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domingo, 17 de agosto de 2014

MUDANÇA CONCEITUAL OU TRADUÇÃO?

NOTAS SOBRE O PACTO EM EDUCAÇÃO, OBJETIVOS E TEORIAS - PEQUENAS ANOTAÇÕES SOBRE CÓDIGOS, LINGUAGEM, VOCABULÁRIO TÉCNICO E TEORIAS, CONCEITOS, PALAVRAS ARCAICAS, PALAVRAS OBSOLETAS, TEORIAS, INTERPRETAÇÕES E SIGNIFICADOS PERDIDOS

Neste sábado passado na escola, estivemos reunidos pela manhã e à tarde na formação continuada debatendo diversas questões da educação e recolocando alguns desafios em pauta. Após uma discussão inserida nesta Formação do Pacto Nacional de Fortalecimento do Ensino Médio, tive uma espécie de insight sobre o que ocorre na educação e sobre o que pode ou deve auxiliar neste processo que deve ser compreendido não como um processo de perdas de conteúdos, de perda de teoria, de simplificação ou redução do conhecimento ao achismo e ao mero uso coloquial e simplório e banalizado do conhecimento.  

Apontei e anotei que percebia que uma grande mudança apresentada como meta no Pacto, não é propriamente uma Mudança Conceitual. Passar no planejamento de um Currículo de Conteúdos de Ensino para Objetivos de Ensino, não é ou era algo que poderia ser compreendido como uma mudança conceitual, mas sim antes disto como um processo de tradução de uma linguagem para outra dos mesmos conceitos e conhecimentos, conteúdos e questões. Assim, a questão é melhor encarada se formularmos a pergunta assim: Como fazer a tradução correta de Conteúdos para Objetivos? Sendo nosso papel, assim, muito mais de tornar explicito nisto para que bem servem tais e tais conteúdos ou quais objetivos pretendemos atingir com seu ensino, exploração ou exercício de compreensão. Percebo nisto, também, de uma outra forma e em certo paralelo, o mesmo que acontece com o desafio relativo a criação de uma solução para aquela velha questão teórica de sua aplicação prática. 

Entendi isso como uma questão também de esforço de tradução e não de mera transposição de conteúdos e que esta não dispensa os conteúdos nem elimina conteúdos. Ao tratar isto como uma questão de tradução me dei por conta de que tratava-se também na explicitação do currículo por objetivos de uma reformulação textual ou discursiva dos velhos conteúdos cujo esforço promove certa autoconsciência dos educadores e de suas singularidades em relação aos alunos.

Também percebi que, além disso, observava um paralelo entre a necessidade de domínio teórico para efeitos de aplicação prática dos conhecimentos trabalhados e que isto não abria mão, como alguns consideram simploriamente, portanto, nem de teoria, nem de conteúdos, mas que exigia uma espécie de tradução de conteúdos e de teorias que envolvia tanto uma aplicação prática à realidade dos alunos quanto – e aqui me parece haver o desafio efetivamente maior – formar e constituir o uso e a apropriação lingüística de um certo vocabulário e terminologia próprios do conhecimento e das teorias por parte do alunos e alunas. Assim, não se abre mão nem da teoria nem do conteúdo e se constitui mais claramente o processo de qualificação da educação.   

EXEMPLO

Nossa colega Vanessa Pereira- professora de física, apresentou algumas observações sobre os desafios que ela encontrava ao lecionar física em relação às dificuldades dos alunos com a linguagem técnica e o vocabulário próprio da disciplina, entre outras coisas, o que me lembrou pelo menos três passagens relacionadas e algumas memórias e conceitos sobre isto que englobo aqui como “questões de vocabulário”, “questões de tradução”, “questões de teoria” e os objetivos curriculares fundamentais das disciplinas e áreas e que vou compartilhar aqui.

No relato dela, ela observava que os alunos não sabiam interpretar os fenômenos e as descrições de fenômenos físicos e que ao mesmo tempo não possuem um vocabulário para aplicar a isto. Para mim, esta foi uma boa coincidência porque andei lendo um livro novo que me suscita abordagens sobre o tema da tradução, interpretação e dos vocabulários específicos, e também peguei um ônibus onde ouvi uma conversa entre universitários que pode servir de exemplo pontual sobre tradução, facilitar ou perda vocabular e empobrecimento teórico ou mudança conceitual, e acabei resgatando também umas memórias sobre linguagem, códigos e introdução de conceitos em aulas da minha formação.  E isso pode ser feito sem ter medo de gerar estranhamento ou dificuldades de compreensão porque estas são justamente as barreiras a serem vencidas.

A TRADUÇÃO E A FILOSOFIA DA ARTE DE DANTO

Ao adquirir o seguinte livro de ARTHUR C. DANTO - O descredenciamento filosófico da arte. Tradução Rodrigo Duarte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014, me defrontei com a Nota sobre a Tradução do Rodrigo Duarte em que ele apresenta seu depoimento sobre os desafios na tradução. Trata-se da tradução de uma coletânea de artigos publicada em 1986 por Danto, com o objetivo de explicitar sua teoria sobre o “fim da obra de arte”. E nesta coletânea de artigos preparados para conferências em diversas instituições, conferencias estas que dialogam umas com as outras e que soa de certa forma complementares e integradas numa teoria da arte muito original. Vou usar aqui apenas dois elementos da anotação sobre a tradução de Rodrigo e da teoria de Danto.

De um lado, Rodrigo aponta a dificuldade de traduzir Danto por conta do mesmo fazer uso corrente de expressões obsoletas, arcaicas e consideradas em desuso por falantes da língua inglesa e que nos melhores dicionários do inglês também são vistas assim. E que o mesmo, na outra ponta, também usa expressões coloquiais e gírias. Eu fiquei pensando nisto e nas razões de Danto para isto. De um ponto de vista ele está a preservar uma riqueza vocabular e a manter – também por conta de seu desafio de fazer uma filosofia histórica da arte – o significado de expressões no presente que estão implicadas com certas formas de compreender o mundo, comportamentos, coisas e pessoas e suas obras em outros tempos. Também lhe vale ai criar uma aplicação nova para certas expressões e me parece ser bem claro também o uso de expressões velhas para fenômenos cuja percepção, descrição e teorização dele são novas. E neste caso o próprio elemento do “defranchisemenet” presente no título da obra como é esclarecido por Rodrigo Duarte em sua tradução disto por “descredenciamento” explicaria este modelo operacional e semântico e seria exemplar na elucidação de um fenômeno recente na história da arte. De um lado associado ao “fim  da arte” e do outro lado associado “ à desconsideração da importância  da arte para a filosofia”. 

Na minha opinião ou interpretação sobre isto, Danto estaria fazendo uso de linguagem vocabular diferenciada não para parecer engenhoso, mas para não perder o universo de significado e de interpretação que acompanha estas palavras e, também, porque sabe que ao mantê-las em uso preserva sentido e tem ganhos na compressão de fenômenos estéticos novos cujo significado encontra-se também em seu tempo próprio e que precisam de um esforço atualizado de interpretação. E assim me referi no debate na escola: em preservar o uso do vocabulário para não perder a capacidade interpretativa e teórica própria de  cada ciência ou ramo do conhecimento. O que pode parecer, desta forma, à primeira vista um arcaísmo e uma expressão obsoleta pode ser justamente o caminho para se chegar a uma compreensão de certas teorias, interpretações de mundo e das coisas – que Heidegger chamava de epocal. Neste sentido, um esforço de tradução, não poderia servir para se esquecer o traduzido mas sim para tornar sua compreensão possível e concorre para isto trazer o seu contexto de origem ou constelação conceitual própria ao fazer este exercício. E no caso da aplicação prática da teoria, não para esquecer a teoria, mas para tornar sua compreensão também possível. Estou evitando deliberadamente o recurso as teorias hermenêuticas ou de texto e contexto para evitar uma miscelânea maior já do que aquela que apresento e porque considero suficientes para exemplificar o que posto aqui. Mas é possível se avançar mais neste tema e nesta direção, o que não gostaria de fazer aqui.  
Isso nos carrega, ao meu ver, então, para duas expressões usadas com mais freqüência nas escolas européias. Contextualizar e mostrar a constelação própria de certos conceitos em certos autores pareceria uma forma não de esquematizar ou resumir simplesmente uma teoria, mas sim de acessar ao seu significado mais alargado e ao seu maior poderio de representação de algo ou fenômeno no mundo. Ao contextualizar ou ao exibir o contexto próprio de origem, uso e aplicação do conceito – e as etimologias gregas ou alemãs em uso corrente por todos os filósofos ainda fazem isto – seja este histórico ou textual, contribui para encontrar seu significado e resgatar seu conhecimento próprio ou acepção própria de origem, permitindo assim a tradução para o tempo atual para se ver se algo parecido cabe sob ele, ou para mostrar a diferença atual em algo que poderia parecer caber sob ele, mas que sob certa acepção ou com sua diferença adicional própria merece o acréscimo de alguma nuance ou observação adicional. Sob o tema da constelação a idéia é simples: uma estrela só faz sentido em sua constelação  própria e empresta seu brilho ao conjunto ao que pertence e tem seu significado inserido nele. Para Walter Benjamin que, se não me engano, é o pai desta analogia e aplicação, um conceito, uma obra de arte, um texto e uma coisa fora do seu contexto, fora ou separada da sua constelação própria perde seu significado próprio. 

O que ele também chamou de sua aura, na teoria da reprodutibilidade das obras de arte, em que as obras reproduzidas em série perderiam seu significado e importância não tanto pela banalização ou reprodução massiva de uma imagem na pintura ou figura num retrato, mas por sua individualidade própria que é singular e que teria em sua singularidade ou seu máximo poder de universalização de sentido.         

O ELOGIO DO PROFESSOR NO ÔNIBUS

Na viagem de ônibus da última sexta-feira, eu estava com o livro de Danto entre as mãos lendo alguns tópicos iniciais e pelo menos um artigo dele, e no percurso entre o bairro Feitoria e a estação Unisinos, haviam muitos estudantes universitários e um grupo de três acadêmicos estavam sentados do outro lado do corredor próximos à mim e conversando em voz alta e que me chamou atenção a certa altura de um diálogo específico sobre professores em que um destes alunos elogiava um professor pela seguinte razão: “ele não usa vocabulário técnico em sala de aula, o que fica bem fácil para a gente entender as aulas dele e não parece artificial”. Ouvi aquilo e fechei o livro entre as mãos e fiquei meditando, pois era justamente um dos tema que eu estava a refletir sobre o fechamento de um discurso – ou insulamento de um discurso - e a ininteligibilidade externamente aos eu próprio  universo de falantes da mesma linguagem técnica e a inteligibilidade dele dentro de um universo intelectual e vocabular especializado que é estranho aos leigos e o trabalho de tradução, seus limites e desafios de compreensão deste conhecimento para o universo vocabular e a linguagem coloquial.  

Na atividade de formação do Pacto usei isto como um exemplo a ser mais bem discutido tendo em vista que o elogio pode ser uma faca de dois gumes. Por um lado, impede a compreensão do conhecimento técnico e mantém os alunos alijados dos debates aparentemente bizantinos e conceituais da ciência  – o que para os facilitadores significa tornar a ciência ou técnica acessível; e, por outro lado, cria aquela conhecida ojeriza a teorias que tão nefasta se mostra justamente quando se trata de tentar aplicar o conhecimento teórico ao domínio do prático, cujo desafio qualitativo impõe sempre uma boa base teórica e não uma base simplificada e empobrecedora da teoria. Não admira que depois temos acadêmicos de diversas profissões – professores e também profissionais liberais - formados em instituições superiores, cujo principal e reincidente artifício de retórica é acusar a teoria de não ser prática. Claro que não é prática, uma teoria simplificada e empobrecida não consegue mesmo ter uma aplicação prática efetivamente significativa.

INTRODUÇÃO DE CONCEITOS E MUDANÇA CONCEITUAL

Me lembrei de meu primeiro professor de filosofia. Um alemão cujas aulas eram pontuadas sempre por apresentações de conceitos e introduções de conceitos. 

E me lembrei que o próprio conceito em alemão begriff, nos oferece duas acepções importantes de um conceito de um lado a idéia – que já explorei em outro texto – de seu papel de “pegar algo” no mundo, ou como dizia o Balthazar de dividir o mundo entre aquilo que cabe sob o conceito e aquilo que está fora. E, também, a idéia de grifar e sublinhar uma diferença ou nota característica que muitas vezes é crucial e decisiva na clareza sobre as coisas, a s palavras e os discursos. Se é assim, então, contribui o uso do conceito para a verdade e a precisão de nossas atribuições, predicações e de nossas proposições sobre as coisas. 

Não se trata ai de mera semântica. E em minha clássica já discussão com a matemática eu insisto em argumentar que saber usar um conceito com precisão, clareza e rigor tem seu valor comparável a saber realizar uma operação ou dar resultado a uma determinada equação – seja este filosófico, científico ou técnico. Isto significa que esta aparente “semântica” deveria ter um status superior e que isso deveria equivaler ao valor atribuído ao conhecimento de operações matemáticas. 

Uma prova disto, desta semelhança,  é que também para o uso de conceitos é preciso exercitar e ir se apropriando de um domínio de aplicação dos conceitos e que também a aplicação indevida ou criativa dos conceitos – como a que ocorre num uso alargado ou mais relaxado  dos conceitos ou de certas expressões e vocabulários – também deve ser compreendido como conhecimento, porque quando se traduzem conceitos avançamos sobre outros domínios para os quais eles não tinham sentido ainda e alargar a aplicação de um conceito não é abolir a sua pureza como em uma obra de arte ou fazê-lo perder a sua aura, mas sim dar-lhe maior poder e âmbito de aplicação. Não considero isso uma mudança conceitual entretanto, mas somente uma tradução que acabará por aumentar o acervo cultural e o patrimônio cultural do usuário de uma linguagem determinada.

Concluo dizendo que vejo muitas outras direções de análise e algumas imperfeições e insuficiências aqui e ali neste texto, mas que notas são assim mesmo, o começo de um processo de avaliação que pode e deve continuar...

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