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sábado, 17 de novembro de 2012

ANTONIO BOEIRA SOBRINHO: 14/04/1941 - 17/11/2012 - EM MEMÓRIA DO MEU PAI


A história do meu pai começa nos campos de cima da serra. E para mim isto é uma espécie de marca característica da personalidade dele. A convivência com o frio, as grandes distâncias, os campos e a proximidade do céu, me parecem ter forjado o desejo de ampla liberdade do meu pai. Ainda escuto a voz dele dizendo que prefere o inverno ao verão e que não tem coisa melhor do que o fogo. Era um ímpeto de sobrevivência perante o inóspito. E uma combinação de personalidade que o frio permite e me parece aquele conforto do aconchego após a jornada. E a jornada, como toda jornada em busca da liberdade, era fria, quente, mas fria, desconfortável e arriscada. Um desejo tão grande de liberdade que dificilmente pôde algum dia ser aprisionado por qualquer coisa, pessoa ou atividade. Mas seguia sempre em frente. Sempre me lembrarei dele decidindo chegar ou decidindo ir embora. Era muito inquieto como se uma nova estação chamasse sua alma ali adiante em outro lugar. Meu pai era um ariano na astrologia e talvez nele a marca da iniciativa, da disposição para a conquista e da coragem para seguir seja quase uma definição de seu ser. Conheci muito poucos como ele, com este espírito de independência e com uma liderança sutil sobre todos os demais. E até o fim eu sinto isto. Ele sempre decidia quando ir e quando chegar. Ele tinha uma noção bem pessoal da sua própria hora.

Meu pai nasceu num lugar perto do céu se é que se pode chamar algum lugar nesta terra assim. E sempre tive uma impressão de que as escadas para o céu lá tem menos degraus, do que aqui embaixo, no vale dos sinos. Para ser mais específico, meu pai nasceu em Vacaria. Se bem que o local em que ele nasceu e em que ele se criou fica um pouco afastado da sede da cidade. Ele me contou que nasceu em cima de um cavalo ou quase. Que sua mãe – Dona Ercília – estava grávida e abrigada na fazenda do pai dela e que o pai dele - o Sabino da Fonseca Boeira - estava acantonado em um engenho trabalhando na construção de uma rodovia que corta a serra, provavelmente as obras da BR 116. Começaram as dores do parto pela manhã bem cedo. E ele tinha que nascer no hospital. Assim, minha avó foi sobre um cavalo com o seu pai a guiá-la a pé. Ocorreu que numa certa curva da estrada dos campos de cima da serra a jovem dona Ercília teve que apear do cavalo e, então, meu pai nasceu ali mesmo à beira da estrada. Porque o hospital ou a casa de saúde ficava longe. Era 14 de abril de 1941, provavelmente às 9 horas da manhã. Na quinta curva, entre a fazenda do Socorro e a Fazenda. Na enxovia....

Uma vez ele nos levou para este lugar. Foi uma longa viagem até Vacaria e depois entramos em um ramal à direita de quem segue após a entrada da cidade, logo após o antigo aeroporto ou campo de vôo. Antes de chegarmos a fazenda do Tio José Boeira, passamos pelo cemitério da família. Ali descobrimos eu e minha mãe que a família do pai era centenária, ou melhor bicentenária. Para quem conhece a estrada que vai de Vacaria à Bom Jesus imagine que naquela época tudo era de chão batido e que as cercas de taipas – assim como são feitas na Irlanda e em Portugal (talvez em mais países) até hoje, dividam os Campos e por aí o gado também. A história de Vacaria de los Pinhales é algo maravilhosa tanto para castelhanos como para portugas, para os índios e os negros e para nós aqui de baixo da serra seria algo meio maravilhoso a imagem de um grande campo, um grande planalto sobre a serra do mar apinhado de gado. Gado em abundância tal que remonta segundo alguns historiadores a mais de dois milhões de cabeças nos idos de 1650 a 1800. A história deste gado provém da destruição das missões jesuíticas e da dispersão do gado por toda a região serrana. Meu pai dizia que os vacarianos eram tão especializados neste negócio que há um peral por lá tão escarpado de pedras que o gado quando jogado lá de cima chegava ao sopé da serra já retalhado e recortado em todas as suas partes e pronto para o açougue ou o churrasco.

Meu pai sabia parte desta grande história de Vacaria. E sabia das lendas também. Era um narrador cheio de manhas. As vezes ele dizia que algo não era assim e mostrava em um pequeno detalhe como a história fica diferente vendo certo aspecto com mais atenção.  A história da descoberta da Nossa Senhora das Oliveiras também vale uma narrativa maravilhosa. Meu pai tinha uma formação cristã. O pai dele falava, lia e escrevia em latim e sabia rezar a missa em latim. Quando fiquei sabendo disto, um tempo depois do desaparecimento do meu avô fiquei pensando naquele baita bugrão de quase um metro e  noventa cantando e recitando em latim. Meu avô e meu pai tinham uma coisa em comum. Uma força física incrível, algo hercúlea. Meu pai apesar de poupar e  não exibir muito isto às vezes me surpreendia. Até que um dia em que eu descobri em mim também a mesma força. Fiquei pensando nisto um bom tempo. Quase não prossigo nos estudos por isto. Mas daí e me aconteceu algo em que me convenci que a força pode acompanhar sim a inteligência e que na verdade elas são ótimas companhias e que convém fazê-las andarem juntas. Qual a relação entre inteligência e capacidade intelectual e força me era uma questão biográfica quase que hereditária. Todas as indicações tradicionais iam contra esta combinação. Pois bem, meu pai acabou me provando que não ao organizar o levantamento de postes de luz sem uso de guindastes e com cordas e poucas mãos humanas. Ele me provou que a inteligência torna qualquer força bem dirigida mais eficaz e feliz do que muita força abundante, mas mal dirigida. Engraçado falar assim, porque nesta narrativa encontramos este traço ou eixo da experiência do meu pai o uso da força combinado com a inteligência.

E meu pai aprendeu a ler bem cedo com as tias. E isto levou ele a um universo bem grande de interesses cognitivos. Foi coroinha, foi moleque e sempre gostava de contar as suas pequenas aventuras e travessuras de menino. Desde a bola de bolão pintada de branco e devolvida ao campo dos meninos que não deixavam ele jogar. Até a aventura do vôo a partir do telhado do Galpão do armazém do seu tio. As aventuras dele passavam por ter aprendido a dirigir bem cedo - com dez anos – um jipe velho, ter voado de avião bem jovem com um piloto no aeroclube de Vacaria e por ter uma fascinação por máquinas, motores, mecânica, elétrica e água. Contou detalhadamente para mim e meu irmão a montagem da radio galena. Isto o levou a virar o eletricista que ele foi.

Meu pai era um fértil e variado contador de histórias. Dramas afetivos, dramas familiares, histórias de menino, histórias do quartel, empreitadas e empreendimentos elétricos, façanhas técnicas e brincadeiras e jogos. Jogar sinuca com ele era uma aula de paciência e moderação do humor. Nossa, a calma com que ele batia na bola sempre provava que a melhor tacada era sempre a mais suave, aquela em que a suavidade era precisa. Aqui também vemos a relação entre inteligência e força. Isso era algo tão marcante nele que dificilmente você pegava ele em apuros por aqui ou por ali. Mas é preciso dizer por outro lado que ele era – apesar da plêiade de amigos, servidores companheiros e colegas – no fundo um homem solitário. Lembro dos diversos colaboradores dele. Lembro também das diversas obras que acompanhei eles executando durante toda a infância e até a adolescência. Prédios residenciais, empresas, pavilhões, mansões, residências, pequenos consertos ou reformas. Entrei em muito lugar como ajudante e era muito curioso. Mais tarde em 1997, quando voltei de POA, fiquei um bom tempo trabalhando com ele e o meu irmão, até pelo menos 2001. E daí foi uma bela experiência nossa. Aprendi muito rapidamente, sobre as experiências de ajudante infanto juvenil do passado. a ser um prático em elétrica que tem la´seu valor. E meu irmão acabou por fazer um  curso técnico de instalador elétrico no SENAI que lhe deu outra profissão. Lembro das obras e das tarefas. Dos bonés cheios de pó de tijolo, das instalações minuciosas que realizamos juntos e das diversas horas que ficávamos fazendo e conversando sobre a vida. Boa parte das grandes histórias que ele me contou provém deste tempo. E eu e meu irmão Rafael desfrutamos disto apesar de já ser um professor formado e em início de carreira e meu irmão ter tido outras experiências, quis a vida que tivéssemos este tempo juntos, nós três. Ele me elogiava muito por aceitar trabalhar e não reclamar do trabalho que tínhamos que era pesado. E eu agradecia muito porque era a forma de incrementar minha renda de professor e dar conta da vida com minha filha recém nascida Isabella.

Foi na oficina dele bem no início da minha vida que aprendi a distinguir perfis e características das pessoas. Nos períodos mais interessantes das empreitadas dele, ele possuía um séquito de eletricistas e práticos a sua volta. O Chico, o Ivo, o Max, o Sérgio, o Felipe, o Lindomar, o Tomatinho, o Valmir, o Darci, os Piratas, o Coca, nossa ir desfiando aqui a quantidade de pessoas e homens que trabalharam com meu pai é uma lembrança, mas também uma homenagem daquele menino que eu fui e que aprendia muito com eles. Acho que foi nesta experiência que eu aprendi a me sentir feliz no trabalho não importa qual seja o trabalho. Em que aprendi que ruim é não ter trabalho.Mas o trabalho era muito interessante. Para quem não sabe a atividade de eletricista é uma atividade de alto risco, exige concentração, atenção e tranqüilidade. Cada um deles era especialista ou expert em determinada coisa. Aprendi neste tempo a fazer massa com meu avô e a entender como funcionam os motores. Aquela oficina do meu pai era uma escola prática de ciências e física. Mas também, uma escola de relacionamentos sociais. Lá se discutia futebol, política, mulheres bonitas e também problemas da vida e as soluções que podemos dar a eles. Alguns eram daqueles trabalhadores eram espíritas. Outros frequentavam a Assembléia de Deus e fez parte da minha formação as vezes ir junto com eles nos cultos. Meu pai aprovava este tipo de experiência e o alargamento do meu conhecimento sobre estas coisas. Ele dizia que todas as religiões precisam ser respeitadas porque as religiões ajudam de uma forma ou outra pessoas que precisam de um tipo de ajuda especial. Mas isto aconteceu entre meus 7 anos e os 13 anos, porque depois cai como uma luva no balcão da loja na rodoviária. E aí eu via meu pai até os 17 anos quando ele passava pela loja para dar um alô, me ajudar nisto ou naquilo e para conversar e ver como a gente estava. Ele se separou da minha mãe quando eu tinha 17 anos e foi um bom tempo de afastamento da gente. Montou uma nova família e tocou a vida dele. Fui ver ele de novo já nos idos de 90 quando tinha já 24 anos e estava na universidade. Foi o período em que a doença que agora fulmina ele começou.  Teve tuberculose gravíssima e fez uma pleirostomia – palavra que ele lembrou agora no seu leito esta semana ainda em frente às enfermeiras com a máscara de oxigênio. Ele era bom com as palavras tinha um vasto vocabulário e me ensinou cedo a saber o nome das coisas, ferramentas, bichos, passarinhos e carros também. Nossa, meu pai Antônio tinha uma memória privilegiada e isso me passou também de certa forma.

Meu pai casou com minha mãe Verônica Adams e depois montou uma outra família com Elaine Steinhaus. Com minha mãe éramos três irmãos. Eu, Daniel, minha irmã Rachel e me irmão Rafael – já falecido. Com Elaine gerou três irmãos ainda. Gabriela, Juliana e Marcelo. Ele tinha também a fertilidade como característica e uma abraço de pai simplesmente inesquecível.

Trabalhou a vida inteira e eu não tenho conhecimento de nenhum período de férias dele. As únicas férias que ele teve foi nas duas doenças, e nas duas cirurgias. Na cama do hospital ou como foi agora de abril a setembro no abrigo do lar. E depois no Hospital Regina de meados de outubro até hoje. Não tenho conhecimento também de nenhuma data em que ele tenha começado a trabalhar depois das 7:30 da manhã. É uma marca dele. As 7:30 ele já estava à postos ou atendendo alguém. Tinha uma rotina interessante. Como era autônomo sabia que dependia exclusivamente do seu próprio esforço para sobreviver. Jamais foi funcionário de alguém ou empregado após o serviço militar em 1959.

Começou a trabalhar em 1956 com o Tio Antônio Boeira e passou pelo Sr. Gastão Lüdke pegando algumas empreitadas e logo após começou a ter as suas oficinas aqui no entorno das quadras da Dom João Becker, Rua Brasil até a Oswaldo Aranha, entre as Ruas Marques do Herval, Independência e Primeiro de março. Nunca foi mais longe. Atendia muitas pessoas próximas deste perímetro e era muito conhecido. Era a área dele e também a minha de certa forma. Lembro de vários endereços, garagens alugadas, pecinhas nos fundos, salinhas no segundo andar de sobrados e consigo descrever eles de memória nos mínimos detalhes. Os balcões improvisados as bancadas para fazer esquemas elétricos e manutenção e consertos de eletro domésticos. Naquele tempo você consertava rádio, toca discos, ferro elétrico, liquidificador e etc. Ele tinha por hábito ter o ponto alugado e vários eletricistas se achegavam para pegar serviços com ele. Creio que as vezes ganhava algo com isto. Mas o resumo da minha vida com ele diz o seguinte: nunca enriqueceu com isto. E tinha muitos amigos e conhecidos. Os times de futebol que ele tinha nas segundas, quartas, sextas e sábados eram uma prova disto. Colegas de quartel, amigos de bailes, amigos de profissão e os contemporâneos dele. Ele tinha um afabilidade cuja única semelhança eu encontrei no meu irmão. Era difícil chegar com ele em algum lugar e não ser bem recebido. Meu pai quebrava galhos, fazia meio de campo, tinha um juízo bem duro sobre o certo e o errado em diversos assuntos e podia muitas vezes discordar de você com uma singeleza inacreditável. Desarmava qualquer criatura raivosa com um simples olhar ou sorriso. Ele dizia que jamais batia de frente ou atacava o conjunto das opiniões de alguém. Mas “jogava uma pedrinha” e muitas vezes a pedrinha dele era capaz de derrubar o castelo de cartas ou ilusões inteirinho sem muito estrondo. Me deixava pensando nisso muitas vezes. Porque quando comecei a observar esta tática dele comecei a descobrir muitas pedrinhas pelo caminho. E funciona. As vezes o nosso papel é fazer pensar mesmo. E não adianta fazer um grande discurso não. É uma palavrinha só que basta.

Me ensinou a  nunca dever nada para ninguém, ter sempre uns trocados no bolso – ou seja jamais ficar zerado e a jamais pedir fiado. E hoje, aos 47 anos eu entendo perfeitamente por que. A pior coisa não é dever, é saber que não consegue pagar. Sempre haverá um momento em que alguns trocados poderão resolver muitos problemas. E, por fim, pedir fiado é dar o direito a alguém de te cobrar de uma coisa que você não conseguiu pagar e se você não consegue pagar é melhor não ter. Bem, esta é uma breve memória e uma homenagem a este homem que gostava de carteado, de bilhar e de mulheres também. Neste último assunto ele só me disse que ninguém precisa saber de nada e assim eu me calo, com a minha bela imagem dele inspecionando um obra com os braços às costas e num andamento compassado em que olha para o teto e divisa tudo aquilo que enxerga e aquilo tudo que só ele enxergava em uma obra. Desde a instalação, aos ângulos, padrões e simetrias. Ele adorava simetrias e eu também, não porque era perfeito, mas porque gostava de buscar a perfeição nas coisas. Ele me repetiu algumas vezes que todo homem devia passar por este mundo e deixar uma marca. Bem, em mim ele deixou uma marca eterna e creio que em tudo que ele fazia, havia uma assinatura também, mas que só olhos muito perspicazes eram capazes de encontrar.

Obrigado meu pai – que minha modesta homenagem sirva para que outros homens e mulheres sejam devidamente homenageados e reconhecidos.

Tua vida foi uma grande obra! Parabéns! 

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