmosa e alegre.   
      


segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

NIRVANA – CHARLES BUKOVSKI

Nenhuma chance, completamente sem propósito.
Ele era um jovem viajando num ônibus
através da Carolina do Norte e em algum ponto
começou a nevar.

O ônibus parou em um pequeno café
nas colinas e os passageiros entraram.
Ele sentou no balcão, como os outros,
pediu um lanche rápido e a refeição foi
particularmente boa como o café.

A garçonete era o contrário das mulheres
que ele tinha conhecido.
Ela não era  afetada, havia um humor
natural vindo dela.

O cozinheiro da chapa disse coisas loucas.
o lavador de louça, na parte de trás,
riu um sorriso límpido, bom e
agradável.

O jovem olhou para a neve através das
janelas.
Ele queria ficar ali naquele café
para sempre.

Um sentimento curioso atravessou ele
de que tudo estava
ótimo, de que sempre  fica belo lá.

Então o motorista do ônibus
disse aos passageiros que era a hora de
embarcar.

O jovem pensou, vou ficar sentado aqui,
quero ficar aqui.

Mas então levantou-se e seguiu
com os outros no ônibus.

Encontrou seu assento
e olhou para o café mais uma vez
através da janela do ônibus.

Então o ônibus moveu-se,
desceu uma curva, para baixo, para longe
daquelas colinas.

E o jovem mirou uma reta para trás,
E ouviu os outros passageiros
Falando de outras coisas,
alguns liam ou estavam
tentando dormir.

Eles não tinham notado
aquela mágica.

O jovem colocou a cabeça para
o lado,
fechou os seus olhos e fingiu
dormir.

Não havia nada mais a fazer -
apenas ouvir o som do motor,

o som dos pneus na neve.

VERSÃO MINHA DE 24 DE DEZEMBRO DE 2017
DANIEL ADAMS BOEIRA
6 anos após a primeira leitura.