Powered By Blogger

domingo, 14 de junho de 2009

DESCARTES - 400 ANOS

Os Quatrocentos Anos de Nascimento de René Descartes

Daniel Adams Boeira

No trigésimo primeiro dia do mês de março do ano da graça de Nosso Senhor de um mil quinhentos e noventa e seis, nascia René Descartes. Quem foi esse cara? Qual a importância dele? O que ele produziu? Que contribuições à Cultura e à Civilização ele trouxe? O que ele tem a ver com a minha vida hoje? O que ele tem a ver com a minha profissão? Que valor podem ter os seus pensamentos para mim?

Todas essas questões já estão - de certo modo - respondidas. Ora, então porque ainda falar dele aqui neste mural? A minha razão principal é estimular não o reconhecimento de um herói do pensamento, mas sim de pensamentos que um homem foi capaz de produzir e que romperam com séculos de equívocos sobre o que é Autoridade, quais as regras de uma investigação racional e como proceder para estabelecer conhecimentos seguros sobre qualquer coisa.

Trata-se, portanto, de ressaltar para quem não sabe e lembrar aos que sabem o que Descartes pensou e o quanto - por incrível que pareça - esses pensamentos são importantes para uma busca da verdade e uma vida honesta nos dias de hoje.

René Descartes foi um Filósofo do século XVII com um espírito extremamente meticuloso e crítico. Nascido na França e visitando diversos países ele teve a oportunidade de dialogar com muitos investigadores e cientistas de seu tempo. Apesar da sua vida curta, ele foi capaz de provocar, segundo a minha opinião e de outros filósofos, uma ruptura realmente radical com os pensadores e pensamentos que o antecederam. Além disso, não há uma ciência que não tenha sido influenciada pelas suas investigações. Apesar das suas contribuições terem sido marcantes, poucos sabem que tanto as suas contribuições metodológicas, quanto as suas grandes hipóteses explicativas de diversos fenômenos da natureza, ainda tem valor heurístico nas ciências contemporâneas.

A importância do seu pensamento pode sempre ser ressaltada em duas direções: 1. a sua ruptura com o passado, e 2. a formação de um futuro que hoje somos nós que fazemos. Essas duas vias tem em Descartes, primeiro, um caráter destrutivo e crítico em relação à tradição e, em segundo lugar, um caráter fundacional e construtivo que veio a dar forma, principalmente, ao espírito científico moderno e ao método de exercício e produção em diversas ciências que hoje “parecem” não possuir nada de filosófico. Quero enfatizar o aspecto destrutivo do pensamento de Descartes, pois creio que ele é o fundamento do homem moderno.

No que diz respeito à “ruptura com o passado”, já disse antes, Descartes ainda não foi superado. Para entender um pouco dessa “ruptura” temos que ler lá nas Meditações o que ele afirma como ponto de partida:

“Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.”

Esse ponto de partida expressa uma primeira constatação que também vale para todos nós, a saber, que “recebemos falsas opiniões como verdadeiras”. Essa constatação não agrada a ninguém, pois nenhum de nós gosta de ser enganado ou ludibriado por opiniões falsas. Mas de onde podem vir estas “opiniões”?

Ora, dos nossos professores que muitas vezes professam conhecimentos que não dominam, dos nossos pais que afirmam muitas vezes coisas que não tem fundamento, de todas as instituições que dependem e estão sujeitas aos erros, paixões e interesses humanos, de nossos “amigos” que defendem ou sustentam opiniões que não sobrevivem a um inquérito mais apurado e isento de simpatia ou cumplicidade.

Devemos sublinhar também que estas falsas opiniões também provém de nós mesmos quando elas são geradas por avaliações ou juízos que dependem da nossa admissão de certas crenças ou princípios.

Segundo Descartes todas estas opiniões vindo de onde vierem, dependem, inicialmente, de que de certo modo nós às tenhamos recebido através ou pelos nossos cinco sentidos. Ora, como ele também expressa, dado que os sentidos muitas vezes nos enganam, então não podemos confiar absolutamente neles. Disso se segue, então, que para conhecer algo de um modo firme e seguro, temos que recorrer a outros princípios. Onde encontrar esses princípios? Como compreendê-los como isentos de suspeição?

O caminho que Descartes vai seguir - ainda no texto - implica em buscar um “fundamento” para os conhecimentos. Como ele quer excluir toda e qualquer possibilidade de erro a primeira coisa a fazer é começar a abandonar sistematicamente todas as suas “antigas” opiniões. Como fazer isso? Qualquer um de nós sabe que se se desse ao trabalho de abandonar todas as suas opiniões até então reputadas como verdadeiras, teria que fazer uma lista que apesar de poder ser até considerada como finita, não seria concluída em uma única vida. Vejamos isso um pouco mais de perto.

Tente listar todas as tuas opiniões sobre as coisas do mundo. Ora, mesmo que você comece bem esta tarefa, você verá que quase como uma cadeia, uma opinião envolve outra que leva a outra e assim sucessivamente. Se é assim, então, eu e você não conseguimos negar todas as nossa antigas opiniões, pois não somos capazes de reuní-las. A solução aparentemente simples de Descartes, mas profundamente engenhosa para os seus contemporâneos e para quem soube compreender o artifício, é simplesmente recusar a lista de opiniões através de um único princípio, a saber:

“não é necessário que examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.”

Ou seja, basta refutar os princípios sobre os quais as opiniões repousam, para, através disso, recusar todas as opiniões. Como um dos primeiros princípios das nossas opiniões é justamente a nossa estrutura dos sentidos, como vou chamar aqui, basta, então, demonstrar que ela falha.

Assim, nas Meditações Descartes se propõe a revisar e examinar um por um dos princípios que sustentam todas as nossas opiniões. Como alguém já deve ter notado, as nossas opiniões não dependem somente da estrutura dos sentidos. Por isso, Descartes procurou derrubar não somente os sentidos, mas também uma visão de mundo que até então era dominante.

Quando se fala no Cogito Cartesiano , no Dualismo Cartesiano e no Mecanicismo Cartesiano e, também, na influência da Geometria e da Matemática no seu pensamento , se esquece o papel rigoroso que estas doutrinas tiveram na emancipação do homem de uma forma de ver o mundo extremamente preconceituosa e nociva para a vida humana.

Essa forma de ver o mundo era, basicamente, fundada em três princípios. O primeiro deles era mais ou menos o seguinte: As opiniões não tem valor em si mesmas, mas sim, tem valor porque a Autoridade dos mestres da Igreja ou dos Filósofos Antigos, um dia no passado distante as subscreveu. O segundo princípio vigente era de que o Conhecimento da Verdade só é acessível a homens superiores, ou seja, de que o homem comum jamais poderá saber e encontrar por si mesmo a verdade. E o terceiro princípio vigente era de que o conhecimento só é dado pela via contemplativa, ou seja, para conhecer o homem deve observar a natureza e não intervir ou agir sobre ela.

Como alguns já perceberam, se esses três princípios são corretos, então conhecer e saber algo, depende, pari passu de um reconhecimento passivo das “autoridades”, de uma mente privilegiada e, também, de uma postura passiva frente aos fenômenos que se quer conhecer.

Mas Descartes ousou e foi contra esses três princípios em diversos dos seus trabalhos. Defendeu que se ele estiver correto, então qualquer um de nós com o seu simples bom senso e um pouco de atenção poderá chegar aos mesmos resultados que ele chegou. Com isso Descartes estabeleceu uma forma de “igualdade humana”, pois subjaz a esse princípio que qualquer homem provido de interesse e método pode conhecer o que há no mundo, discernindo o verdadeiro do falso por si mesmo.

Num trabalho meu procurei ressaltar que isso está relacionado com um axioma por mim designado de “transitividade da compreensão”, a saber, algo que qualquer um é capaz de compreender por si mesmo: que a nossa racionalidade ou razoabilidade passa por uma abordagem das ações e expressões humanas que contemple o fato de que só compreendo o que o outro quer dizer ou está a fazer se eu mesmo sou capaz de dizer o que o outro diz ou fazer o que o outro faz. Isso Descartes foi capaz de antecipar de uma forma inaugural nos seus textos e trabalhos. Qualquer um que se der ao trabalho de ler as Meditações ou o Discurso do Método isento de preconceitos vai constatar que aquilo que ele pensa ali também pode ser pensado hoje por qualquer um de nós.

Ora, como essa forma de pensar implica em uma recusa de “autoridades” e uma mudança de postura perante os fenômenos naturais ou humanos, então Descartes merece um lugar privilegiado na nossa Biblioteca pessoal, pois ler as suas obras é a melhor via para conseguir compreender o homem moderno que está em nós.

Ao apresentar o “Penso, logo existo” como a alavanca sobre a qual, construtivamente, todos os nossos conhecimentos e opiniões devem repousar, Descartes fez mais do que simplesmente uma filosofia do ego ou do indivíduo. Ele conseguiu colocar o homem no centro do pensamento filosófico, deixando de lado as “autoridades” e a “providência divina”, e com isso disse para todos nós: Deves aprender a pensar por si mesmo e rejeitar tudo aquilo que é passível de dúvida, pois do contrário serás escravo de ilusões e engodos. Ora, a pergunta que resta é: Quem quer ser reconhecido como escravo de algo ou alguém?

Assim, com a minha reflexão comemorativa dos 400 anos de Descartes eu quiz apenas lembrar ou informar que o homem moderno que está em cada um de nós não é nada se não for capaz de pensar por si mesmo e romper, assim, com os preconceitos que nos fazem escravos de interesses que não são passíveis de justificação racional e, também, não são passíveis de aprovação pública .

Nesse exato sentido, ser livre não é apenas ir contra os outros, mas é também ser capaz de reconhecer, subscrever e justificar as suas opiniões, posições e interesses. Talvez, com este texto fique mais claro que Descartes está do lado daqueles que lutam e lutaram pela emancipação do homem da sua menoridade, como aliás Kant já disse em 1789. Mas, se eu sou rigoroso e coerente com o que expressei até aqui, essa conclusão deve ser tirada por você mesmo, caro leitor dessa homenagem.


PS.: é algo muito curioso que um texto escrito a mais de 13 anos e publicado num mural de Casa do Estudante, com o propósito de provocar e debater certos temas tenha um espaço como este que ele ganha agora. É bem melhor ver ele aqui do que no fundo de um disquete abandonado. Penso que o maior proveito será para os meus alunos. O pouco que apresento aqui pode ajudá-los a procurar mais, mais adiante.

Nenhum comentário:

Postar um comentário